24 de agosto de 2011
Por Dentro da Cabeça da Autora: Receita de Conto de Fadas
Tenho um interesse especial em contos de fadas – e não é de hoje. Gosto da estrutura deles, da forma como sua linguagem parece musicada, do diálogo desses contos com a cultura do local onde se originam, da temporária suspensão das leis do ‘mundo real’, da forma como uma camada de beleza e magia esconde sombras e decadência.
Que fique claro: estou falando dos contos de fadas clássicos, não necessariamente das versões água com açúcar da Disney, que se inspiram nas já diluídas versões de Perrault, Andersen e os irmãos Grimm. Nada contra essas versões – se eu tivesse filhos, eu leria elas para os pirralhos e não sobre o príncipe estuprar Bela Adormecida e as irmãs da Cinderela cortando fora partes dos pés para caber no sapatinho.
Gosto ainda mais das histórias que se passam em Faërie, a Terra das Fadas – e a Floresta Perigosa de Forget-me-not está para além das fronteiras do nosso mundo, sendo um tributo a esse tecido de magia e encanto tratado em diversas obras que conheci em minha missão divina (hein?) de conhecer os grandes mestres da fantasia universal.
Em The Well at the World’s End, de William Morris, o protagonista se perde também numa ‘Floresta Perigosa’, onde passará por diversas aventuras antes de voltar para casa. Como em Lud-in-the-mist, de Hope Mirrlees, diz-se que ninguém volta de lá até que Chanticleer retorne trazendo os filhos roubados de Dorimare. E em The King of Elfland’s Daughter, obra-prima de Lorde Dunsany, o príncipe Alveric volta para casa pensando que se passaram apenas alguns dias em Elfland... para descobrir que anos e anos correram desde sua partida.
Todas essas histórias têm em comum uma proibição, desobedecida pelo protagonista, que parte em uma jornada em busca de verdade, beleza, imortalidade. Todos eles voltam dessas viagens transformados por aquilo que viram; eles se tornam mais que humanos, mas não ascendem a habitantes de Faërie e, independente de finais felizes, serão sempre personagens deslocados, incapazes de verdadeiramente se misturar com os outros que não tiveram suas mesmas experiências.
É o que acontece com Frodo no final de O Senhor dos Anéis, que é mais que um hobbit do condado: ele foi um dos portadores do Anel e essa experiência o separa até mesmo de seus companheiros de jornada.
Todas essas histórias me serviram de inspiração para criar a floresta que é o mundo onde se desenrola verdadeiramente a ação de ‘Forget-me-not’ – embora eu só tenha vindo perceber isso de maneira consciente quando já estava terminando de escrevê-la. Originalmente, meu pensamento estava na floresta de Quando as Bruxas Viajam, do Terry Pratchett, que a fada-madrinha vilã enfeitiçou para obrigar que as histórias acontecessem até o final, independente da vontade dos personagens.
Claro que há uma dezena de outros ingredientes nesse caldeirão. A história dos amantes separados por um encanto que os faz tomar formas animais alternadamente de noite e de dia é uma homenagem óbvia a um dos clássicos de minha infância: O Feitiço de Áquila. E, se for contar que toda a idéia do conto me surgiu após uma overdose de livros sobre o tema, posso também indicar aqui A Menina do Capuz Vermelho e outras histórias, da Angela Carter e, acima de todos (até porque foi no dia seguinte que terminei de lê-lo que ‘Forget-me-not’ me chutou da cama para começar a escrever), A História sem Fim, de Michael Ende.
Depois de largar tudo isso junto comecei a tentar fazer sentido de onde, exatamente, meus personagens queriam chegar. Eu tinha uma idéia mais ou menos formada do que aconteceria, mas a coisa só fechou mesmo quando conversei com a Ana e ela me deu a idéia de que, como em Labirinto, o irmão da protagonista tivesse sido roubado pelo rei dos goblins ou houvesse alguém como a viúva de Krull pelo meio do caminho.
