16 de junho de 2017
#AmericanGods || Diário de Viagem Episódio 07: Uma Prece para Mad Sweeney
O ano é 1721 e Essie MacGowan atravessa o mar rumo à América num navio de prisioneiros, trazendo consigo não apenas um bebê na barriga e um passado repleto de mentiras, mas também a crença absoluta nas lendas que ouviu da avó quando ainda era criança, dos Sídhe que dançam sob os montes verdes de sua Irlanda natal até o terrível leprechaun.
O sétimo episódio de American Gods é tudo o que você não esperaria de um penúltimo episódio de temporada, uma hora inteira em que nem por um momento temos um vislumbre do nosso suposto protagonista ou se avança no roteiro para conhecermos os planos de Wednesday. Uma escolha arriscada sem dúvida, mas a série tem sido como um todo uma história de escolhas arriscadas… e acertadas. A Prayer for Mad Sweeney pode parecer não avançar muito no plot, mas nos traz tanto em explicações, não apenas de fatos relacionados à narrativa principal, mas ao caráter dos personagens…
Começamos com o senhores Ibis e Jacquel em sua funerária - ou melhor seria dizer, Anubis, o deus da morte e Toth, o sábio deus escriba representado na mitologia egípcia com a cabeça de um íbis. Ibis é o narrador de todas as vinhetas que acompanhamos até aqui, autor do livro com as cenas “Vinda à América”. Considerando sua função como guardião da magia, do conhecimento e da história, é bastante lógico que ele seja responsável por essa narração; mais que isso, a se considerar o comentário de Anubis de que ele pode ver que os dedos do outro têm uma história para contar, cuidar dessas histórias é algo sobre o que Ibis não tem escolha, e escrevê-las representaria uma compulsão, parte da inspiração divina que permite que ele ‘enxergue’ as cenas que descreve.
Considerando o que está acontecendo e como as teias começam a se estender, a história que o senhor Íbis necessita contar é a vinda de Essie e, com ela, de Mad Sweeney, para os Estados Unidos - um pequeno capítulo que realmente existe em Deuses Americanos, mas que muda alguns detalhes sobre a entidade folclórica que acompanha Essie e expande a narrativa para dar mais carne a um dos melhores personagens dessa temporada, nosso amigo, o leprechaun de dois metros de altura.
Mad Sweeney originalmente é um personagem de um conto folclórico irlandês, mais exatamente Buile Shuibhne, ou “A Loucura de Shuibhne”. Rei dos Dál nAraidi, uma tribo medieval do nordeste da Irlanda, Shuibhne mac Colmain teria sido amaldiçoado por São Ronan após o rei atacá-lo por duas vezes. A maldição o levou a insanidade, e ele abandonou o campo de combate na véspera de Mag Rath, tornando-se um andarilho sem rumo, até que a profecia do santo que o amaldiçoou se completasse, com sua morte por uma lança. O interessante é que, apesar de louco, Mad Sweeney - como ficaria conhecido o rei em seus anos errantes - foi reputado poeta, compondo versos em homenagem a cada lugar pelo qual passava.
Essa origem é aproveitada no show, embora nunca tenha sido explicada no livro, onde o leprechaun serve mais como um alívio tragicômico e sai de cena ainda na primeira parte da história. Viajando com Laura, Mad Sweeney conta sobre como foi um rei no passado, mas ao enxergar a própria morte observando o fogo, fugiu na véspera de uma grande batalha e desde então vaga pelo mundo, até que a dívida seja cobrada e ele vá à guerra para cumprir seu destino.
Gosto muito da complexidade que Mad Sweeney ganhou na série e de sua relação com Laura. Fiquei triste em me despedir de Salim, mas tenho certeza que o veremos de novo, afinal, ele está agora a caminho de House on the Rock, o local marcado para a grande congregação de Wednesday. Assim é que agora temos oficialmente uma segunda jornada paralela a de Shadow e Wednesday, na qual acompanhamos o leprechaun e a esposa morta atravessando os Estados Unidos num caminhão de sorvete - e, sério, quem pensaria numa situação tão hilariantemente bizarra como essa? - atrás de Jesus Cristo, a fim de que ele ressuscite Laura.
Adendo importante a se marcar para futuras elucubrações: a separação do trio se dá sob a estátua gigante de um búfalo branco, Tatanka Ska, considerado um animal divino. Não é uma coincidência, afinal nada tem sido coincidência nessa história; o búfalo tem sido um personagem importante na história, aparecendo nos sonhos de Shadow, bem como no conto que abre o quinto episódio da série, contando a história do deus mamute, Nunyunnini.
Paralelo à viagem de Laura e Mad Sweeney temos a história da vida de Essie MacGowan, semelhante a uma Moll Flanders com um pouco mais de sorte. Essie cresceu ouvindo as histórias da avó sobre fadas e seres fantásticos e levou consigo essa crença por toda a vida. Sendo uma criada numa grande casa senhorial, e ardendo de ambição para subir de vida, ela faz oferendas ao leprechaun para seduzir o herdeiro da família - e eu poderia apostar que a moeda de ouro que Essie deixa para o leprechaun é a mesma moeda que, no presente, está dentro de Laura - sendo atendida.
Contudo, os sídhe são inconstantes e aquilo que eles dão num dia, no outro tiram: Essie é acusada de roubo, numa época em que qualquer pequeno furto poderia terminar numa sentença de morte (como Dickens gostava muito de sublinhar e caramba, porque passei esse episódio pensando em Dickens?), mas sua juventude e beleza amolecem o coração do juiz o suficiente para que ele comine a pena de exílio em vez da prisão em Newgate.
