9 de maio de 2017

#AmericanGods || Diário de Viagem Episódio 02: O Segredo da Colher


Se O Pomar de Ossos seguiu os acontecimentos dos dois primeiros capítulos do livro de forma quase ipso litteris, nesse segundo episódio de American Gods começamos a nos desvencilhar da inspiração original da história - sem perder a essência, mas jogando algumas surpresas para os que já são familiarizados com o livro. E a abertura desse episódio foi algo que me pegou de surpresa, me deixou sem fôlego e representou muito bem o que eu esperava e queria da série. Afinal, desde o começo, prometeu-se atar à fantasia uma boa dose de comentário e crítica social, numa adaptação que modernizaria os temas que estão correndo na história - em especial, a questão dos imigrantes. E é exatamente isso que a introdução de Anansi faz.

Anansi, no folclore do oeste africano - originário especificamente do povo Ashanti, correspondente ao que hoje é Gana - não é um deus, mas um mensageiro de Nyame, senhor dos céus. Ele é um trickster (como Loki), mas, mais importante, ele é um contador de histórias. Anansi é habilidoso, um mestre da oratória, cheio de truques e astúcia. Para os negros cativos, levados especialmente para a região do Caribe e da Jamaica, ele era também um símbolo de resistência e sobrevivência. No livro de Gaiman, Mr. Nancy é um sujeito simpático, bem humorado, quase bonachão. O Anansi que surge no prólogo desse episódio é muito mais próximo de sua versão mitológica: ardiloso, sim e intenso em sua retórica, mas, acima de tudo, furioso.

Anansi aparece num improviso de jazz, num terno colorido, num navio holandês repleto de escravos, no ano de 1697 - uma série de anacronismos cuja explicação, para mim, passa pelo conceito de regiões abstratas de que Gaiman fala em Sandman - Convergência: há lugares no mundo em que as fronteiras entre real e sonho são muito tênues, lugares nos quais alguém pode existir no passado e no presente ao mesmo tempo. Isso porque os deuses de Deuses Americanos não são onipresentes (ou oniscientes ou mesmo onipotentes); podem ser enganados, podem errar; são fundamentalmente humanos exceto por aquilo que os faz sobrenaturais: a fé de seus devotos.

O maior choque, porém, não é Anansi se vestir como um músico da Era de Ouro do Jazz numa cena que se passa no final do século XVII, e sim o discurso inflamado, repleto de revolta incontida que ele faz sobre a história do racismo, - uma história que começa ali, naquele navio de escravos e chega até os dias de hoje. Porque Anansi não está falando para os personagens na tela, mas para nós, expectadores.
“Once upon a time, a man got fucked. Now how’s that for a story? ‘Cause that’s the story of Black people in America…A hundred years later, you’re fucked. A hundred years after that. Fucked. A hundred years after you get free you still gettin’ fucked outta jobs and gettin’ shot at by police.”
O que se segue é um novo frenesi de violência, como o dos vikings na abertura do primeiro episódio e, ao mesmo tempo, muito diferente. Anansi diz “angry gets shit done” e sim, a raiva faz as coisas acontecerem, especialmente quando somada ao desespero e o discurso de Anansi é sobre perda de esperança, sobre falta de escolhas - e se tudo o que se pode esperar são trezentos anos de subjugação e humilhação, então a morte como sacrifício, como vingança, é preferível.


As palavras de Anansi complementam o que acontece com Shadow no final do primeiro episódio e como ele escolhe descrever esses acontecimentos para Wednesday: linchamento. Isso porque linchamentos estão associados à história das perseguições raciais americanas e isso dá uma conotação importante para como Shadow se apresenta, o que ele provavelmente sofreu na prisão - especialmente quando isso ocorre logo após aquele prólogo.

Não sabemos exatamente como Shadow escapou. Quem ou o quê foi responsável pela morte dos minions do Technical Boy - se foi por estar sob algum tipo de proteção por trabalhar para um deus (ainda que ele não saiba deste detalhe), se foi por uma interferência externa ou se o próprio Shadow agiu, de forma inconsciente, para se defender. E sim, essa terceira opção é perfeitamente válida, porque, embora Shadow seja apresentado como um personagem humano, de fora desse mundo extraordinário que estamos conhecendo, tem de haver algo mais. Tem de existir uma explicação para Wednesday insistir tanto para que Shadow o acompanhe; para que Loki tenha ido, disfarçado, encontrá-lo na prisão; algo que faz um humano aparentemente comum ser capaz de derrotar um leprechaun numa briga. Sabemos que ele é um herói, porque Wednesday o reconheceu como tal, mas o que faz dele um herói?