Tive de abandonar algumas idéias também... no princípio de tudo, eu fazia absoluta questão de enfiar um dragão na história... mas depois acabei desistindo disso, substituindo-o pelo Senhor da Floresta e o poço das aranhas (numa homenagem ao mito grego da tecelã Ariadne, transformada em aranha após desafiar a deusa Atena) como justificativas para a separação de Mina e Isaac.
A última peça do quebra-cabeça caiu quando encaixei a rainha Meridiana criança, entrando na floresta, caindo no poço das aranhas, dessa forma dando início a todo o ‘jogo de xadrez’ do Bardo para libertar a Dama do Lago.
Ah, sim, eu não me toquei a princípio da referência que estava fazendo com a Dama do Lago, porque pensava no Bardo como uma releitura de Oberon em Sonho de uma Noite de Verão - tanto que meu título de trabalho inicial era esse. Mas aí a Régis comentou que tinha ficado surpresa em como eu tinha enfiado Merlin na equação e eu fiquei ‘hã, como assim?’ até ela dizer Dama do Lago.
Mas, sendo muito, muito, muito sincera, quando estava descrevendo a Dama do Lago adormecida na caverna, eu estava pensando em Ofélia, de Hamlet... e também, a muito contra-gosto, na Bela Adormecida.
Há várias histórias sobrepostas em Forget-me-not e eu poderia ter escolhido contá-la sob o ponto de vista de qualquer uma delas: como uma sucessão de conseqüências para a queda da menina Meridiana; como uma série de ações deliberadas do Bardo para conseguir libertar sua Dama; como a busca de Herman por sua semente-botão-de-flor-Lorelai; pelo aprendizado da cigana Raven para ser capaz de encontrar seu próprio destino... isso sem contar nas histórias que ficam apenas delineadas, sugeridas, adivinhadas nas taças de chá da profetisa ou nas borboletas da Dama Viúva.
Mas nenhum deles é meu personagem – embora se tornem um pouco meus nesse conto. Eles são da Ana, da Régis, da Jujuba, da Dani, da Lucilla, da Selhe, do Rapha... Companheiros de escrita nos últimos oito anos (caramba, já faz tanto tempo assim?) e os amigos a quem dedico meu conto de fadas um bocado viajado.
Mina e Isaac, contudo, são meus, exclusivamente meus e ninguém tasca (huahuahuahua...). Em todos esses anos escrevendo (e cozinhando em banho-maria) esses dois, eles meio que tomaram vida própria e se desenvolveram muito além do background que tinham de início. Assim, era bastante óbvio que, se fosse para escrever um spin-off do Expresso, eu acabaria por usar os dois.
E também, depois de tanto tempo ainda sem conseguir resolver os dois (mas estamos chegando lá, estamos chegando lá), aproveito qualquer oportunidade para jogá-los junto de uma vez.
Gosto de escrever Mina e Isaac – por mais que alguns leitores possam me odiar pela demora que tenho dado para fazê-los acordar para a vida e perceberem o que era óbvio para todo mundo que os cerca quase que desde o princípio.
A questão é... não acredito amor à primeira vista e sou da opinião de que paixões avassaladoras, com o tempo, acabam esfriando e sem respeito e amizade, se tornam uma espiral de culpa, rancor, trocas de acusações, etc, etc, etc. E isso foi uma constante na minha cabeça desde que comecei a escrever esses dois no Expresso – e é o mesmo que acontece em Forget-me-not.
Não concordo com damas em apuros à espera do salvamento. Detesto, DETESTO princesas inúteis de contos de fadas. Dessa forma, eu não podia simplesmente fazer com que meu caro príncipe tivesse todo o trabalho enquanto a princesa ficava lá, bonita como papel de parede e cara de paisagem, esperando para ser resgatada. Só funciona se eles se encontram no meio do caminho – e é exatamente isso que Mina e Isaac fazem metafórica e literalmente falando.
