17 de abril de 2010
Desafio Literário 2010 - Abril: Um livro de escritor latino-americano
Um cabelo crescido e esbranquiçado estorvava o cálculo da sua idade. Vi-o caminhar os poucos metros que nos separavam com aquele andar de pelicano característico dos marinheiros com muitas milhas às costas, marinheiros que ainda é possível ver em alguns portos da Europa tripulando barcos de bandeiras pobres, panamá ou libéria. Não descem à terra com freqüência e parecem transportar nos corpos o vaivém dos barcos. Já restam pucos exemplares desta romanesca marinhagem. As tripulações actuais são comportas por oficiais especialistas em informática e por marinheiros jovens que no mar vêem apenas uma situação transitória. O salário não é dos melhores e a modernização dos portos acabou com a esperança de ver um pouco do mundo. Os homens viraram as costas ao encanto dos oceanos.
Tendo feito minha incrição no Desafio Literário 2010, tocava escolher os títulos que eu me comprometeria a ler ao longo do ano, começando pelo mês de abril (que já vai pela metade) com o tema "escritor(a) latino-americano(a)".
De imediato vieram à mente Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Marquez. De Borges eu não tinha nenhum livro na estante que eu ainda não tivesse lido e do Marquez, tem Cem anos de Solidão me olhando de cima da Barsa, mas eu não achava que pudesse ler e digerir adequadamente Cem anos de Solidão em menos de quinze dias.
Decidi então duas coisas: precisava procurar um livro que eu pudesse ler de uma única sentada e, se possível, de algum autor do qual eu nunca tivesse ouvido falar. E assim, lá fui eu para a livraria...
Quase escolhi Horacio Quiroga, uma vez que ele cumpria os necessários requisitos... Mas aí decidi pesquisar um pouco mais e dei de cara com Luis Sepúlveda, um chileno que vive perambulando pelo mundo, e aquele título assim, meio poético, que me lembrava Drummond - Mundo do fim do mundo (mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução...).
Li a contra-capa e folheei as primeiras páginas. Logo ali no começo, o cara me citava Júlio Verne, Jack London e Herman Melville. Não sei o que esperava - acho que, talvez, um romance de aventuras no estilo Moby Dick.
Foi assim que Sepúlveda entrou para minha lista. E eu realmente o li de uma única sentada, quase agarrada na cadeira, alheia ao resto do mundo ao redor.
Devo dizer que, se nada mais, participar do Desafio já me proporcionou a oportunidade de conhecer um escritor de quem nunca tinha ouvido falar e do qual, definitivamente, procurarei mais livros (estou agora à procura de O velho de lia romances de amor. Curioso título, não?).
Vejamos o que posso contar do Mundo do fim do mundo... Não, não é um mundo muito além do nosso, nenhuma dimensão paralela ou alternativa. Este mundo fica, muito literalmente, lá para os lados do fim do mundo, entre a Patagônia e a Antártida, ali junto do Estreito de Magalhães.
Há qualquer coisa de autobiográfica na narrativa, especialmente pelo fato de que o narrador, que nos conta a história como se estivesse conversando conosco, não tem bem um nome certo, é chileno, foi para o exílio na Europa durante os tempos de ditadura e por lá ficou como jornalista - o que basicamente resume a trajetória de vida do autor.
Tudo começa num aeroporto em Hamburgo. O narrador pensa em como aquela é a primeira vez em muito tempo que volta ao Chile, apesar de todas as promessas feitas a irmãos e amigos; e em como verá de novo, os territórios do mundo do fim do mundo que visitou quando garoto.
Seguem-se memórias - e um bom bocado das histórias narradas em Mundo do fim do mundo são memórias de pessoas e de povos.
Temos a princípio a história de nosso narrador que, garoto, encantado com as aventuras do capitão Ahab, do Moby Dick de Melville, convence os pais, com a ajuda do tio Pepe, a passar um verão na Patagônia. Seu trabalho como grumete no navio que o leva Punta Arenas, descascando batatas, sua breve estadia com os Brito até sua viagem no baleeiro 'Evangelista', com o basco e Don Pancho.
Mais tarde, anos depois, ele é um jornalista exilado em Hamburgo, que, com três sócios, "um dia cansaram de escrever para a imprensa séria, apenas interessada nos temas respeitantes ao meio ambiente quando estes adquirem visos de escândalo" e criaram uma agência de notícias alternativas dedicada a assuntos do meio ambiente.
A agência recebeu uma pista do Chile, notícias acerca de navios baleeiros japoneses, notícia essa que acaba confirmada por um contato deles no Greenpeace. Há qualquer coisa de podre na história, incluindo até mesmo navios fantasma.
Fui pesquisar a história do navio Nishin Maru que contam no livro e encontrei inclusive uma notícia referente a essa parte da narrativa no site do Greenpeace.