Se você já leu ou estudou alguma coisa sobre Newgate provavelmente entenderá porque uma morte rápida seria preferível a ficar preso em Newgate… As prisões brasileiras modernas são modelos de direitos humanos comparadas àquele inferno.
Essie cai nas boas graças do capitão do navio que a levaria para as colônias e em vez de ser desembarcada e vendida como uma criada até completar seu período de servidão, é tomada como amante do homem, que a leva de volta para Londres. Ali, tão logo é deixada sozinha, foge com toda a prataria e se torna a ladra que não era antes de ser condenada. Por um tempo, sua boa sorte e as ofertas que deixa para o leprechaun fazem com tudo ande bem, mas não demora para que ela seja pega de novo e, dessa vez, ela vai para Newgate.
O encontro de Essie e Mad Sweeney na prisão - ainda que ela não tenha ideia de quem está na cela ao seu lado - é a primeira vez em que os dois interagem de forma direta e demonstra bem como os deuses tocam as vidas dos humanos pelos quais se interessam. A conversa do leprechaun dá a Essie esperança, o suficiente, pelo menos, para que ela se sujeite ao carcereiro para engravidar e assim conseguir a substituição de sua pena, mais uma vez, pelo degredo.
De certa maneira, as duas travessias de Essie ecoam a introdução de Anansi no segundo episódio, e quebram o mito americano de que seu país foi construído pelos peregrinos puritanos em busca de liberdade religiosa: as pessoas que desembarcavam do lado de cá do Atlântico muitas vezes estavam escapando de algo e não apenas da perseguição religiosa, mas da pobreza e da prisão. No Novo Mundo, elas podiam se reinventar, criar novas identidades, como a Susan que Essie cita em sua conversa com Sweeney (embora, se Susan era uma escrava, então um novo nome e uma nova vida não eram bem uma escolha própria dela).
É exatamente isso que Essie faz. Ela se recria como uma pobre viúva, conquista o homem que comprou seu contrato de servidão e, em não muito tempo, se transforma numa mulher respeitável e recebida em sociedade. E, durante todo esse tempo, mantém sua crença e as oferendas ao leprechaun, o que faz com que, no momento de sua morte, seja ele quem venha buscá-la para fazer a passagem.
Não entendo muito bem porque Mad Sweeney seria o responsável por segurar a mão dela quando ela está para morrer, considerando que ele não é um deus e nem está ligado à morte, a não ser que queiramos pensar que ele esteja ali para se despedir de alguém que permaneceu fiel a ele e sua memória a vida inteira. O elo emocional que existe entre Essie e Sweeney é brilhante e o fato de Essie ser interpretada por Emily Browning, a mesma atriz que faz Laura, reforça a conexão entre o leprechaun e a esposa morta.
Fico aqui me perguntando se poderíamos interpretar Laura como uma descendente de Essie. Seria uma forma de completar o ciclo da história, mais uma coincidência que não é, de verdade uma coincidência. Mas acho que essa não é a intenção da série, então vou apenas deixar essa ideia jogada aqui.
Fato é que o relacionamento entre Essie e Mad Sweeney dá ao nosso leprechaun favorito uma surpreendente profundidade, assim como à estranha amizade que ele parece estar desenvolvendo com Laura. E aí, quando você acha que sabe mais ou menos para onde os ventos estão soprando, o carro capota, você está sem cinto e é arremessado para fora exatamente como acontece com a Laura. Porque, CARAMBA, MEUS DEUSES, Mad Sweeney foi o responsável pelo acidente que matou Laura da primeira vez.
Se alguém achava que isso fosse acontecer, recomendo jogar essa semana na megasena. E dividir o prêmio comigo, claro.
Essa revelação deixa as coisas tão redondinhas… significa, entre outras coisas, que a morte de Laura fazia parte do plano de Wednesday; que Mad Sweeney está ainda mais intrinsecamente ligado ao destino de Laura do que parecia à primeira vista; que o fato de a moeda da sorte dele ter ido parar dentro dela é uma doce, doce ironia e, claro, que existe uma dívida entre os dois e isso pode render um sem número de consequências. Que sabendo disso, Sweeney decida salvar Laura, quando poderia simplesmente embolsar de volta sua moeda da sorte e sair dali, continuando sua existência ad infinitum - talvez até fugindo da batalha de Wednesday - dá ainda mais peso a sua escolha.
Para um penúltimo capítulo de temporada, não é nada que poderíamos esperar. Mas, por mais arriscada que possa parecer a escolha de, nesse exato momento, desviar completamente do roteiro que os espectadores esperavam, a verdade é que esses desvios de rota são o que têm feito a série genial. Porque Deuses Americanos sempre foi meu livro favorito do Gaiman, mas a série… a série, decididamente, já superou todas as minhas expectativas.
Posso começar a sofrer por antecipação de saber que segunda acaba e aí só ano que vem voltamos com novos episódios?
Vinda à América - 1721 (após o capítulo 04)
Itinerário de Shadow até aqui
Shadow provavelmente continua em Vulcan...
Canções para Tocar na Estrada
She Is My Dream, Tads
Ah Ha, Baby Washington
Runaround Sue, Dion
Daddy’s Home, Shep and the Limelights
A Coruja
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sobre
Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário