22 de setembro de 2012

Do Gênesis ao Apocalipse: Crime e Castigo

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O próximo marco em nossa lista foi publicado pouco mais de um século após a obra-prima de Voltaire e é outro dos meus clássicos favoritos. Se antes nos víamos num período de luzes e conhecimento, agora estamos numa época de violentas revoluções, preparando terreno para uma das grandes rupturas da história...

Numa palavra, concluo que todos os homens, não direi os grandes, mas todos os que estão acima da média, ou seja, os capazes de dizer algo de novo, concluo que devem absolutamente, pela sua natureza, ser criminosos... mais ou menos, naturalmente. De outra forma ser-lhes-ia difícil sair da vulgaridade. Quanto à minha divisão dos homens ordinários e extraordinários, convenho que é um pouco arbitrária. Duas categorias: a inferior, dos indivíduos ordinários, que são, por assim dizer, o material destinado à reprodução da espécie; a dos homens propriamente ditos, i.e., que possuem o dom ou o talento de proferir no seu meio, une parole neuve. A primeira é a dos conservadores, os que gostam de obedecer e ser obedecidos. A segunda transgride a lei, é a dos destruidores ou dos que tendem a sê-lo, consoante as suas capacidades. Na maior parte do tempo reclamam a destruição do presente com vista a um futuro melhor. Mas se necessitam, para a sua idéia, de passar por cima de um cadáver, podem tomar essa liberdade (aliás, note bem, sempre em proporção com a sua idéia e envergadura). Eis em que sentido falei, no meu artigo, do direito ao crime.
A primeira vez que li Crime e Castigo eu devia ter uns dezesseis para dezessete anos, porque foi no período entre fazer o vestibular e começar a faculdade – o que só aconteceu no segundo semestre... – e foi paixão à primeira vista. Eu me lembro muito bem da sensação de espanto, fascínio e encantamento desse primeiro contato e devo dizer que numa releitura, a história não perde nada de sua força.

Publicada em 1866 – um ano antes do primeiro volume de O Capital de Marx – ainda é um livro atual, que ecoa com nossas próprias crenças e experiências; uma obra-prima de um escritor que praticamente só escreveu obras-primas; grande mesmo entre os maiores clássicos que o gênio humano foi capaz de produzir.

Além de tudo, ao contrário do critério de alguns críticos que parecem considerar que a qualidade de uma obra é diretamente proporcional à dificuldade de compreensão e hermetismo da narrativa, Crime e Castigo tem uma linguagem extremamente fluida, sendo acessível e aberto a uma miríade de interpretações. O fato de Dostoiévski ter escrito esse calhamaço às pressas, premido por dívidas e editores – e ainda assim ter feito uma das melhores peças literárias de que se tem notícia – é só a cereja do bolo.

Agora conheça Raskólnikov, o protagonista deste calhamaço. Um jovem que abandonou os estudos (‘ex-estudante’ nas palavras do autor) a despeito de ser considerado inteligente – até genial em sua própria consideração -, vivendo miseravelmente num lugar e numa época em que essa é regra, não exceção.

Raskólnikov vive entre extremos: neurótico em momentos, apático em outros, cheio de energia e planos e em seguida prostrado e deprimido. Enquanto caminha sem direção pelas ruas de São Petersburgo, coleciona outras histórias de tristeza – como a de Marmeladov, cuja filha foi obrigada pela madrasta a se prostituir para poder prover a família, ou a de sua própria irmã, Dounia, que se obrigou a trabalhar para os Svidrigaïlov a despeito do chefe da família assediá-la, uma vez que teve de pedir dinheiro emprestado a ele para poder ajudar o próprio Raskólnikov.

Preso entre o desejo de ajudar, de fazer a diferença e sua própria incapacidade de levar a cabo um projeto, o jovem cria teorias que possam lhe dar a coragem de tomar uma atitude extrema, partindo do princípio de que o mundo está dividido entre pessoas ordinárias, a quem cabem as leis e a obediência e as extraordinárias, que não estavam sujeitas às convenções sociais.


Sustentado pela convicção de que é uma dessas pessoas extraordinárias e após algumas tentativas frustradas, Raskólnikov visita a velha usurária Alyona Ivanovna e racha o crânio da velha a machadadas para então roubar seu dinheiro e com ele poder afinal ser o altruísta a que aspirava.

Não demora contudo para que Raskólnikov perceba que não é uma pessoa extraordinária a quem tudo é permitido ainda que suas intenções sejam boas. A culpa é esmagadora o suficiente para que ele adoeça, chegando à beira da loucura, até encontrar expiação através de Sonia, a filha prostituta de Marmeladov.

A despeito do homicídio de Alyona (e da irmã desta, que chega em momento inoportuno), Raskólnikov é genuinamente bom. Ele tem suas muitas falhas, inclusive de caráter, e é ridiculamente ingênuo, mas a despeito do sangue em suas mãos, ele é inocente.

Não inocente do assassinato que comete, claro – e pelo qual tem de assumir a responsabilidade ou perder a própria sanidade -, mas inocente do mundo. Dostoiévski criou nele um personagem que é contraditório, crível e com que somos capazes de nos identificar a despeito de seus feitos, de seus crimes.

E não se trata apenas de Raskólnikov. De uma forma geral, todos os personagens do romance têm sua importância, seu momento de triunfo – e suas próprias tragédias. E, se não há finais felizes, resta ao menos esperança.
Oh, sim, quando é preciso, afogamos até nosso senso moral, a liberdade, a tranquilidade, até a consciência, tudo, tudo, vendemos tudo por qualquer preço! Contanto que nossos entes queridos sejam felizes.


A Coruja


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2 comentários:

  1. Preciso tomar vergonha na cara e começar a ler os russos que meu professor de Estética tanto sugeria... :~

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  2. Li a pouco tempo esse livro. Fiquei completamente surpreendida com "Crime e castigo". Foi um dos livros que mais emocionou... E acaba-se por compreender no fim os seus verdadeiros motivos para cometer o crime. Gostei bastante de Sónia, e o facto de ser ela que permitiu a regeneração do protagonista.

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