Ainda não há explicações claras sobre o assunto, mas é certo que Shadow tem algo que chama a atenção, que faz dele um aliado importante no que está por vir - e é exatamente por isso que Media, a deusa personificação da TV, “tempo e atenção, melhor que sangue de cordeiro” - aparece para Shadow na loja de departamentos. Diferente de Technical Boy, Media tenta seduzir Shadow para seu lado em vez de tentar se livrar dele - talvez porque, sendo quem é e conhecendo o poder que a narrativa tem, ela saiba que o confronto direto costuma apenas fortalecer o herói para o momento da verdade.

E, claro, tem o detalhe de que Shadow continua a ter sonhos que se assemelham mais a visões. Nesse episódio, ele sonhou com Laura, mas antes disso foi o pomar de ossos e o búfalo, e a premonição de que coisas ruins estavam para acontecer. No livro ele também sonha com uma espécie de museu de deuses esquecidos (que era uma das minhas cenas favoritas e eu gostaria de ter visto na tela…) e outras visões mais pessoais que me fazem pensar que ele talvez tenha vivido outras vidas no passado.

O que realmente me interessa aqui sobre Shadow, contudo, é o quão controlado - ou emocionalmente reprimido, na própria acepção dele - ele é. Leva uma surra de um garoto que fuma pele de sapo sintética: ok, dobra meu salário que eu continuo. Lucy de I Love Lucy fala com ele da televisão e até oferece para lhe mostrar os seios: ok, algo muito errado está acontecendo aqui, mas eu ainda tenho uma lista de compras para terminar. Descobre as mensagens trocadas entre a esposa falecida e o melhor amigo, que estavam tendo um caso enquanto ele estava preso: vamos limpar o banheiro.

O controle emocional que Shadow demonstra não é algo que ele tenha aprendido na prisão. No livro, somos testemunhas de seus pensamentos e descobrimos, quando ele chora ao pensar em Laura - algo que também acontece na série, quando ele está sozinho em seu quarto de hotel e protegido do olhar de estranhos - que aquela era a primeira vez, desde que ele era pequeno, que ele ‘chorou até dormir’. Wednesday aprova esse controle, diz que o país estaria melhor se as pessoas aprendessem a sofrer em silêncio. E também cutuca, fala sobre a traição de Laura, e quando comenta sobre o gosto de Shadow por truques de moeda, chega a dizer que o outro homem não tem personalidade.

Essa acusação é falsa. Bem verdade que heróis costumam ser personagens bem… rasos e unidimensionais, e que Odin, sendo quem é, provavelmente os acha previsíveis, úteis e descartáveis. Mas garanto que Shadow não é assim. Não apenas no livro, no qual ele é um personagem bastante complexo e do qual gosto mais a cada releitura que faço do livro, mas também na série. Por mais que esse seja apenas o segundo episódio, há o suficiente para enxergar o humor, a vulnerabilidade, a simpatia do personagem. Ele não é perfeito, não. Mas há algo inerentemente bom nele, uma cortesia sincera.

Dito tudo isso, quero tratar agora de Bilquis e do contraste que ela representa àquilo que acontece em Chicago.

Bem, como vimos, Wednesday e Shadow pegaram a estrada para Chicago para encontrar o ‘martelo’ - o que poderia ser uma referência a Thor, até pelo ribombar dos trovões na cena, mas essa é uma pista falsa. Ao chegarem ao seu destino, Shadow será apresentado às três irmãs Zorya: Vechernyaya, a estrela do crepúsculo; Utrennyaya, a estrela da alvorada e Polunochnaya, a estrela da meia-noite, originalmente três deusas eslavas que vigiam o céu para impedir a fuga de um cão monstruoso que, escapando, causaria o fim do universo. As Zorya representam também outro arquétipo mítico bem conhecido - e um favorito do Gaiman - a tríade de Anciã, Mãe e Donzela.

O flerte de Wednesday com Zorya Vechernyaya foi um dos pontos altos do episódio para mim, confesso. Ela, mal humorada e ele tentando agradá-la e Shadow observando ao fundo e impressionado com a capacidade da velha de esvaziar uma garrafa de vodca numa virada só eram coisas que eu não sabia que precisava na minha vida…


As Zorya vivem com Czernobog, deus eslavo dos mortos, da noite e do caos, irmão de Bielebog, a luz, que está desaparecido. Bielebog, como um deus da sorte, da ordem e da felicidade, enlouqueceu - provavelmente porque o mundo moderno é o oposto de tudo o que ele representa. Czernobog, que com seu martelo de abater gado é exatamente o martelo de que Wednesday necessita para… o que quer que ele esteja planejando.

