17 de setembro de 2010
Por que amamos notas de rodapé?
Eu não tenho exata certeza de como foi que começou o fogo cruzado - algo entre a Ana, tradutora e responsável pelo excelente iCult Generation e a Fabi, da Editora Underworld. Eu meio que caí de pára-quedas na história quando respondi que amava uma boa nota de rodapé e, quando vi, a Ana estava me convidando para escrever um artigo sobre o assunto para o site.
E, bem... cá estamos nós. A Ana publicou o texto hoje de madrugada - a primeira de, eu espero, muitas outras colaborações (porque, sinceramente, eu me senti bastante honrada com o convite, especialmente porque a Ana me conhecia talvez fizesse uns... dois dias? E eu já tinha visto a qualidade dos textos do iCult - muito, muito bons).
Então, sem mais delongas, cliquem no avatar abaixo para ler o artigo Por que amamos notas de rodapé?
Elas são o pesadelo de todo graduando ou qualquer um que esteja escrevendo um artigo científico – que jogue a primeira pedra quem nunca amaldiçoou internamente as notas de rodapé e as normas da ABNT (1).
Fora dos trabalhos acadêmicos e pedantismos em geral, contudo, elas podem representar um mundo de detalhes e inteiras histórias, contribuindo para satisfazer (2) a curiosidade dos leitores ou dando mais veracidade à narrativa – ainda que fazendo referências a livros e eventos imaginários.
Traçar a origem das notas de rodapé não é tarefa fácil. Talvez devamos nos remeter aos fenícios, inventores do alfabeto. Sendo um povo de comerciantes, precisavam escrever contratos; e contratos, como todo mundo sabe, são cheios de letras pequenas e, de preferência, quase ilegíveis, em algum ponto oculto do papel (3), de forma que, quando você menos esperar, aparecerá uma cláusula (4) para te deixar em maus lençóis.
Os historiadores e estudiosos do assunto (5), contudo, não são unânimes em estabelecer uma origem ou data de nascimento para as notas de rodapé. Há teorias que apontam o século XII, ou o XVII, o XVIII ou ainda o XIX.
Particularmente, eu situaria seu advento pela Idade Média, com a escola dos Glosadores e o início das Universidades – porque, ao contrário do que usualmente se reproduz nos livros de História, a Idade Média não foi um período exclusivamente de trevas e ignorância (6).
Bem, a escola dos Glosadores desenvolveu-se por volta do final do século XI, na Universidade da Bolonha. O mundo redescobria os clássicos, em especial o Direito Romano e, nas universidades, desenvolvia-se o método da glosa: analisava-se os textos em comento, aclarando e explicando o significado de cada palavra ou fragmento, de forma a se chegar a uma interpretação geral.
Em suma, toda expressão curiosa, todo detalhe mínimo, merecia uma glosa, uma anotação (7) e assim começaram as notas de rodapé.
No primeiro capítulo de seu The Footnote: a curious history, Anthony Grafton começa tomando nota de Edward Gibbon, escritor do século XVIII, responsável pela História do Declínio e Queda do Império Romano, observando que nenhum outro historiador iluminista alcançara o mesmo nível épico e estilo clássico do mesmo: “e nada naquele trabalho fez mais que suas notas de rodapé – seja para divertir seus amigos ou exasperar seus inimigos” (8).
Ao mesmo tempo em que metodicamente compilava a história do Império Romano, Gibbon complementava seu livro com irreverentes notas, comentando indiscrições sexuais de personagens importantes ou adicionando suas impressões pessoais sobre o assunto em comento – como o faz, por exemplo, ao discorrer sobre Bernard de Clairvaux (9) e do processo de castração pelo qual passavam alguns monges cristãos que buscavam permanecer castos e puros (10).
Gibbon talvez seja um dos primeiros a ter usado as notas de rodapé como mais que um veículo de informação e interpretação, mas também para reproduzir suas impressões pessoais (muitas vezes sarcásticas), acrescentando alguns detalhes deliciosos para seus leitores.
Avançando um pouco no tempo, encontramos muitos autores adeptos de notas de rodapé – não apenas para darem explicações aos seus leitores, situando-os no tempo e espaço, mas também criando verdadeiras histórias paralelas naquele minúsculo espaço entre a linha divisória e o fim da página.
Minha particular favorita é a história de Santa Beryl, no Belas Maldições, de Terry Pratchett e Neil Gaiman.
Pratchett é um especialista em notas de rodapé e qualquer leitor de Discworld conhece bem o valor dessas notas para suas histórias – elas nunca são apenas complementos pelos quais se pode passar por cima na pressa, mas detalhes que ajudam a dar tempero, que nos fazem rir sozinhos e que só contribuem para a genialidade das criações desse autor.
Na mesma linha, temos o irlandês Flann O’Brien, autor de O Terceiro Tira, cujas extensas notas supostamente escritas pelo filósofo de Selby, narrador da história, adicionam ao tom absurdo do livro e servindo como sátira ao pedantismo dos debates acadêmicos.
Não posso me esquecer também de T. H. White, com quem tive intensas lições de cavalaria e falcoaria nos volumes que compõem a série O Único e Eterno Rei – explicações detalhadas, que fora do texto principal, ajudavam a dar o gosto da época, dos costumes, tornando ainda mais completa a experiência de ler sua obra.
Não são, é claro, apenas as notas dos autores que nos ajudam a compreender melhor uma história. Tão importante quanto elas, as notas de rodapé adicionadas por tradutores nos auxiliam no entendimento de detalhes que podem se perder na tradução – trocadilhos, detalhes históricos ou culturais que podem ser de comum conhecimento no país de origem, mas do qual não necessariamente temos ciência aqui.
Assim, as notas de rodapé podem ser uma glosa, um auxílio à compreensão e interpretação de determinado texto; um comentário pessoal do autor e do tradutor, compartilhando sua própria experiência com o leitor; uma história dentro da história ou ainda uma porta de entrada ao conhecimento.
Perdi a conta do número de vezes em que, após ter visto um comentário numa nota de rodapé, fui pesquisar para saber mais sobre o assunto (12); algumas notas de rodapé me apresentaram a outros livros e outros autores, a outros países, a outros folclores e lendas, a outras culturas.
E não é essa a função principal das notas de rodapé: passar informações aos leitores?
Que conclusão podemos agora tirar dessa história? Bem, da próxima vez que estiver lendo algum livro ou artigo e se deparar com uma notinha no final da página, pense duas vezes antes de ignorar aquelas poucas linhas como se fossem supérfluos sem importância. Elas até podem não mudar sua vida de forma total e irrevogável, mas certamente vão te oferecer alguma coisa – conhecimento afinal, nunca é demais.
E, quem sabe? Você sempre pode encontrar um Graal perdido por aí (13)…
__________________________________________________
1. Peraí, peraí… é negrito no nome do autor, itálico no título e normal no resto ou isso era ano passado???
2. Ou atiçar.
3. Ou papiro, tábuas cuneiformes e variantes…
4. Que já estava lá, é claro… mas você não prestou atenção.
5. Porque a história das notas de rodapé é suficientemente importante para ter gente que estuda e escreve só sobre isso. Eu encontrei pelo menos uns três livros sobre o assunto quando estava pesquisando.
6. Isso era intriga da oposição, mais especificamente, dos renascentistas.
7. De rodapé ou escrita pelos lados, em qualquer canto disponível da página, vertical ou horizontal
8. GRAFTON, Anthony. The footnote: a curious history. Harvard University Press, 1997, p. 2.
9. Abade de Clairvaux na França foi uma personalidade extremamente influente na Europa do século XII, canonizado em 1174.
10. “Como era de sua prática geral interpretar as Escrituras como alegorias, parece-me desafortunado que, neste aspecto apenas, ele tenha adotado o sentido literal.”
11. GAIMAN, Neil. PRATCHETT, Terry. Belas Maldições: as belas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 24-25.
12. Em especial nos livros do Umberto Eco, que sempre me deixam com a sensação socrática de que “só sei que nada sei”.
13. O que, você nunca assistiu a “Indiana Jones e a Última Cruzada”? Não sabe que o Graal é a taça mais inconspícua de todas?
E, bem... cá estamos nós. A Ana publicou o texto hoje de madrugada - a primeira de, eu espero, muitas outras colaborações (porque, sinceramente, eu me senti bastante honrada com o convite, especialmente porque a Ana me conhecia talvez fizesse uns... dois dias? E eu já tinha visto a qualidade dos textos do iCult - muito, muito bons).
Então, sem mais delongas, cliquem no avatar abaixo para ler o artigo Por que amamos notas de rodapé?
