4 de junho de 2016
Tradução - Por que Gandalf Nunca Casou
Fiz outra tradução de um artigo que acho bastante interessante, um discurso proferido por sir Pratchett em uma convenção em 1985 e que basicamente traz toda a fundamentação para o estabelecimento das bruxas no Discworld. Importante lembrar que pouco depois disso, em 1987, Pratchett publicou Direitos Iguais, Rituais Iguais, que é, em minha opinião, um dos melhores livros sobre discussão de gênero dentro da Fantasia.
Na verdade, Pratchett escreveu várias vezes sobre o tema dentro da série Discworld. Os livros que tratam das bruxas e a série de Tiffany Aching são um bom exemplo disso. Para entender a ordem de leitura desses livros e como eles se comunicam entre si, sugiro a leitura desse artigo.
Lembrando que não sou uma tradutora profissional e que fiz algumas adaptações, até porque, sendo esse o texto de um discurso, tem uma linguagem bastante informal e cheia de coloquialismos que não têm tradução possível. Para quem lê em inglês, basta clicar no link ali em cima que dá para ler o artigo original. Para quem prefere ler em português, fica meu aviso: acho que esse é um texto que vale à pena ser debatido, então fiz o possível para não perder nada do sentido original.
Enfim, segue a tradução!
Discurso proferido em 1985 por Terry Pratchett
Eu quero falar sobre magia, como magia é retratada em Fantasia, como a literatura fantástica contribuiu de fato para uma específica imagem de magia e, talvez o mais importante, como o mundo ocidental em geral terminou por aceitar uma muito precisa e extremamente suspeita imagem de praticantes de magia.
É melhor eu dizer de princípio que eu não acredito realmente em mágica tanto quanto acredito em astrologia, porque eu sou de Touro e nós não vamos muito com toda essa coisa esquisita de oculto.
Contudo, alguns anos atrás, escrevi um livro chamado A Cor da Magia. Tinha algumas boas tiradas. Era uma tentativa de fazer pelo universo clássico fantástico o que Banzé no Oeste (Blazing Saddles) fez pelos Westerns. Era ainda meu tributo a vinte e cinco anos de leitura de ficção fantástica, que começou quando eu tinha treze e li O Senhor dos Anéis em 25 horas. Aquele maldito livro foi a metade de um tijolo no caminho da bicicleta na minha vida. Eu comecei a ler livros de fantasia com o tipo de velocidade que você só consegue no início da adolescência. Eu ofegava pela coisa.
Entenda, eu tive uma infância de privações. Havia montes de outras crianças com quem brincar e meus pais me davam brinquedos para usar ao ar livre e eles se recusavam a me maltratar, de forma que nunca me ocorreu procurar o consolo solitário de um bom livro.
Então Tolkien mudou tudo aquilo. Eu fiquei maluco por fantasia. Quadrinhos, tediosas sagas nórdicas, a ainda mais enfadonha fantasia vitoriana... E é bom que eu explique para meus ouvintes mais jovens que naqueles dias, fantasia não estava disponível em toda loja de brinquedos e prateleira de livraria, era um pouco como sexo: você não sabia onde conseguir os livros realmente obscenos, então tudo o que podia fazer era apalpar esperançosamente as revistas de Fotografia Amadora procurando por nus artísticos.
Quando eu não conseguia obtê-la – fantasia heroica, digo, não sexo –, eu me deixava ficar na seção infantil de bibliotecas públicas, tentando seduzir livros sobre dragões e elfos a virem para casa comigo. Até comprei e li todos os livros de Nárnia de uma vez só, o que foi um pouco como me empanturrar de hóstias. Eu não me importava mais.
Eventualmente as autoridades me alcançaram e me mantiveram num quarto escuro com pequenas doses de ficção científica até que consegui quebrar o hábito e agora eu posso passar em frente a um livro com um dragão na capa e minhas mãos quase não suam.
