9 de fevereiro de 2011

Desafio Literário 2011: Fevereiro - Biografia e/ou Memórias|| As Cartas de J. R. R. Tolkien



13 de outubro de 1938
20 Northmoor Road, Oxford

Caro Sr. Unwin,

...Trabalhei arduamente por um mês (no período que meus médicos disseram que deveria ser dedicado a alguma distração!) em uma continuação para O Hobbit. Ela alcançou o Capítulo XI (mas em um estado bastante ilegível); estou agora completamente absorvido nela, e tenho todos os encadeamentos em mãos — e tenho de colocá-la completamente de lado, até não sei quando. Até mesmo o recesso natalino será obscurecido por manuscritos da Nova Zelândia, visto que meu amigo Gordon morreu no meio das Provas de Bacharelado deles, e tenho que terminar de avaliar os documentos. Mas ainda tenho esperanças de ser capaz de enviar a continuação para apreciação no início do ano que vem. Quando falei, em uma carta anterior ao Sr. Furth, que essa continuação estava “saindo de controle”, não o fiz gratuitamente. O que eu realmente quis dizer é que a história está seguindo seu curso e esquecendo-se das “crianças”, tornando-se mais assustadora do que o Hobbit. Ela pode mostrar-se bastante inadequada. É mais “adulta” — mas meus próprios filhos, que fazem críticas a ela tal como se encontra, estão agora mais velhos. Espero, no entanto, que o senhor julgue isso por si mesmo algum dia! A escuridão dos dias atuais teve algum efeito sobre ela, embora não seja uma “alegoria”. (Já recebi uma carta dos Estados Unidos pedindo uma explicação peremptória da alegoria de O Hobbit.)

Sinceramente

J. R. R. Tolkien.

Tolkien, uma biografia e As Cartas de J. R. R. Tolkien estavam lado a lado na estante da livraria quando me deparei com eles algum tempo atrás. Dúvida não havia que, se era para ler sobre alguma figura histórica, eu leria sobre um dos meus autores favoritos. A questão agora era só escolher se que forma eu preferia fazer isso.

Ler uma biografia, escrita por outra pessoa que não a própria figura-objeto da mesma, significa enxergar o biografado pelo olhar de outra pessoa, filtrada pelas opiniões e pré-conceitos dessa outra pessoa. Imparcialidade absoluta é algo, ao final das contas, impossível de se alcançar.

Assim, preferi ler Tolkien elo próprio Tolkien, ainda que severamente editado. Sei que uma coletânea de cartas não se trata exatamente de um mémoir, mas aí é que está a questão: lemos essas biografias e memórias na tentativa (e ilusão) de conhecer essas pessoas. Mas, se queremos realmente conhecê-las, será que não é melhor julgá-las pelas suas próprias palavras em vez de por um punhado de dados e fatos oficiais juntados por um biógrafo, por mais judicioso que este seja?

O caso, no final das contas, é que não me arependo da minha escolha. Sempre admirei Tolkien como autor - a imaginação, o talento, o detalhismo e perfeccionismo, a paciência. Quando li, em dezembro, Cartas do Pai Natal, comecei também a admirá-lo como homem e como pai.

Na verdade, mais que a figura do escritor, o que emerge das cartas de Tolkien é sua figura de homem de família. O amor pela esposa, Edith, e pelos filhos, é palpável em cada uma das missivas dedicadas a eles.

A correspondência de Tolkien revela também um senso de humor maravilhoso - adoro as tiradas irônicas, sempre muito elegantes, mas ainda assim direto ao alvo. Exemplo disso foi a resposta dele quando editores alemães, interessados em publicar O Hobbit, perguntaram sobre sua ascendência:

25 de julho de 1938
20 Northmoor Road, Oxford

Caros Senhores,

Obrigado por sua carta... Lamento informar que não me ficou claro o que os senhores querem dizer com
arisch. Não sou de origem ariana: tal palavra implica indo-iraniana; que eu saiba, nenhum dos meus antepassados falava flindustani, persa, romani ou qualquer dialeto relacionado. Mas se devo deduzir que os senhores estão me perguntando se eu sou de origem judaica, só posso responder que lamento o fato de que aparentemente não possuo antepassados deste povo talentoso. Meu tataravô chegou na Inglaterra no século XVIII vindo da Alemanha: a maior parte da minha ascendência, portanto, é puramente inglesa, e sou um indivíduo inglês — o que deveria ser suficiente. Fui acostumado, no entanto, a estimar meu nome alemão com orgulho, e continuei a fazê-lo no decorrer do período da lamentável última guerra, na qual servi no exército inglês. Não posso, entretanto, abster-me de comentar que, se indagações impertinentes e irrelevantes desse tipo tornar-se-ão a regra em matéria de literatura, então não está longe o tempo em que um nome alemão não mais será um motivo de orgulho. O questionamento dos senhores sem dúvida é feito para estar de acordo com as leis de seu próprio país, mas seria inapropriado pensar que isso deveria aplicar-se a indivíduos de outro Estado, mesmo que isso tivesse (se bem que não tem) qualquer relação com os méritos do meu trabalho ou sua adequação à publicação, com a qual os senhores aparentemente ficaram satisfeitos sem referência a minha Abstammung.

Tenho fé de que os senhores acharão essa resposta satisfatória, e permaneço fielmente seu

J. R. R. Tolkien.

Ao mesmo tempo, há um mundo de curiosidades a ser desvendadas - detalhes sobre filologia, genealogias e História da Terra-Média, sobre as quais Tolkien disserta em diversas missivas para leitores e editores de sua obra.

De mais a mais, é um livro que vale à pena - muito à pena - para qualquer aficcionado por Tolkien. É uma chance de conhecer um pouco mais desse homem extraordinário - tanto no alcance de sua obra, quanto em sua vida.

Nota: 5
(de 1 a 5, sendo: 1 – Péssimo; 2 – Ruim; 3 – Regular; 4 – Bom; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: A Cartas de J. R. R. Tolkien
Organização: Humphrey Carpenter
Tradução: Gabriel Oliva Brum
Editora: Arte e Letra
Ano: 2006
Número de páginas: 470



A Coruja


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3 comentários:

  1. Irei à falência #fato
    hehehehehe báh que coisa legal saber o que Tolkien que emerge destas cartas não é unicamente o autor mas também o homem, dá ainda mais vontade de ler. Conhecia esse episódio dos editores alemães mas poder ler a carta é praticamente impagável. Como sempre adorei o teu texto.
    estrelinhas coloridas...

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  2. Conteúdo inspirador esse! Tá na lista de livros a adquirir. Bjs

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  3. Adorei sua resenha, assim como vc tb adoro as obras de Tolkien inclusive já comecei a ler para o DL de março O Hobbit, e estou me deliciando.
    Fiquei bastante interessada em ler este livro. Parabéns pela escolha.
    Bjocas

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