25 de maio de 2017

#AmericanGods || Diário de Viagem Episódio 04: Pesticida


Eu estava bem ansiosa para esse capítulo, porque achava que ia ter o final do capítulo 05 aqui, que é quando Shadow sobre no carrossel em House on the Rock com Wednesday, Czernobog e Mr. Nancy… Git Gone, contudo, revelou-se como um interlúdio que volta a história até antes do começo da série para nos apresentar a uma personagem que até então estivera presente de forma bastante oblíqua: Laura Moon, a esposa morta(-viva) de Shadow.

O trocadilho do título é interessante… ‘git gone’ é literalmente o nome do pesticida que Laura utiliza para matar moscas e em sua tentativa de suicídio na banheira. Git, contudo, é também uma gíria inglesa para ‘cretino’, e, bem, não se pode negar que Laura seja uma cretina…

A Laura do livro é uma personagem bem mais simples e está ali apenas para ser um apoio para Shadow. Considerando o papel que ela tinha originalmente, eu já imaginava que ela estivesse por trás do salvamento de Shadow quando Technical tenta matá-lo, lá no episódio 01; era algo que fazia sentido tanto porque a primeira aparição dela seria no hotel após Shadow deixar a limousine, quanto pelo fato de que Laura se arvorava a ‘cavaleira de armadura brilhante’ do marido. O desenvolvimento que a série deu a ela, contudo, tornou-a uma personagem muito mais interessante, com uma jornada própria, paralela a de Shadow.

Git Gone começa com uma cena que parece que nos levará a uma daquelas vinhetas em que os deuses aportam na América… mas logo descobrimos que essa é uma pista falsa: estamos num cassino chamado ‘26ª Dinastia’ - que até onde minha pesquisa vai, não tem nenhum faraó ou acontecimento de particular importância, além do fato de essa ser a última dinastia nativa do Egito, antes da conquista pelos persas - e Laura é a croupier de uma das mesas de blackjack. O cassino inteiro é repleto de imagens que remetem a Anúbis, o deus-chacal: das estátuas às cartas de baralho, a decoração é bem kitsch, mas também serve como um bom indício para o porquê de Anúbis aparecer para Laura em sua morte.

Laura está presa numa rotina maçante, sem aparentes perspectivas de crescimento ou mudança. Ela vai para o trabalho, vai para casa, dá comida para o gato e depois se enfia na banheira com a cobertura fechada e engatilha o pesticida no espaço confinado. Laura não tem nada a perder e nenhum particular apego à vida e essa primeira tentativa de suicídio não é a única vez que ela demonstra isso: sua decisão de levar Shadow, que ela conheceu tentando roubar na mesa do blackjack, para casa, e sua deliberada provocação no meio do sexo de um homem sobre o qual ela não sabe nada tinham um enorme potencial de terminal bem mal para ela.

Shadow, por sorte, é um trapaceiro boa praça - o que é hilariantemente irônico, porque isso o torna bem parecido com Wednesday e explica a falta de grandes escrúpulos em seguir os pequenos golpes perpetrados por seu empregador. Não apenas isso: Shadow se transforma ao conhecer Laura e muda de vida, rapidamente se adaptando à domesticidade ao lado dela. Eles se casam e, na opinião de Shadow, estão prontos a viver felizes para sempre… até Laura sentá-lo à mesa uma manhã e dizer que precisa roubar o cassino em que trabalha.


É interessante confrontar a visão que Shadow e Laura têm de suas realidades: a casa em que eles vivem, vista no segundo episódio a partir do olhar do ex-presidiário, é cheia de cor, iluminada; ao passo em que, sob o olhar de Laura, tudo é de um tom cinza mortiço, escuro - exceto pelo desenho do Pica-pau ao fundo da cena, num vermelho vibrante e não é curioso o quanto o desenho se repete na periferia da nossa atenção? Quem passou a infância assistindo o Pica-pau provavelmente se lembra dele como um pequeno cretino sempre pronto a tomar decisões impulsivas que o metiam em grandes confusões e das quais ele se livrava jogando a responsabilidade/culpa para um bode expiatório conveniente. Parece familiar?

É meio óbvio que Shadow coloca a esposa num pedestal e a utiliza como uma espécie de âncora na realidade; já falei disso aqui quando discuti sobre as claras tendências suicidas que ele demonstra tanto após a tentativa de linchamento como quando aposta a cabeça com Czernobog. Viver com essas expectativas certamente não é a coisa mais fácil do mundo para Laura, que se ressente com o ‘você me faz feliz’ do marido; especialmente quando ela tem de lidar com sua própria apatia e depressão crônica. Talvez exatamente por isso, a despeito do egoísmo e das decisões desastrosas, Laura é uma personagem simpática para o público, não sendo tão fácil condená-la.

Aliás, é interessante perceber como os papéis se inverteram: Shadow endeusava Laura, que estava mergulhada na própria apatia; agora Laura tem como único objetivo e ponto de luz (de forma literal) em seu mundo o próprio Shadow, enquanto ele é quem se deixa levar pela inércia.

