5 de setembro de 2018
Desafio Corujesco 2018 - Uma História Narrada em Primeira Pessoa || Middlesex
Eu nasci duas vezes: primeiro como uma menininha, num dia excepcionalmente despoluído de Detroit, em janeiro de 1960; e depois outra vez como um rapaz adolescente, num ambulatório de emergência perto de Petoskey, Michigan, em agosto de 1974.
Não faço ideia de como Middlesex apareceu no meu radar. Sei que o autor dele é o mesmo de Virgens Suicidas, mas como nunca vi o filme ou me interessei pelo título, não posso dizer que tenha sido por causa disso. Talvez tenha sido uma questão de oportunidade, já que peguei o livro numa troca. Talvez eu o tenha visto em alguma lista; ele venceu o Pulitzer em 2002 e muita gente o considerou um dos grandes romances do século. De fato, tenho quase certeza de já ter cruzado com ele nalguma lista do tipo ‘livros para ler antes de morrer’.
Seja qual for a razão que me fez ir atrás de Middlesex para em seguida enfiá-lo na estante por três anos (skoob me forneceu a data da troca), fato é que ele estava lá, me esperando, e agora, finalmente, dei-me por lê-lo, continuando meu ambicioso projeto de algum dia ‘zerar’ a estante. Com todo o contexto acima explicado, não preciso dizer que comecei a leitura sem quaisquer expectativas e sem saber exatamente do que se tratava a história, algo que não costumo fazer - sempre pesquiso um pouco antes de catar um livro novo, vejo outras resenhas, artigos e avaliações.
Mas, olha, às vezes é bom se deixar surpreender.
Narrado por Calliope Stephanides - ou melhor seria dizer, por Cal Stephanides -, o livro começa em 1922, com a história dos avôs de Cal, cultivadores de bichos-da-seda na Bitínia, pegos em meio ao conflito entre gregos e turcos, guerra que durou de 1919 a 1922 e terminou com o Grande Incêndio de Esmirna. Desdemona e Lefty, irmãos, fogem em meio ao caos do incêndio, reinventam suas histórias pessoais e se casam em meio à travessia para os Estados Unidos. O incesto dos irmãos Stephanides encontrará genes recessivos em sua cadeia de DNA, passada ao filho, Milton, que, por sua vez casa com uma prima também dona do tal gene, e no final teremos Cal, nascido Calliope, aparentemente uma menina, mas, na realidade, um verdadeiro hermafrodita, tendente à identidade masculina em razão dos hormônios.
Em tom de epopeia grega, Cal nos conta as dificuldades da família como imigrantes nos Estados Unidos, entrelaçando o destino dos Stephanides à história de Detroit - cidade em que a família vai morar. Modelo fordista de produção, lei seca, contrabando, tensões raciais, exploração religiosa, tumultos nas ruas… Cal cresce numa época efervescente, tentando compreender seu corpo, suas escolhas e preferências, seu lugar no mundo, até que, após um acidente com um trator, o médico que a trata descobre sua síndrome.
Calliope foge. Junta-se ao circo. E assume sua identidade masculina de Cal.
Quando Cal começa a nos contar sua história - lembrando dos tempos de antes de seu nascimento, quando ainda era uma coisa amorfa a pairar sobre o mundo, ou mesmo logo após seu nascimento - já se passaram anos desde que tudo aconteceu. Ele trabalha na embaixada em Berlim e alterna sua narrativa do passado com seu interesse por uma moça que conheceu no metrô. Afinal, essas são suas memórias e ele conta na ordem e da forma que quiser. A narrativa oscila entre a primeira e a terceira pessoa, especialmente enquanto ela passa por sua transformação para ele, quando Calliope tenta entender sua condição e também sua identidade como homem. É o velho dilema de natureza e criação: Cal foi criado como uma menina, mas tem uma mente masculina e um corpo que está entre os dois limiares.
Resumindo dessa maneira, parece que estamos diante de um livro extremamente sério - incesto, violência, segredos, genética e identidade -, mas Middlesex tem algo de picaresco. Cal não é o que se possa chamar de narrador confiável; ele mesmo admite algumas invenções; conjecturas, costuras para melhor entender os fatos; o próprio fato de ele se arvorar um narrador onisciente capaz de enxergar os fatos antes mesmo de seu nascimento reforça esse tom de absurdo, mas também de humor. Por isso é que, a despeito de temas fortes, Middlesex é uma leitura divertida, fascinante.
Cal é um tanto verborrágico ao contar sua história, indo e voltando tempo, preenchendo detalhes que não parecem importar tanto - e que bem poderiam diminuir umas cem páginas do livro para tornar a leitura menos cansativa -, mas que acrescentam ao colorido de sua própria mitologia, uma mitologia que, não por coincidência, começa aos pés do monte Olimpo, onde Desdemona e Lefty Stephanides iniciam os acontecimentos que levariam ao nascimento dele. Cortar algumas partes talvez tivesse deixado o livro mais fluido, mas talvez tivesse perdido o sabor de tragicomédia grega característico dele.
No fim das contas, para um livro sobre o qual eu não tinha expectativas, Middlesex terminou sendo uma agradável surpresa. Não sei se teria colocado o livro na minha lista sabendo por alto de seu enredo, mas foi bom ter dado uma oportunidade a ele. Interessante, divertido, atual e cheio de boas reflexões para fazer.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Middlesex
Autor: Jeffrey Eugenides
Tradução: Paulo Reis
Editora: Rocco
Ano: 2003
Onde Comprar
Amazon
A Coruja
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sobre
Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Fiquei curiosa com esse livro! Já está há um tempo na minha lista de leituras futuras, depois dessa acho que ele vai avançar na lista rsrsrsrs
ResponderExcluirMas vamos combinar que o tema livro em primeira pessoa não é difícil, dá para fazer até uni-duni-ni-tê nas minhas últimas leituras, mas vou escolher esse aqui:
https://leiturasdelaura.blogspot.com/2018/09/always-and-forever-lara-jean-to-all.html