Então, lá vai nosso narrador voltar ao Chile para encontrar-se com o capitão Jórg Nilssen, que também há de relatar sua vida enquanto navegam pela imensidão de águas geladas e perigosas do mundo do fim do mundo, rumo a um campo de batalha triste e surpreendente.
Um cemitério de baleias. A carcaça de um navio.
Não direi mais que isso ou vou terminar por contar a história toda. Em vez disso, recomendo (e recomendo muitas vezes) a leitura desse livro - especialmente se você tem alguma preocupação ambiental e se importa com onde estamos indo parar.
O único problema na minha leitura foi (e talvez vocês tenham percebido isso nos trechos que citei) que a edição em que consegui deitar as mãos é portuguesa e volta e meia eu me via meio atarantada com faltas de vírgulas e palavras ligeiramente estranhas.
Se alguém achar uma edição dele brasileira, por favor, me avise. Este é um livro que eu gostaria de ter na minha estante para ler ainda muitas vezes e sempre ter uma nova reflexão.
Nota: 5
(de 1 a 5, sendo: 1 – Péssimo; 2 – Ruim; 3 – Regular; 4 – Bom; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Mundo do fim do mundo
Autor: Luis Sepúlveda
Editora: ASA (edições)
Ano: 1997
Tradutor: Pedro Tamen
Número de páginas: 128
Arquivado em
desafio literário
literatura
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Adorei seu post!
ResponderExcluirIgnorantemente eu não conhecia esse livro e, mesmo não fazendo muito meu estilo me senti muito tentada em lê-lo.
Um abraço e até mês que vem!
Também não conhecia este escritor, e o livro de facto parece muito interesante.
ResponderExcluirE, a meus olhos, ficou mais interessante ainda justamente por o livro ser uma edição portuguesa... ah, como eu adoro este vocabulário maluco que só os portugueses soem usar! XD
Beijocas e valeu pela dica!
Pois é, eu também não diria que ele fazia meu sentido até começá-lo... prefiro ficção fantástica e por isso escolhi Cortasar como reserva, caso não me apetecesse o Sepúlveda e eu não desse conta de terminá-lo...
ResponderExcluirEle foi, decididamente, uma grata surpresa.
Régis... me explica o problema dos portugueses com a vírgula?
Eu tambem nunca ouvi falar deste autor mas fiquei muito curiosa com a sua resenha. Estou lendo O Diario de Ann Franke em e-book numa versao portuguesa e `as vezes soa bem estranho. Beijos
ResponderExcluirOlá Luciana,
ResponderExcluirGostei da sua resenha, o livro parece ser mesmo interessante. Já li O velho que lia romances de amor e gostei muito, a história desta vez se passa na Amazônia, será que o Sepúlveda viveu mesmo nesses lugares todos?
Também li meu livro deste mês (A casa dos espíritos) em versão portuguesa, a gente estranha um pouco mas acaba se acostumando. Aliás, terminei hoje, agora vou escrever minha resenha. :-)
Grande abraço!
Pois é, ler no português de portugal é meio esquisito mesmo... E eu cheguei à conclusão de que o probema de Saramago com vírgulas não é só uma questão de estilo, mas de língua mesmo...
ResponderExcluirAlguém me explica porque portugueses não gostam de vírgulas?
Nossa, o livro parece muito interessante; e a literatura chilena também tem sido uma boa surpresa para mim.
ResponderExcluirAi, teria problemas para ler no português de Portugal, adoro vírgulas!!!
Parabéns pela resenha, bjs! ;)
Menina!!!
ResponderExcluirQuiroga é maravilhoso!
Mas pelo jeito a sua escolha foi boa tambem, parabens!
Beijos
vou procurar este autor de certeza. ;o)
ResponderExcluir[ah, os portugueses... tão musicais até na escrita!]
Nossa, ótima resenha. Deu vontade de ler o livro com certeza!
ResponderExcluirQuero ler ¢___¢
ResponderExcluirNunca nem tinha ouvido falar, mas a escolha foi bem interessante! E o livro parece ser bom mesmo!!!
ResponderExcluirÓtima resenha, não conhecia o livro e agora fiquei muito curiosa.
ResponderExcluirEu não consigo ler em português de portugal não rs, tem umas palavras que não sei encaixam e eu fico perdida :)
bjo
Nanda (Viagem Literária)
Lulu, você fez um belo apanhado da obra. Não a conheço, mas o que disse me motivou bastante. Excelente participação.
ResponderExcluirSepúlveda é realmente um grande autor. Já ouvi falar dele mas não conheço também nenhum edição brasileira de suas obras.
ResponderExcluirBom, mas se observarmos por outro lado, sua escolha para o Desafio abre uma nova proposta de busca por introduzir este autor no Brasil.
E como eu acredito que valeria a pena sua publicação aqui, sua crítica apenas vem reforçar a necessidade de se alargar os horizontes pela América Latina afora.
Não conheço esta obra que você resenhou, mas vou tentar encontrá-la para ler.
Grande abraço pra ti!