25 de agosto de 2015
Para ler: Rádio Guerrilha
“No Ocidente, a “normalidade” é praticamente uma certeza: é o estado constante, imutável. Não é percebido e, portanto, raramente mencionado. Porém seu significado não poderia ser mais diferente para os jovens de Belgrado - porque esta era uma geração cuja normalidade havia sido tomada e substituída por incerteza, pobreza, guerra e violência. Cresceram em Belgrado nos anos 90 os despossuídos - uma geração para a qual o tempo parou.
Sob o regime de Slobodan Milosevic, a normalidade era um sonho, uma Utopia distante e inexplorada; significava o oposto de tudo o que acontecera aos cidadãos de Belgrado na última década: quatro guerras, uma polícia brutal e desenfreada, tumultos nas ruas, um estado de psicose coletiva causado pela penetrante propaganda política na televisão, violenta xenofobia, a militarização da paisagem urbana, pobreza em larga escala, gângsters e aproveitadores da guerra se transformando na elite da sociedade, e assassinos eleitos para o parlamento.”
Estou numa fase de leituras históricas, em especial relatos de conflitos: terminei um sobre a batalha de Waterloo; segui para outro acerca do fim da Iugoslávia, indo da limpeza étnica na Bósnia até a a guerra em Kosovo e estou agora às voltas com os relatos de Tólstoi em Sebastopol, durante a Guerra da Criméia. Têm sido leituras muito interessantes e hoje vou falar, especificamente, da segunda leitura dessa lista.
Rádio Guerrilha é um livro reportagem sobre os anos de esfacelamento da Iugoslávia sob o governo nacionalista de Slobodan Milosevic. É uma história que não está tão distante de nós: eu era menina de tudo à época, mas tenho a lembrança de ouvir falar sobre Kosovo e bombardeios em Belgrado. Mais tarde, eu estudaria um pouco do assunto na cadeira de direito internacional na faculdade, falando de intervenção e tribunal penal internacional, mas não cheguei a entender, realmente do que se tratava o barril de pólvora das etnias nas Balcãs.
Embora não faça assim tanto tempo - Milosevic só veio cair em outubro de 2000 - não parece haver muito conhecimento sobre o que aconteceu naquela época. Temos a propaganda ocidental que tenta justificar os bombardeios da OTAN, mas o que estava acontecendo lá dentro não é tão disponível - e, no mais das vezes, o papel do Ocidente na continuidade de Milosevic, especialmente após o fim do conflito na Bósnia, é apenas relanceado sem grandes aprofundamentos.
O que achei interessante no livro de Matthew Collin é não apenas que ele conta a história do outro lado, como essa é uma história que gira em torno do cenário de cultura e mídia independente que fez frente ao governo de Milosevic - em especial a rádio B92, que entre rock’n’roll e notícias, tornou-se um foco de resistência à campanha nacionalista que transformou a Sérvia num pesadelo de guerra, criminalidade e corrupção.
“A descrição da realidade genuína em programas jornalísticos profissionais passou a ser vista como subversão. A verdadeira informação tornou-se provocação, o diálogo era rotulado como sinal de fraqueza, tentativas de soluções e acordos para conflitos eram tachadas de covardia, tentativas de representar os interesses das minorias eram vistos como sinal de deficiência genética: ser normal significa ser subversivo”.
Propaganda, exploração cultural e manipulação midiática são matéria básica para qualquer aprendiz de ditador e Milosevic soube utilizar muito bem esse arcabouço - quase tão bem quanto Hitler que, se por um lado era um assassino megalomaníaco, por outro foi uma sumidade do saber publicitário. O importante aqui é que seus opositores também souberam usar dessas ferramentas e entender que até mesmo ouvir coisas diferentes do folk pop abraçado pelo governo era uma forma válida de resistência.
“Rotule seu adversário de sub-humano e será mais aceitável matá-lo. Fabrique o medo, intensifique o terror. Convença as pessoas de que existe uma conspiração internacional contra elas. Condene qualquer um que discorde, tachando-o de traidor ou agente estrangeiro, um empregado do inimigo assassino.”
Fiquei impressionada especialmente com os relatos das manifestações em Belgrado e no uso do humor pelos manifestantes e muitas das passagens do livro me lembraram situações que estamos vivendo hoje no Brasil - até os famosos panelaços quando de pronunciamentos políticos em TV aberta.
Irritou-me de início algumas ingenuidades como a expressão “os homens maus” e a falta de fontes citadas para os relatos que pontuam toda a obra, mas depois cheguei à conclusão que parte da ironia deve ter se perdido na tradução (porque depois fui reler alguns pontos que achei problemáticos e cheguei à conclusão que essa era a melhor explicação, levando em conta o conjunto da obra) e que, considerando que ainda após a morte de Milosevic, havia gente que tinha medo de ser assassinada por ‘saber demais’, o anonimato era necessário para proteger as pessoas que tinham aceitado falar com o autor.
De mais a mais, Rádio Guerrilha é um relato assustador, mas necessário, que nos mostra como se constrói a imagem de um ditador e se manipula uma nação para que ela se torne cúmplice de seus desmandos. Mais importante, ainda, é o exemplo que dá de determinação, coragem e resistência para lutar por liberdade e pela verdade.
“Nossa liberdade de expressão é caso de liberdade ou morte - temos de lutar contra o poder que está aí.”
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Rádio Guerrilha: Rock e Resistência em Belgrado
Autor: Matthew Collin
Tradução: Marcelo Orozco
Editora: Barracuda
Ano: 2006
A Coruja
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