Elas são o pesadelo de todo graduando ou qualquer um que esteja escrevendo um artigo científico – que jogue a primeira pedra quem nunca amaldiçoou internamente as notas de rodapé e as normas da ABNT (1).
Fora dos trabalhos acadêmicos e pedantismos em geral, contudo, elas podem representar um mundo de detalhes e inteiras histórias, contribuindo para satisfazer (2) a curiosidade dos leitores ou dando mais veracidade à narrativa – ainda que fazendo referências a livros e eventos imaginários.
Traçar a origem das notas de rodapé não é tarefa fácil. Talvez devamos nos remeter aos fenícios, inventores do alfabeto. Sendo um povo de comerciantes, precisavam escrever contratos; e contratos, como todo mundo sabe, são cheios de letras pequenas e, de preferência, quase ilegíveis, em algum ponto oculto do papel (3), de forma que, quando você menos esperar, aparecerá uma cláusula (4) para te deixar em maus lençóis.
Os historiadores e estudiosos do assunto (5), contudo, não são unânimes em estabelecer uma origem ou data de nascimento para as notas de rodapé. Há teorias que apontam o século XII, ou o XVII, o XVIII ou ainda o XIX.
Particularmente, eu situaria seu advento pela Idade Média, com a escola dos Glosadores e o início das Universidades – porque, ao contrário do que usualmente se reproduz nos livros de História, a Idade Média não foi um período exclusivamente de trevas e ignorância (6).
Bem, a escola dos Glosadores desenvolveu-se por volta do final do século XI, na Universidade da Bolonha. O mundo redescobria os clássicos, em especial o Direito Romano e, nas universidades, desenvolvia-se o método da glosa: analisava-se os textos em comento, aclarando e explicando o significado de cada palavra ou fragmento, de forma a se chegar a uma interpretação geral.
Em suma, toda expressão curiosa, todo detalhe mínimo, merecia uma glosa, uma anotação (7) e assim começaram as notas de rodapé.
No primeiro capítulo de seu The Footnote: a curious history, Anthony Grafton começa tomando nota de Edward Gibbon, escritor do século XVIII, responsável pela História do Declínio e Queda do Império Romano, observando que nenhum outro historiador iluminista alcançara o mesmo nível épico e estilo clássico do mesmo: “e nada naquele trabalho fez mais que suas notas de rodapé – seja para divertir seus amigos ou exasperar seus inimigos” (8).
Ao mesmo tempo em que metodicamente compilava a história do Império Romano, Gibbon complementava seu livro com irreverentes notas, comentando indiscrições sexuais de personagens importantes ou adicionando suas impressões pessoais sobre o assunto em comento – como o faz, por exemplo, ao discorrer sobre Bernard de Clairvaux (9) e do processo de castração pelo qual passavam alguns monges cristãos que buscavam permanecer castos e puros (10).
Gibbon talvez seja um dos primeiros a ter usado as notas de rodapé como mais que um veículo de informação e interpretação, mas também para reproduzir suas impressões pessoais (muitas vezes sarcásticas), acrescentando alguns detalhes deliciosos para seus leitores.
Avançando um pouco no tempo, encontramos muitos autores adeptos de notas de rodapé – não apenas para darem explicações aos seus leitores, situando-os no tempo e espaço, mas também criando verdadeiras histórias paralelas naquele minúsculo espaço entre a linha divisória e o fim da página.
Minha particular favorita é a história de Santa Beryl, no Belas Maldições, de Terry Pratchett e Neil Gaiman.
Santa Beryl Articulata de Cracóvia, de quem se diz ter sido martirizada em meados do século V. Segundo a lenda, Beryl era uma jovem que foi entregue como noiva contra a sua vontade a um pagão, o Príncipe Casimir. Em sua noite de núpcias, ela rezou para o Senhor interceder, esperando vagamente que uma barba milagrosa aparecesse, e na verdade ela já tinha à mão uma pequena navalha de cabo de marfim, adequada para damas, especialmente para essa eventualidade; em vez disso, o Senhor garantiu a Beryl a habilidade milagrosa de falar ininterruptamente sobre o que lhe viesse à mente, por mais inconseqüente que fosse, sem pausa para respirar ou comer.
Segundo uma versão da lenda, Beryl foi estrangulada pelo Príncipe Casimir três semanas após o casamento, sem consumar as núpcias. Ela morreu virgem e mártir, matraqueando até o fim.
