14 de junho de 2010

Jane Austen – Parte IV: uma criatura sui generis




É engraçado que, se você for para a ponta do lápis com os livros de Austen, vai perceber que eles têm um cronograma quase perfeito. Você pode se localizar temporalmente, numa seqüência de acontecimentos bastante lógica – um detalhismo que parece se contrapor à pouquíssima descrição física que ela faz.

Há inúmeros artigos de estudiosos que montam esses calendários dia-a-dia, alguns devotando uma enorme atenção até a descobrir a exata época em que cada história se passaria, fazendo cálculos que envolvem o ano em que ela começou a escrever tal história, o ano em que a história foi publicada – tendo assim passado por uma última revisão – para depois sair catando no calendário quando nessa margem houve páscoa em março ou abril; quando o livro que determinado personagem aparece segurando foi popular, vasculhando a parca correspondência que foi preservada pela família (que preferiu queimar a maior parte) e assim por diante.

E tem gente que diz que eu sou maníaca e perfeccionista...


O único romance, contudo, que realmente tem uma data absolutamente certa trazida no próprio bojo da história é Persuasão, assunto, aliás, sobre o qual já tratamos num dos capítulos anteriores desse especial.

E, se vocês prestarem muita, muita atenção nas histórias, vão perceber que em quase todos os seus romances (exceto pela Abadia de Northanger), incluindo aqueles que compõem a chamada Juvenilia, alguma coisa muito ruim sempre acontece nas terças-feiras.

Sério, as terças de Austen são malditas – geralmente elas terminam com o herói/heroína sofrendo uma grande decepção/humilhação ou golpe violento em sua dignidade.

A essa altura, vocês já devem estar se perguntando onde quero chegar com tudo isso... bem, o que estou tentando mostrar é exatamente o nível de detalhismo quase obsessivo que Austen demonstrou em sua obra, a ponto de muitos de seus livros terem passado mais tempo sendo revisados do que sendo escritos.

Embora não tenha viajado muito, Jane Austen baseava-se em almanaques para descrever lugares em que não tinha estado; o tempo de duração de uma viagem, entre as localidades mostradas em suas histórias; demorando-se em detalhes como as estações, colocando seus personagens para lerem livros ‘da moda’ ou preocupando-se com o estilo de vestidos de acordo com o que estava se usando em Londres, criando assim um universo bastante sólido, bastante crível em suas minúcias.

Essa é apenas uma das muitas características que fazem do estilo mesmo de Austen algo que se reconhece de pronto e que não é tão facilmente imitado.

Por outro lado, as descrições dos ambientes físicos estão quase ausentes nas narrativas – na contramão de outros autores da época, tal como Ann Radcliffe. Austen não se preocupa em criar uma ambientação propriamente dita e, quando o faz – como na Abadia de Northanger – é justamente para ironizar as novelas góticas, tão em voga em sua época. Lembremos, afinal, que estamos em pleno romantismo, na Inglaterra do maior expoente deste movimento: o temível e sombrio Lorde Byron – o tipo de homem contra quem mamãe nos alertou.

Em outras palavras... Tudo bem, os jardins de Pemberley são magníficos, mas vejam que ela não demora muito para descrever os pormenores da arquitetura, seu estilo (clássico, neo-clássico, sombrio, cheio de gárgulas, etc, etc, etc), ou sobre como tempestades assomam ao horizonte, mas sim as impressões que a propriedade provoca em Elizabeth.

Em vez de se concentrar na ambientação propriamente dita, Austen vai nos descrever pormenorizadamente a psique de seus personagens – como no perfil que ela traça das irmãs Dashwood, ao início de Razão e Sensibilidade:
Elinor, a filha mais velha, cujo conselho foi tão eficiente, possuía uma força de entendimento e uma frieza de julgamento que a qualificavam, embora tivesse apenas dezenove anos, para ser a conselheira da mãe, e lhe permitiam com freqüência opor-se, para proveito de todos, àquela impaciência de espírito da sra. Dashwood que em geral a levava a cometer imprudências. Tinha um excelente coração, um temperamento afetuoso e sentimentos fortes; mas sabia como governá-los.
(...)
As habilidades de Marianne eram, sob muitos aspectos, bastante semelhantes às de Elinor. Era sensível e inteligente, mas intensa em tudo: suas angústias, suas alegrias não tinham limites. Era generosa, agradável, interessante, era tudo, menos prudente.
Ao final das contas, eu diria que Jane Austen tem um pé mais firme no realismo do que no romantismo e, se eu fosse pensar num autor cujo estilo me fizesse lembrar dela... eu diria Machado de Assis.

Muita gente pensa em Austen como contemporânea das irmãs Brönte, comparando-a ainda com Charles Dickens. Só que é o seguinte, jovem padawan: Brönte e Dickens pertencem à literatura vitoriana, tendo publicado depois da morte de Austen. Eles ainda seguem o romantismo da virada do século, mas já começam a demonstrar as características do romance psicológico que dará o tom do século XX.

Vejam bem, não sou uma estudante de literatura, nem uma crítica e tampouco estudo teoria literária (a não ser como hobby e se o escritor é Eco...), mas as diferenças de que falo saltam aos olhos e mesmo quem não é especialista no assunto é capaz de perceber.

Vou explicar o que penso, em linguagem cinematográfica... ou talvez fotográfica, não sei bem ao certo... mas acho que vocês entenderão do que estou falando...

O caso é que uma história escrita/que se passe na era vitoriana teria uma fotografia mais escura, trabalhando bastante o jogo de luz e sombras. Seus personagens são, geralmente, personagens “sujos” – são trabalhadores, pessoas do povo. O tom do romance gótico, que alcança seu ápice no Morro dos Ventos Uivantes, divide a cena com autores de veia mais realista, com crianças cobertas de fuligem e acostumadas à vida dura do início da Revolução Industrial, comuns em Dickens.

São histórias mais violentas – essa, afinal, foi a época que produziu Jack, o estripador! – com as ruas de Londres tomadas pelos fogs, a neblina natural característica da cidade somada à fumaça das fábricas ao princípio da Revolução Industrial.

Agora... se você conhece as obras de Jane Austen – e já assistiu algum dos filmes/séries baseados nelas... eu preciso dizer que é bem o oposto disso? Fotografia clara, ambientes amplos, temas bucólicos. E, se Dickens retrata o cotidiano urbano, Austen pinta em cores vivas o ambiente da pequena nobreza rural.

Talvez possamos dizer que Austen ainda se insere no contexto do romantismo por seus “finais felizes”, por tudo terminar com mocinha e mocinho superando todos os obstáculos num belo casamento – finais estes não tão em voga no romance moderno. Ainda assim, ela se diferencia de outros escritores seus contemporâneos pelo uso da ironia, (que é, na minha opinião, o que a aproxima do estilo do nosso Machado) e do discurso indireto, de forma a melhor explorar os pensamentos d seus personagens.

O sarcasmo de Austen pode ser tanto sutil quanto explícito; mas não falha. Ela explora com pena cortante uma sociedade de idiossincrasias, hipócrita ao extremo, não poupando nem mesmo seus protagonistas. É uma Caroline Bingley, criada para ser uma dama e que se perde em inveja, ciúme e comentários mesquinhos; é uma Emma Woodhouse, que em sua vaidade, acaba por magoar pessoas a quem devia apenas compaixão.

Austen compõem um retrato de um mundo de vaidades, de orgulho, preconceito, paixões exacerbadas – um mundo este que, a julgar por seu ponto de vista e pela evolução de suas personagens, só pode ser temperado com educação.

(Continua em “A Biblioteca de Austen”)


A Coruja


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