22 de maio de 2014
O Mundo Inteiro é um Palco – Parte V: “Amor não teme o tempo”
De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça. Amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe nenhuma idade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma, para a eternidade.
Se isto é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.
- Soneto 116
Nada há que impeça. Amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe nenhuma idade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma, para a eternidade.
Se isto é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.
- Soneto 116
Os sonetos de Shakespeare são talvez o que temos mais perto de desvendar algo de sua privacidade, sua maior expressão pessoal. De forma geral, eles deixam os críticos loucos com todas as possibilidades de interpretação, em especial sobre a sexualidade do dramaturgo – vez que uma parte dos versos faz referência a um ‘belo jovem’ (fair young man) e outros tantos são endereçados a uma ‘dama negra’ (dark lady), sendo que esta última teria sido infiel ao poeta justo com o belo jovem.
Para além do tom obviamente confessional desses poemas, há o contexto com que esses sonetos eram interpretados à época. Sonetos eram escritos para um pequeno público que conhecia muito bem o autor e o recipiente dos versos e formavam um círculo de familiaridade, uma espécie de proteção para a exposição de sentimentos que eram muitas vezes bastante reais.
Some-se a esse fato que a publicação dos sonetos de Shakespeare foi feita sem sua autorização, praticamente surrupiados desse círculo familiar – e aí se tem um terreno fértil para todo tipo de teoria.
Francamente, não me importo se Shakespeare teve ou não um romance com o Conde de Southampton (que muita gente diz ser o tal belo jovem). Considerando que ninguém questiona que Jaime I – que sucedeu Elizabeth – era gay, visto que ele chegou a ser visto em público aos beijos e abraços com outros homens (Ísis: Essa eu não sabia. Mas considerando que, salvo engano, a igreja anglicana era liderada pelo monarca – ou assim me ensinaram – talvez isso se explique? Lulu: Sim, o rei é o chefe da igreja anglicana na Inglaterra), por mais que homossexualidade fosse considerada crime, o bardo não teria muitos problemas sendo suficientemente discreto.
Em se tratando dos sonetos, o que me importa é que eles são dos versos mais belos e intensos que já li. O que me importa de Shakespeare – já que estamos entrando nas conclusões – é que foi ele quem escreveu o que escreveu.
Irrita-me tremendamente as muitas teorias de que Shakespeare teria sido apenas uma fachada para outros escritores mais talentosos – Francis Bacon ou o Conde de Oxford e até mesmo Christopher Marlowe.
Irrita-me porque todos esses argumentos são construídos em torno da convicção de que um plebeu qualquer (há!) sem educação formal não tinha suficiente conhecimento de mundo ou preparo para escrever algumas das obras mais geniais da literatura.
Primeiro, é difícil entender porque alguém com o brilhantismo e percepção de humanidade que se enxerga nas peças do bardo preferiria ter seu nome obliterado da História. Sejamos sinceros: se qualquer um de nós tivesse escrito Hamlet, nós íamos estar berrando a plenos pulmões para quem quisesse ouvir que somos os autores daquela obra-prima. Ninguém tem um ego tão inexistente que vá concordar em deixar outra pessoa levar os louros por uma obra desse quilate.
Segundo, Shakespeare foi reconhecido como dramaturgo à sua época, publicou pelo menos dois livros de poesia em seu próprio nome, foi identificado pelo próprio rei como autor de pelo menos sete peças representadas perante a corte e citado por outros escritores – com admiração e com inveja, mas não necessariamente com acusações de servir de frente a um outro personagem misterioso.
Difícil acreditar que uma farsa desde tamanho pudesse durar tanto tempo sem qualquer tipo de pista para todo o resto do mundo.
Terceiro, levando em consideração apenas os três nomes favoritos já citados, há o detalhe de que:
(1) Bacon tinha já uma rica produção literária, num estilo completamente diferente do de Shakespeare, estava metido até o pescoço com política e não gostava de teatro. Onde exatamente ele ia arranjar tempo para conseguir escrever peças quando já havia coisas demais no seu prato é algo que talvez valha conjecturar (Ísis: Lu, sério, esse argumento – vindo de VOCÊ – não convence coisa alguma. Lulu: É porque tu não conheces o mundo de coisas que Bacon abarcou com as pernas... ele tinha o dedo dele em TODAS as tortas, estava envolvido pesadamente com política e escrevia – sendo bastante aclamado – filosofia, num estilo que não tem nada a ver com o de Shakespeare). Ou talvez mais valha à pena saber que a primeira pessoa a perseguir essa teoria terminou louca internada num asilo (Ísis: Melhor...);
(2) Oxford publicou peças e poemas em seu próprio nome. Suas peças se perderam, mas seus poemas – que são MUITO fracos – sobreviveram. Porque raios e cargas d’água ele ia querer ser lembrado por obras rasas e sem qualquer brilho quando poderia ter vindo à luz como um favorito tanto das massas quanto da corte? Isso para não contar o fato de que ele morreu em 1604, quando muitas das peças de Shakespeare não tinham ido ao palco – na verdade, nem teriam sido escritas ainda, considerando que fazem referência a acontecimentos posteriores à data;
(3) Marlowe morreu em 1593. Mas, claro, ele pode ter forjado seu próprio assassinato e se escondido nalgum fim de mundo onde ninguém o reconheceria para passar os 20 anos seguintes escrevendo peças num estilo completamente diferente daquele pelo qual ficou conhecido, deixando que um dramaturgo que considerara antes um rival, levar a fama pela autoria das histórias.