Czernobog e as Zorya pararam no tempo. Eles são deuses antigos à beira do esquecimento e não tentam mudar isso - a própria Vechernyaya diz que eles não estão dispostos ou são capazes de aprender. Wednesday/Odin obviamente tem um plano, o que significa que ele está planejando uma reação, algo no espírito dos antigos deuses. E aí temos Bilquis, que se utiliza de sites de relacionamento, adaptando-se ao moderno para manter sua fonte de poder.

Não é algo perfeito e simplesmente sobreviver é bem azedo para quem foi reverenciada no passado como rainha e deusa - e a visita que ela faz ao museu para ver as relíquias que pertenceram a ela é bem agridoce. Mas fato é que Bilquis foi capaz de se adaptar e até de utilizar meios pertencentes aos novos deuses - Technical Boy no caso - para conseguir sustentar sua fonte de poder.

Esses contrastes são interessantes porque não são contrastes apenas entre esses deuses, mas também na forma como imigrantes são assimilados nos espaços que ocupam ao chegarem à terra das oportunidades - seja os Estados Unidos, seja qualquer outro lugar do mundo. Eles se adaptam, se são obrigados a se adaptar; se revoltam se acreditam que não estão recebendo o que deveriam receber; se conformam e acomodam, tentando recriar um pouco do mundo do qual tiveram de sair, fechando-se em sua própria comunidade sem dar chance ao novo. E todos eles sonham, anseiam, desejam o retorno dos dias antigos, da terra de que saíram.

Terminando por hoje, falemos do título. Sim, eu deixei para falar dele no final porque era importante explicar o que acontece ao longo do episódio para entender o que diabos é esse título. Então… a tradução literal é “o segredo da colher” e por mais que eu espremesse a cabeça, não conseguia imaginar que diabos de referência era essa. Seria a leitura da borra de café? Seria alguma questão ligada a racismo - considerando que este foi um tema bem presente no episódio? Seria uma colher metafísica ou coisa parecida?

Decidi apelar para Technical Boy e joguei ‘spoon’ no google. E aí descobri que aparentemente existe um jogo de cartas chamado colheres, que se joga com... colheres ou qualquer outro objeto pequeno que possa ser rapidamente tomado da mesa, e se assemelha a uma dança de cadeiras, no qual quem não pega a colher no fim da rodada está fora do jogo. É um jogo rápido, de blefe, que pode ser jogado com alianças secretas e no qual você tem de estar o tempo todo de olho na colher e quase nenhuma atenção nas cartas.

Considerando as alianças que Wednesday está buscando fazer, o blefe praticado por quase todos os personagens e o fato de que ninguém parece estar prestando atenção às cartas, mas está todo mundo de olho no Shadow… seria uma explicação possível. Se alguém encontrar outra explicação menos complexa e mais lógica, eu agradeço compartilharem-na comigo.

Agora, sobre o que do episódio se lê no livro… Embora haja referência aos deuses trazidos pelos escravos para a América - a vinheta ‘Vinda à América’ entre os capítulos 11 e 12 - o prólogo com Anansi não tem relação direta com ela e pode ser encarado como uma cena completamente nova; assim como a cena com Bilquis também é original para o show. O capítulo 03 é a conversa de Shadow com Wednesday no hotel - ele organizando as coisas da casa é algo que não acontece no livro, ele vai embora e deixa tudo para a sogra resolver sozinha; o encontro com Media originalmente ocorre em privado e no capítulo sete, ao passo que o homem árabe que Wednesday encontra na lanchonete, com olhos que faíscam fogo provavelmente são uma referência ao Ifrit da vinheta “Em Algum Lugar nos Estados Unidos” entre os capítulos 07 e 08. A parte final do episódio, em Chicago, é a primeira metade do capítulo 04.

Capítulos equivalentes ao Episódio
Capítulo 03
Parte do Capítulo 04

Itinerário de Shadow até aqui
Eagle Point, Indiana
Chicago

Canções para Tocar na Estrada
Midnight Special, canção tradicional
A Hard Rain’s A-Gonna Fall, Bob Dylan
Up Around the Bend, Creedence Clearwater Revival


A Coruja


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