23 de maio de 2018
A História de Ada: A Guerra que Salvou sua Vida e a Ensinou a Viver
A história que estou contando começa quatro anos atrás, no início do verão de 1939. Naquela época, a Inglaterra estava à beira de mais uma Grande Guerra, a guerra que está acontecendo agora. A maioria das pessoas estava com medo. Eu tinha dez anos (embora não soubesse minha idade) e, por mais que já tivesse ouvido falar no Hitler — nos trechinhos de conversas e palavrões que subiam da travessa até minha janela, no terceiro andar —, não estava nem um pouco preocupada com ele ou com qualquer guerra disputada entre os países. Pelo que contei já deve ter ficado claro que eu estava em guerra com a minha mãe, mas a minha primeira guerra, a que travei naquele mês de junho, foi contra o meu irmão.
Recebi mês passado o livro A Guerra que me Ensinou a Viver, da Kimberley Bradley. O título é uma continuação de A Guerra que Salvou a Minha Vida, publicado aqui no Brasil no ano passado pela Darkside. E, bem, embora o título tivesse passado pelo meu radar quando o primeiro volume foi lançado, confesso que não tinha me empolgado muito em colocá-lo na lista de leituras, por se tratar de uma narrativa em primeira pessoa no período da Segunda Guerra Mundial, com uma criança protagonista.
Agora, a princípio, essa relação de causa e efeito não parece fazer sentido, especialmente quando se sabe que devoro livros sobre o período, tanto romances quanto não-ficção. E que parte do meu fascínio com a época começou justamente com uma narradora jovem: O Diário de Anne Frank, que li bem nova e ainda hoje é um dos livros que mais me impactaram. Aí explico que a culpa foi de O Menino do Pijama Listrado, que, embora funcione como uma bela fábula, irritou-me sobremaneira pela ignorância do protagonista. Entendi a necessidade narrativa de ter um personagem tão inocente, mas a ideia de que o filho de um comandante de um campo de extermínio nazista nunca tivesse ouvido falar da ideologia que o pai defendia e sequer soubesse o que eram judeus, não desceu minha garganta. Foi pedir demais da minha suspensão de descrença.
Mas, bem, ali estava o livro, hora de enfrentar preconceitos. Dei uma olhada na sinopse, folheei as primeiras páginas, e percebi que estava diante de uma situação completamente diferente de quando li o John Boyne. Fui atrás do primeiro volume. Dei uma chance a Ada. E não me arrependi nem um pouco.
Ada Smith, a protagonista da história, não é uma órfã, mas talvez tivesse uma sorte melhor se fosse, considerando a mãe completamente incapaz para a maternidade. Tendo nascido com o um pé virado, “torto”, incapaz de andar (até desencorajada a fazê-lo), Ada se submete ao julgamento materno de que ‘não presta para nada’, e tem de viver trancada dentro de casa. A Mãe - cujo nome nunca é dito - é como a madrasta dos contos de fadas, explorando Ada, castigando-a cruelmente por ofensas imaginadas, ridicularizando-a a todo momento.
Ada tem também um irmão caçula, Jamie, a quem é extremamente ligada. E é quando Jamie começa a ir para a escola, deixando Ada totalmente isolada em casa enquanto a Mãe trabalha, que temos o gatilho para que a menina desafie as acusações e imposições da mãe e tente aprender a andar - ou, como diz no início do romance, trave sua própria guerra dentro de casa. Esse aprendizado será sua salvação: estamos no início da Segunda Guerra, Londres está prestes a passar por uma série de bombardeios e, na expectativa dos ataques alemães, as crianças estão sendo evacuadas da cidade. No dia marcado para os alunos da escola de Jamie serem enviados para o interior, Ada foge com o irmão - vez que a Mãe pretendia deixá-la presa em casa para que os outros não vissem ‘sua vergonha’.
Tendo passado sua inteira existência trancada no apartamento observando o mundo através da janela, tendo contato apenas com a Mãe e Jamie, tudo o que Ada vê agora é novidade. As outras crianças, o trem, a grama… Mas é no caminho para o interior, quando passam por uma jovem montada num cavalo que Ada encontra um objetivo para si: ela também quer cavalgar. Quer subir num cavalo e ser livre para ir e vir. Ela aprendeu a caminhar, mas colocar os pés no chão, andar, é um sofrimento constante; um cavalo significa liberdade sem dor.
Por coincidência, quando afinal chegam ao seu destino, e são levados para Susan Smith - uma mulher sozinha e profundamente deprimida que não tem o menor desejo de ficar cuidando de evacuados, mas é obrigada a tanto pela autoritária Lady Thornton -, no quintal da nova casa há um pônei. E, assim como aprendeu sozinha a caminhar, Ada persistirá por várias quedas e outras dificuldades, até ser capaz de cavalgar Manteiga.
De certa maneira, nossa protagonista faz parte de uma longa tradição de meninas órfãs de vida difícil, cujas histórias de superação servem tanto como lição de vida como para fazer descer as lágrimas. Ada, contudo, tem mais em comum com a rabugice de Mary Lennox que o perpétuo raio de sol de Pollyana; e muito pouco de dramalhão dickensiano típico das narrativas de órfãos pobres e sofridos. Na verdade, há muito que se refletir nos vários níveis em que Bradley vai construindo sua história.
Ada há muito perdeu sua inocência; de certa maneira, sua trajetória nos dois livros é para recuperar a infância perdida, para descobrir o que é ser criança. No início da história, Ada não sabe nem mesmo quantos anos tem, quando é seu aniversário. O pai é uma vaga lembrança, cujo destino é também desconhecido. Gratidão lhe é algo desconhecido, desconfortável; e a contínua necessidade de ser útil revela o medo de ser descartada. O abuso contínuo que sofreu em seus primeiros anos tornou-se um trauma que se revela em crises de pânico e na ansiedade de não ter tarefas ou responsabilidades. A despeito de tudo isso, Ada é resiliente, obstinada, firme em suas convicções e leal àqueles que conquistam sua afeição. A despeito do medo, ela enfrenta tudo o que a vida lhe joga pelo caminho: a Mãe, a guerra, bombas, incêndios, rondas noturnas, cirurgias, e outras tantas perdas que vão se somando pelo caminho.
Além da protagonista, há aqui uma interessante coleção de personagens femininas, todas muito fortes à sua maneira. A Mãe, que à primeira vista é só um estereótipo das madrastas de contos de fadas, é sim uma mulher vulgar, cruel e egoísta. Mas é também alguém que nunca teve vocação materna, mas se deixou levar pela pressão do marido e da sociedade. Tendo sido obrigada à maternidade, pouco tempo depois é surpreendida com a perda do marido, e precisa arranjar emprego para sustentar a si e a duas crianças - isso numa época que oferecia poucas oportunidades à mulher. A sociedade - cujas expectativas ela seguiu - lhe virou as costas, abandonando-a à miséria. Não é surpreendente que ela seja tão amarga, e que desconte nos filhos que nunca quis ter, especialmente Ada com sua deficiência, o peso dessas frustrações. É difícil ter alguma simpatia pela Mãe, mas não é tão simples resumi-la ao papel de vilã.
Em contraste com a Mãe temos Susan - que, por essas coincidências do destino, tem o mesmo sobrenome das crianças. Como Ada e Jamie, Susan também é alguém à deriva, e a chegada das crianças lhe servirá como âncora para que ela, também, supere seus demônios. Embora nunca seja dito com todas as letras, é fácil chegar à conclusão de que Susan e Becky eram um casal. Isso explica a relação combalida de Susan com o pai, o fato de Becky ter deixado a casa em que as duas moravam e os cavalos que criava para Susan, a desconfiança que Susan tem das pessoas da cidade, o luto que ela carrega pela perda de Becky.
Como a história é narrada do ponto de vista da Ada, a questão nunca é tocada de forma direta, mas está lá (e foi confirmada pela autora também, se restar dúvidas a alguém), e é um dos motivos pelos quais Susan é capaz de compreender Ada. O ‘pé torto’ de uma e a sexualidade da outra estão ligados a sentimentos de culpa, rejeição, medo. Afinal, as duas foram abandonadas emocionalmente pelos parentes por essas razões. Dessa culpa, portanto, vem o medo de que o resto do mundo, uma vez que elas saiam de seus casulos, também as rejeite.
Ainda que, intelectualmente, elas compreendam que a falta não é delas, e que seus pais estavam errados na forma como se conduziram, o desejo de serem aceitas e amadas por eles é mais forte. Por isso Ada sofre com a deserção leviana da Mãe, ainda que ela peça por isso. Entender, pouco a pouco, os motivos para o ressentimento da Mãe, aceitar que a culpa não era sua é o que finalmente faz Ada se abrir para Susan, e aceitar a nova família que elas formam.
Adendo histórico: até a década de 50, a legislação britânica punia ativamente o homossexualismo. O caso do matemático Alan Turing, um dos principais decodificadores de Bletchey Park (grupo do qual são parte Lord Thornton, Ruth e o pai dela), é emblemático: a despeito de todos os serviços prestados durante a guerra, ele foi julgado por má conduta sexual e, para não ser preso, se submeteu a tratamentos hormonais; foi humilhado, impedido de trabalhar em sua área, e terminou por se suicidar em 1954.
Turing foi julgado com base no Ato de Emenda da Lei Penal de 1885 - a mesma que levou Oscar Wilde à prisão - que, curiosamente, condenava apenas atos de homossexualidade masculina. Relacionamentos entre mulheres eram desconsiderados pela legislação. Nunca descobri o motivo para tanto - talvez pela descrição do tipo penal, que previa a necessidade de penetração -, mas li várias anedotas de que a responsável pela omissão seria a Rainha Vitória, que insistiu que esse tipo de coisa não acontecia entre damas.
Anedotas à parte, o vácuo legal explica porque não há informações de que Susan teria sido julgada ou questionada, considerando que muita gente na cidade parece saber que seu relacionamento com Becky não era apenas de boas amigas - li algumas críticas ao livro nesse ponto, dizendo que o romance delas não seria crível porque esse tipo de coisa não acontecia à época. Como prefiro acreditar que estejam fazendo menção à situação jurídica, em vez da ilusão de que homossexualismo é uma invenção moderna, fica a explicação.
No segundo volume, o núcleo familiar de Ada se expande para incorporar Maggie, que poderia ser o clichê de pobre menina rica hostilizando a protagonista. Clichês óbvios, contudo, não são o foco da autora, e Maggie se torna uma boa amiga de Ada, partilhando o amor da menina pelos cavalos, tendo ainda seu próprio arco de crescimento, especialmente nos confrontos com Lady Thornton. Segue-se ainda a entrada de Ruth, judia, alemã - rejeitada por seu país por ser judia, e rejeitada pelos ingleses que a recebem, por ser alemã - e uma matemática brilhante, que se torna aluna de Susan e uma irmã mais velha para Ada. E, claro, há a própria Lady Thornton, que poderia facilmente ocupar o lugar de vilã deixado pela Mãe, mas se revela uma personagem muito mais complexa do que se poderia esperar de sua primeira aparição.
A história de crescimento e solidariedade de todas essas personagens se encaixa muito bem no contexto histórico da Segunda Guerra Mundial. Bradley fez um ótimo trabalho de pesquisa histórica. Os bombardeios, os evacuados, o racionamento; mulheres substituindo a mão-de-obra masculina nas fábricas, as referências a espiões, à importância da RAF, as vigias de incêndios (lembrei demais do conto de Connie Willis) e aos decodificadores da máquina Enigma.
A Guerra que Salvou a Minha Vida é um livro agridoce, que começa e termina com famílias fraturadas, com perdas e sacrifícios. É uma história sobre persistência - ou, melhor seria dizer, teimosia -, trauma, sobrevivência, superação. Ele é notável por si só. Mas, quando lemos A Guerra que me Ensinou a Viver, é transparente o motivo de haver uma continuação. Porque a grande lição de Ada - e nossa também, como leitores - é que não basta sobreviver.
Ada precisa entender que, embora finais perfeitamente felizes não existam; e que algumas cicatrizes e traumas nunca são completamente curados, é possível, sim, se abrir para os outros. É possível voltar a acreditar - acreditar que se é amada, acreditar que é capaz de fazer tudo aquilo que deseja fazer e aprender, acreditar que se pode ser feliz e que há um futuro pelo qual esperar. E assim é que o final, quando Ada conclui que “é possível saber um monte de coisas e um dia, enfim, acreditar em todas elas” é tão perfeito: essa agora é a história de alguém que aprendeu a viver e a ter esperança. A guerra acabou e agora podemos reconstruir.
A Coruja
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