Pois é...
Vamos lembrar que o pai de Shakespeare era um homem suficientemente importante e cheio de si – ele foi quem começou as tentativas da família de comprar um brasão e ascender socialmente – para ter interesse em oferecer uma educação ao filho. Shakespeare freqüentou a escola em Stradford, onde aprendeu inglês, latim e grego, e onde possivelmente teve seus primeiros contatos com o teatro, visto que era comum representar autos de moralidade com os alunos.
Leve-se ainda em consideração que com o protestantismo, proibiram-se as imagens e vitrais – os ensinamentos visuais tão próprios do catolicismo na Idade Média – e isso fez crescer a importância da retórica e oratória por toda a Inglaterra. Os clérigos protestantes tinham de saber falar, tinham de dramatizar e emocionar e é óbvio que Shakespeare muito aprendeu com os sermões eloquentemente declamados dos púlpitos.
Ele viu o recrutamento militar de pessoas próximas dele, talvez até mesmo tenha servido como soldado (o que explica seu conhecimento militar). Seu pai sendo um luveiro, um especialista em artigos de couro, ele deve ter tido o treinamento para sucedê-lo, e isso pode explicar seu conhecimento de anatomia, suas cenas de sangue e morte – para não falar das execuções públicas que ele certamente testemunhou em Londres. Ele passou a vida quase inteira entrando e saindo de tribunais – como testemunha e como querelante e várias de suas assinaturas são remanescentes desse fato – de forma que isso explica seu conhecimento de questões legais.
Ísis: Mas aí ele teria conhecimentos legais especificamente sobre plagiarismo, não? Não seriam outros campos que estão presentes nas obras?
Lulu: Eu já falei antes numa das perguntas que fizesse que na época não existiam leis de direitos autorais. Shakespeare foi a tribunal não para falar de alguma coisa das peças.
Ele teve ações sobre terras em Stradford-upon-Avon, ações sobre sua herança, genealogia e a possibilidade de usar um brasão e assim ser considerado um cavalheiro, ações sobre a propriedade da madeira utilizada na construção do Globe; foi testemunha em ação sobre confusões entre vizinhos... Ele era também um empresário e um investidor, e emprestou dinheiro para conterrâneos que também resultaram em mais ações.
Só aí você tem Shakespeare metido com direito de propriedade, direito de família, direito penal...
Ísis: Cruzes!
Shakespeare era amigo de Richard Field, com quem estudou na escola primária em Stradford. Ora, Field tinha uma editora e foi através dele que Shakespeare primeiro publicou seus poemas. Os dois eram suficientemente próximos para que o nome de Field (Campos) fosse usado em Cymbeline em sua forma francesa ‘du Champs’. Essa ligação poderia explicar o acesso de Shakespeare aos livros que serviam de combustível a suas próprias histórias – histórias sobre os Imperadores Romanos, sobre teorias políticas e filosóficas, sobre qualquer coisa que pudesse servir de base para uma peça.
Ele era amigo também de John Florio, que traduziu pela primeira vez em inglês os Ensaios de Montaigne, que provavelmente foram o motor por trás da mudança na forma de escrever de Shakespeare, com a introdução dos solilóquios introspectivos, e a linguagem elíptica.
Shakespeare tinha acesso a todo o conhecimento necessário para escrever suas peças. Mas também não é isso que importa. Não importa porque, ao final das contas, não são sobre fatos que Shakespeare escreve. O conhecimento de áreas como História, Direito, Ciências Naturais – tudo isso é apenas oblíquo ao verdadeiro cerne da questão.
Não, não são sobre fatos que Shakespeare escreve. É sobre a vida, sobre ambição, intriga, ciúmes, sofrimento, amor. É sobre ser humano. Simplesmente isso.
Ele não precisava se formar numa universidade para ser capaz de fazê-lo. Tudo o que Shakespeare precisava era observar o mundo ao seu redor – e ele o fez como poucos outros artistas fizeram.
Shakespeare foi Shakespeare. Sua genialidade não é condicionada a ter ou não frequentado os bancos de uma Universidade. A matéria-prima de seus sonhos estava ao seu redor – na dor de perder um filho, na necessidade de lidar com colegas arrogantes que o ridicularizavam, num casamento possivelmente infeliz, em amores não correspondidos, na alegria de um trabalho para o qual se dedicou de corpo e alma em todos os momentos.
Shakespeare é imortal. Não envelhece. Suas palavras, suas emoções, seu conhecimento da alma humana continuam atuais. Ele nunca se torna repetitivo; há sempre algo novo para perceber, uma nova forma de interpretar, de ouvir seus versos.
Shakespeare é real.
“Alguns nascem grandes,
alguns alcançam a grandeza
e alguns têm a grandeza imposta a eles.”
- Noite de Reis -
alguns alcançam a grandeza
e alguns têm a grandeza imposta a eles.”
- Noite de Reis -
A Coruja
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