Mas uma parte da minha mente continuou ligada naquilo que eu chamarei de consenso do universo fantástico. Realmente existe, e todos vocês sabem disso. Foi formado por folclore e vitorianos românticos e Walt Disney, e E. R. Eddison e Jack Vance e Ursula Le Guin e Fritz Leiber – não foi? De fato, esses autores e mais um punhado de outros praticamente o definiram. Há agora, para o deleite de autores parasitas como eu, o que posso quase chamar de itens de enredo de ‘domínio público’. Há dragões, e magos, e horizontes distantes, e jornadas, e itens de poder, e cidades estranhas. Esse é o tipo de cenário que teríamos na Terra se pelo menos Deus tivesse o dinheiro.
Para enxergar o universo fantástico de conformidade em detalhes, você só precisa olhar para os clássicos jogos de RPG Dungeons and Dragon. Eles são mosaicos de cada história de fantasia que você já leu.
Claro que o consenso do universo fantástico é repleto de clichês, quase por definição. Elfos são altos e louros e usam arcos; anões são pequenos e escuros e votam trabalhista. E mágica funciona. Essa é a diferença entre magia no universo fantástico e magia aqui. No universo fantástico um mago aponta seus dedos e todas essas luzes azuis aparecem e há um tipo de explosão e alguma pobre alma é transformada em algo horrível.
De toda forma, se você está no mercado por risadas fáceis, você aprende que duas boas maneiras para consegui-las são ou tropeçar num clichê, ou então tomar as coisas no absoluto sentido literal. Assim, na sequência de A Cor da Magia, - que está sendo levada às pressas para impressão com toda a velocidade de uma deriva continental - você aprende o que acontece, por exemplo, quando alguém como eu se apodera da ideia de círculos de pedra megalíticos sendo computadores muito complexos. O que você ganha são druidas andando por aí falando numa espécie de jargão de computador e se referindo a Stonehenge como o milagre do pedaço de silício.
Enquanto eu saqueava o mundo da fantasia pelo próximo clichê do qual extrair algumas gargalhadas, descobri um que era tão profundamente arraigado que você dificilmente percebe que ele está lá. De fato, ele me surpreendeu de forma tão vívida que eu comecei a olhá-lo de forma séria.
Estou falando da geralmente muito clara divisão entre a magia feita por mulheres e magia feita por homens.
Vamos falar de bruxos e bruxas. Há uma tendência a falar deles em um só fôlego, como se fossem simples diferenciações de gênero para um mesmo trabalho. Não é a verdade. Na Fantasia, não há nada como uma bruxa do sexo masculino. Warlocks, ouço você exclamar, mas é a verdade. Ah, eu aceito que você pode postular por uma história em particular, mas estou falando aqui de uma tendência geral. Certamente não há algo como um mago do sexo feminino.
Feiticeira? Apenas uma classe melhor de bruxa. Encantadora? Apenas uma bruxa com belas pernas. O mundo da fantasia, na verdade, está atrasado para uma visita do pessoal das Oportunidades Iguais porque, no mundo da fantasia, a magia feita pelas mulheres é normalmente de má qualidade, de terceira categoria, voltada para o lado negativo, ao passo que os magos são normalmente cerebrais, astutos, poderosos e sábios.
Estranhamente, este também é o caso neste mundo. Você não precisa acreditar em magia para perceber isso.
Magos conseguem fazer uma classe melhor de magia, ao passo que bruxas vão só lhe dar verrugas.
O arquétipo de mago é, claro, Merlin, conselheiro de reis, criador da Távola Redonda e o único homem que sabia como funcionava o eletromagneto que libertava a Espada da Pedra. Ele não é exatamente um herói folclórico, porque muito do que sabemos sobre ele é firmemente baseado na Vida de Merlin de Geoffrey de Monmouth, escrita no século XII. O Velho Geoffrey foi um dos maiores escritores de fantasia do mundo, quase tão bom quanto Fritz Leiber, mas sem aquela coisa dos gatos.
Teve um bocado de problemas com mulheres, Merlin teve. Morgana Le Fay - uma bruxa - era sua principal inimiga, mas ele foi finalmente preso - em uma caverna de cristal ou numa floresta encantada, você escolhe sua variação - por uma pupila. A mensagem é clara, garotos: isso é o que acontece quando você permite que a verdadeira poderosa magia caia nas mãos das mulheres.
Na verdade, Merlin já foi quase substituído como o mago número um por Gandalf, cuja magia é mais sugerida que aparente. Eu gostaria ainda de trazer a esse ponto um terceiro mago, de quem muitos de vocês já ouviram falar - Ged, o mago de Terramar. Faço isso porque os livros de Ursula Le Guin nos oferecem um bem pensado e típico mundo mágico. Postulo que eles funcionam por se encaixarem tão perfeitamente no nosso imaginário de como a magia se ordena. Eles servem para apontar algumas das similaridades entre nossos magos.
Eles são todos solteiros e celibatários. Nesta fantasia, que está de acordo com algumas obras-padrão sobre magia, torna-se claro que um bom mago não se satisfaz sexualmente. (O que é engraçado, porque não há proibição parecida para as bruxas; elas podem fazer sexo o tempo todo e isso não afeta de forma alguma sua magia). Magos tendem a existir em Ordens, ou hierarquias - e, certamente, a Ilha de Gont me lembra nada mais que uma universidade medieval européia, ou talvez um monastério. Não parece existir muitas mulheres pela Universidade, embora se suponha que alguém limpe os lavatórios. De fato há algumas praticantes de magia mulheres em torno de Terramar, mas se elas não são de fato malignas, então estão equivocadas ou são tratadas por Ged da mesma maneira que um obstetra de Harley Street trata a parteira local.
Vocês podem imaginar uma garota tentando conseguir uma colocação da Universidade de Gont? Ou eu poderia colocar de outra forma - vocês podem imaginar uma Gandalf mulher?
Claro que nem preciso mencionar as verdadeiras bruxas dos contos de fadas, o grupo mais malévolo de anciãs que você pode imaginar. Provavelmente foi de viver naqueles chalés de biscoito de gengibre. Não é à toa que bruxas são sempre representadas como desdentadas - é o que viver numa casa de 90.000 calorias faz. Você escuta um barulho de noite e são as crianças locais, comendo a maçaneta. De acordo com o livro sobre Magos de minha filha de oito anos, uma pequena brochura belamente ilustrada disponível em qualquer boa livraria, “magos desfazem o dano causado por bruxas más”. Lá está de novo, a mensagem recorrente: a magia feminina é ordinária e desagradável.
Mas porque tudo isso? Há alguma coisa do mundo real que se reflete na fantasia?
O curioso é que o mundo ocidental não tem uma grande tradição mágica. Você pode procurar em vão por qualquer mago genuíno; ou por bruxas, já que estamos no assunto. Conheço um grande número de pessoas que pensam em si mesmas como bruxas, pagãos ou mágicos, e o mais realista deles admitirá que ainda que eles gostem de pensar que estão seguindo uma tradição estabelecida do Alvorecer dos Tempos, eles na verdade pegaram tudo dos livros e, sim, das histórias de fantasia. Assim, acredito que a ficção fantástica em todas as suas formas não tem base em qualquer coisa do mundo real. Eu acredito que bruxas obtêm suas idéias de seu material de leitura ou, antes disso, do folclore. A ficção inventa a realidade.
Na Europa Ocidental, certamente, magos são poucos e distantes entre si. Fui capaz de encontrar uma dúzia ou mais, que, com perfeita percepção da história, parecem mais vigaristas ou conjuradores. Os Druidas quase cabem na conta, mas Druidas eram umas poucas linhas escritas por Júlio César até eles serem reinventados um par de centenas de anos atrás. Todo esse negócio de vestes brancas e foices e de unidade com a natureza é anseio esperançoso. É significante, contudo. César os retratou como sacerdotes perversos de uma religião baseada no sacrifício humano, com sangue pelos cotovelos. Mas o Relações Públicas da História os transformou em xamãs místicos, e, ao menos os homens, de paz, fazedores de poções mágicas.