Segundo outra versão da lenda, Casimir comprou um par de tampões de ouvido, e ela morreu na cama, com ele, aos sessenta e dois anos.
A Ordem Faladeira de Santa Beryl tem o voto de imitar Santa Beryl em todos os momentos, exceto nas tardes de terça-feira, por meia hora, quando as freiras recebem permissão de se calar e, se desejarem, jogar pingue-pongue. (11)
Pratchett é um especialista em notas de rodapé e qualquer leitor de Discworld conhece bem o valor dessas notas para suas histórias – elas nunca são apenas complementos pelos quais se pode passar por cima na pressa, mas detalhes que ajudam a dar tempero, que nos fazem rir sozinhos e que só contribuem para a genialidade das criações desse autor.
Na mesma linha, temos o irlandês Flann O’Brien, autor de O Terceiro Tira, cujas extensas notas supostamente escritas pelo filósofo de Selby, narrador da história, adicionam ao tom absurdo do livro e servindo como sátira ao pedantismo dos debates acadêmicos.
Não posso me esquecer também de T. H. White, com quem tive intensas lições de cavalaria e falcoaria nos volumes que compõem a série O Único e Eterno Rei – explicações detalhadas, que fora do texto principal, ajudavam a dar o gosto da época, dos costumes, tornando ainda mais completa a experiência de ler sua obra.
Não são, é claro, apenas as notas dos autores que nos ajudam a compreender melhor uma história. Tão importante quanto elas, as notas de rodapé adicionadas por tradutores nos auxiliam no entendimento de detalhes que podem se perder na tradução – trocadilhos, detalhes históricos ou culturais que podem ser de comum conhecimento no país de origem, mas do qual não necessariamente temos ciência aqui.
Assim, as notas de rodapé podem ser uma glosa, um auxílio à compreensão e interpretação de determinado texto; um comentário pessoal do autor e do tradutor, compartilhando sua própria experiência com o leitor; uma história dentro da história ou ainda uma porta de entrada ao conhecimento.
Perdi a conta do número de vezes em que, após ter visto um comentário numa nota de rodapé, fui pesquisar para saber mais sobre o assunto (12); algumas notas de rodapé me apresentaram a outros livros e outros autores, a outros países, a outros folclores e lendas, a outras culturas.
E não é essa a função principal das notas de rodapé: passar informações aos leitores?
Que conclusão podemos agora tirar dessa história? Bem, da próxima vez que estiver lendo algum livro ou artigo e se deparar com uma notinha no final da página, pense duas vezes antes de ignorar aquelas poucas linhas como se fossem supérfluos sem importância. Elas até podem não mudar sua vida de forma total e irrevogável, mas certamente vão te oferecer alguma coisa – conhecimento afinal, nunca é demais.
E, quem sabe? Você sempre pode encontrar um Graal perdido por aí (13)…
1. Peraí, peraí… é negrito no nome do autor, itálico no título e normal no resto ou isso era ano passado???
2. Ou atiçar.
3. Ou papiro, tábuas cuneiformes e variantes…
4. Que já estava lá, é claro… mas você não prestou atenção.
5. Porque a história das notas de rodapé é suficientemente importante para ter gente que estuda e escreve só sobre isso. Eu encontrei pelo menos uns três livros sobre o assunto quando estava pesquisando.
6. Isso era intriga da oposição, mais especificamente, dos renascentistas.
7. De rodapé ou escrita pelos lados, em qualquer canto disponível da página, vertical ou horizontal
8. GRAFTON, Anthony. The footnote: a curious history. Harvard University Press, 1997, p. 2.
9. Abade de Clairvaux na França foi uma personalidade extremamente influente na Europa do século XII, canonizado em 1174.
10. “Como era de sua prática geral interpretar as Escrituras como alegorias, parece-me desafortunado que, neste aspecto apenas, ele tenha adotado o sentido literal.”
11. GAIMAN, Neil. PRATCHETT, Terry. Belas Maldições: as belas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 24-25.
12. Em especial nos livros do Umberto Eco, que sempre me deixam com a sensação socrática de que “só sei que nada sei”.
13. O que, você nunca assistiu a “Indiana Jones e a Última Cruzada”? Não sabe que o Graal é a taça mais inconspícua de todas?
A Coruja
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