A verdade, porém, é que a maior razão de terminarmos o capítulo simpatizando e até torcendo um pouco por Laura é sua relação com Audrey, a melhor amiga traída. Nós acompanhamos a dor e o desespero do luto de Audrey no primeiro episódio (quando Betty Gilpin, a atriz que a interpreta, já tinha roubado a cena); mas o reencontro das duas quando Laura visita a casa da amiga para costurar o braço arrancado na luta com os garotos do Technical Boy é hilariantemente perfeito. Se Audrey, que teve de enterrar o marido e a amiga logo após descobrir que os dois estavam tendo um caso pelas suas costas, é capaz de aceitar Laura, mesmo ela sendo uma ‘zumbi’ e com a memória da traição recente - é capaz de se sentar calmamente (após a crise histérica) para costurar o braço de Laura e depois colocá-la no carro para seguir o pilar de luz que é Shadow na visão da esposa morta - então nós, espectadores, também podemos encará-la sem aversão.


Eu adoro a Audrey. Ela apareceu muito pouco, mas de boa, todas as vezes em que ela aparece, rouba a cena - e diz as verdades que ninguém mais quer dizer, seja por educação ou conveniência. Eu quero que ela continue aparecendo.

Agora, finalmente, voltemos a Anúbis e os motivos pelos quais é no pós-vida do panteão egípcio que Laura vai parar.

Wednesday ainda não explicou a Shadow na série, mas no livro, quando estão a caminho de House on the Rock, ele fala sobre lugares de poder, “uma formação natural, ou então só um lugar que, por algum motivo, parecia especial. As pessoas sabiam que algo importante acontecia ali, que o lugar era uma espécie de ponto focal, um canal, uma janela para o Imanente. Então construíam templos e catedrais, erigiam círculos de pedra… [...] Mas, aqui nos Estados Unidos, as pessoas ainda recebem o chamado, pelo menos algumas delas, e se sentem atraídas pelo vazio transcendental. Em resposta a essa atração, usam garrafas de cerveja para construir uma maquete de algum ponto do mundo que nunca viram, ou instalam abrigos para morcegos em lugares que os morcegos tradicionalmente evitam visitar. São as atrações de beira de estrada.”. Na minha opinião, o cassino em que Laura trabalha - um cassino praticamente em meio a lugar nenhum, numa cidadezinha do interior bastante desinteressante - é um desses locais de poder que acabaram se transformando em atrações de beira de estrada (o que também explica como Shadow acaba indo parar ali). Mais que isso, considerando toda a decoração do lugar, esse é um local de devoção a Anúbis.

Laura não acredita - ela não acredita em nada, como mais tarde vai ser dito de Shadow que ele também não acredita em nada. Ela chega a fazer um inteiro discurso sobre o assunto para o marido: “My parents believed in everything. I went to bed in a world full of magic, everything is possible. But then you find out that Santa isn’t real, then the Tooth Fairy isn’t real, and there’s no farm upstate for old dogs. Then I started reading history books and Jesus isn’t real. It’s like everything that made the world more than what it is… it’s just stories, snake oil. But worse. Because snakes are real. I wanted the magic back, but then I just accepted that I couldn’t because life is just…not that interesting.”. E essas são palavras que depois Anúbis ecoa para ela no momento do julgamento, quando responde à pergunta de Laura se ela terá paz: “In life, you believed in nothing; you will go to nothing. You will be done. There will be darkness.”.


O que acho interessante nessa cena é o contraste entre o Anúbis gentil que guia a senhora Fadil na vinheta que abre o terceiro episódio e a ira contida que ele demonstra com Laura. Imagino que a diferença seja pela forma como as duas viveram suas vidas - ele, afinal, é o juiz e assim sendo, deve julgar as escolhas daqueles que se submetem a ele. Mais que isso, a promessa de que ele virá para ela quando o trabalho dela estiver feito demonstra que ele não sabe perdoar e esquecer. Ele também não deve ter ficado muito satisfeito de ser pego despreparado, de uma alma ter escapado e seu trabalho ter sido menos que perfeito.

Quando fizerem alguma coisa errada, lembrem, crianças, que Anúbis está vigiando.

Também tivemos a nossa primeira visão completa do senhor Ibis, que podemos reconhecer como o escritor que narra as vinhetas de abertura “Vinda à América”. Vejamos o que ele e Anúbis preparam para nós no futuro.

Duas últimas observações: a onipresença da mosca bordejando a Laura é uma premonição do que está no futuro dela ou poderia ser um certo deus disfarçado? Porque, olha, quem conhece mitologia nórdica provavelmente sabe daquela história do Loki se transformando em mosca para interferir no trabalho dos anões que forjavam o martelo de Thor… E segundo, as aves negras sobrevoando o carro de Robbie pouco antes do acidente atenderiam talvez pelos nomes de Huginn e Munnin? Todo mundo já concordou que não existem coincidências nessa história, não é mesmo?

Terminando por hoje (agora de verdade!), gostaria apenas de notar que percebi que não existe uma Sam na lista de atores e personagens da série. Considerando a forma como esse episódio cresceu a importância da Laura, creio que Sam não vai mesmo aparecer. Acho que é uma decisão que faz sentido, permite desenvolver melhor uma personagem em vez de investir em duas e diluir o papel delas. Vamos ver...

Capítulos equivalentes ao Episódio
Alguns diálogos são reconhecíveis, mas a ação do episódio é toda inédita da série

Itinerário de Shadow até aqui
Shadow não saiu do lugar

Canções para Tocar na Estrada
Queen of the Bored, Shirley Manson
The Weight, The Band


A Coruja


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