A despeito da alegação de que nove milhões de pessoas foram executadas por bruxaria na Europa nos três séculos desde 1400 - e isso aparece muito em livros de ocultismo popular e só posso dizer que tal informação é provavelmente tão confiável quanto tudo o mais que eles contém - é difícil encontrar evidência genuína de um culto de bruxaria generalizada. Eu conheço algumas pessoas que se dizem bruxos. Não, eles são bruxos - por que eu deveria desacreditar deles? Sua religião parece-me pouco nítida, mas bem intencionada e, no final das contas, inofensiva. Bruxaria moderna são os Amigos da Terra em oração. Se tem qualquer raiz, ela se fundamenta nos trabalhos do ex-servidor colonial e naturalista pioneiro Gerald Gardiner, mas eu sugiro que ela realmente se baseia numa mistura de fitoterapia, ocultismo não direcionado dos anos sessenta e O Senhor dos Anéis.
Mas eu tenho de aceitar que pessoas que se chamavam bruxas existiram. Em certo sentido, elas foram criadas pelo folclore, pelo que eu chamo de o Processo do Pires Voador - você sabe, alguém vê algo que eles não podem ou não sabem explicar no céu, está ciente de que há uma história popular de avistamento de pires voadores, então decide que o que ele viu foi um pires voador e rapidamente aquele ‘avistamento’ soma mais alguns flocos à grande bola de neve da Pireslogia. Da mesma maneira, os plebeus sabem que bruxas são velhas feias que vivem sozinhas, porque o folclore assim o diz, de forma que anciã local deve ser uma bruxa. Logo todo mundo no local SABE que há uma bruxa no vale próximo, vários truques do destinos são colocados à sua porta, e assim o grande mito continua.
Alguém pode procurar em vão por uma similar difusão de evidência acerca dos magos. Além do punhado de praticantes duvidosos mencionados acima, metade dos quais são mais certamente identificados como alquimistas ou sacos de ar, tudo o que consegui encontrar foram alguns vagos cultos maçônicos, como a Palavra do Cavaleiro na Anglia Ocidental. Não há muito de Gandalf por lá.
Agora, você pode partir do princípio que é óbvio que esse é o caso, porque se há um lado ruim para se estar, então as mulheres estarão lá. Qualquer coisa feita por mulheres é automaticamente rebaixada. Essa é a visão amplamente mantida - bem, amplamente mantida pela minha esposa desde que ela começou a ir a encontros de grupos de conscientização - que me diz ser ridículo especular sobre o tópico porque a resposta é tão óbvia. Magia, de acordo com essa teoria, é algo em que apenas homens podem ser realmente bons, e assim qualquer tentativa das mulheres de invadir a relva sagrada deve ser rigorosamente interdita. Mulheres são consideradas pelos homens como o segundo sexo, e sua magia é, portanto, automaticamente inferior. Há ainda um bocado de coisas sobre o medo natural do homem da mulher com poder; bruxas foram pobres mulheres buscando uma das poucas alternativas de poder abertas a elas, e os homens revidaram com tortura, fogo e zombaria.
Eu gostaria que isso fosse tudo. Mas o fato é que o consenso do que seja um universo fantástico absorveu essa ideia e a manteve. Eu me inclino a um ponto de vista diferente, ainda que seja apenas para manter o argumento caminhando: que a coisa toda é muito mais metafórica que isso. O sexo do praticante de magia não entra realmente na questão. O mago clássico, eu sugeriria, representa um ideal de magia - tudo o que esperamos que poderíamos ser, se tivéssemos poder. A bruxa clássica, por outro lado, com seu interesse muitas vezes malévolo nas pequenezas dos relacionamentos humanos, é tudo o que tememos que poderíamos nos tornar.
Bem, nada disso vai me render um PhD. Eu suspeito que através dos insidiosos livros de ilustrações para crianças os magos continuarão a praticar sua alta magia e as bruxas irão realizar seus malignos, temperamentais feitiços. Ainda haverá um longo tempo antes que haja espaço para ritos iguais.
A Coruja
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