Mina não é resgatada por Isaac. Na verdade, ela nem quer isso e o diz com todas as letras para Herman a determinada altura da história, logo depois que o grupo é separado. Ela vive sua própria aventura, que não está necessariamente ligada à aventura que Isaac tem de resolver – mas as decisões que os dois tomam influenciam a capacidade de se reencontrarem e poderem sair da floresta.
Nesse contexto, as flores que forjam a ligação entre eles é um dado importante – e um dado importante em todas as histórias que se entrecruzam na floresta. As miosótis, que em inglês são chamadas de ‘forget-me-not’ – não me esqueças – significam fidelidade. É na fidelidade aos seus princípios e aos sentimentos que nutrem pelos outros que TODOS os personagens da história – e não apenas Isaac e Mina – encontram seu final feliz.
Ao mesmo tempo em que são fiéis, os personagens não se esquecem – eles são persistentes em seus objetivos e fiéis também às suas memórias; e daí se reveste de um significado ainda mais importante o que a Dama Viúva faz, devorando as memórias de suas vítimas. O Bardo não desiste de acordar sua Dama, seja quais forem as conseqüências; Raven busca por Luke por anos, a despeito do fato de não querer se casar com ele, por entender que foi um seu desejo infantil a causa dele ter se perdido; Herman segue a profecia da adivinha atrás da semente que lhe foi roubada...
E como final, temos um reencontro burlesco a la Shakespeare, quando, claro, óbvio e ululante, Dona Lulu tinha que meter o dedo e tirar uma com a cara dos coitados de seus personagens.
Eu gosto do final desse conto, ainda que ele não seja, necessariamente, o final da história. Raven apenas aceitou conhecer Luke, mas não duvido que antes mesmo de eles reencontrarem suas respectivas tribos, acabem se juntando. Herman sequer contou a Lorelai que ela era a semente dele, mas é certo que, mais cedo ou mais tarde, Mina tenha de providenciar um aumento na casa de bonecas para a família da fada e do duende. A irmãzinha de Isaac deve ter nascido em algum momento e é possível que, falando em bebês, após o reencontro emocionado, Lucien e Meridiana tenham se posto ao trabalho de produzir mais princesinhas e principezinhos.
Gosto especialmente do fato de que em vez de simplesmente se dobrarem aos desejos do rei Kyle, Mina e Isaac acabem não se casando no final. Eles são jovens e têm todo o tempo do mundo – tempo para se acostumarem com a idéia de que têm todo o tempo do mundo juntos.
E sabe-se lá o que o Bardo e a Dama do Lago ficaram aprontando na floresta... mas é certo que houve muita dança e muito canto e talvez até um ou dois dragões tenham se empolgado e por isso foram vistos de longe jorros de fogos que pareciam cascatas no céu.
Mas essas são histórias que ficarão para uma próxima vez, quando outro aventureiro incauto acabar por entrar na Floresta...
A Coruja
Arquivado em
forget-me-not
por dentro da cabeça da autora
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sobre
Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Eu devia ter falado isso antes, mas meus sinceros parabéns por essa história... Foi uma das coisas mais incríveis que eu já li :D Há tempo que eu procurava uma boa história de contos de fadas que também fizesse uma homenagem aos contos de fadas (que são, afinal de contas, uma origem para tudo que se faz na literatura fantástica hoje em dia), principalmente porque tinha essa ideia de escrever algo a partir dessa ideia... Forget-me-not foi a melhor inspiração que eu poderia querer, e alguns aspectos dela me inspiraram a começar um romance que ia participar de um concurso (mas a participação acabou cancelada por problemas de prazo -_-'), um projeto em que eu ainda estou trabalhando mesmo agora... Se você tiver lido o último post no meu blog, deve ter notado algumas referências, inclusive... De qualquer forma, foi uma história incrível, muito obrigada por dividir ela conosco e espero que no futuro outros projetos tão bons quanto sejam divulgados aqui no Coruja. Eu certamente os lerei :) xx
ResponderExcluirÉ por causa de comentários como esse, Rafa, que a despeito de qualquer coisa, eu não consigo deixar de escrever. Obrigada!
ResponderExcluir