23 de setembro de 2014

Mansfield Park e os Sapatinhos de Cinderela (ou aquele em que Austen subverte os contos de fadas)


Essa não é a primeira vez – e provavelmente também não será a última – em que vocês me ouvirão falar em Austen e Contos de Fadas. Considerando ainda que descobri essa ligação lendo um ensaio sobre Mansfield Park, acho que é bastante justo que eu apresente a idéia mais uma vez hoje.

Primeiro e antes de mais nada, por que contos de fadas? Por que dar tanta importância para histórias cujo público-alvo é o infantil; histórias cheias de maniqueísmos fáceis e finais felizes para sempre? Sem conflitos internos ou ambiguidades morais, com personagens planos, simplistas, sem profundidade de caráter algum?

Nosso primeiro erro ao relegar as histórias de fadas ao quarto das crianças é culpa do fato de que hoje muitos conhecem apenas as versões água com açúcar ‘disneyificadas’ dos contos. A verdade, porém, é que essas histórias aparentemente simplistas têm muito a nos ensinar, mensagens sobre crescer, sobre amadurecimento, escolhas e consequências, sobre sair para o mundo e buscar seu próprio mundo, sobre pertencer e lutar por aquilo em que se acredita.

De certa forma, é um erro comum também em relação à Austen. Se contos de fadas são vendidos como literatura para crianças, Austen é frequentemente rotulada de ‘literatura de mulherzinha’ – o que é um erro duplo primeiro no preconceito existente em relação aos romances e segundo em acreditar que a inglesa é apenas romance.

Não é preciso ir longe para enxergar esse fato: basta ver algumas das muitas capas com que a obra de Austen foi publicada ao longo do tempo. É uma pergunta interessante a se fazer aos rapazes leitores de Austen: como eles a descobriram? Algum deles se aventurou na seção de romances, deparou-se com uma capa cor-de-rosa e fofinha e decidiu arriscar-se a ler a sinopse, mesmo sem qualquer indicação ou conhecimento prévio, para ver se aquilo lhe interessaria? Ou será que eles descobriram a autora por outras vias mais tortuosas – foram obrigados a ler os livros na faculdade; viram uma das adaptações em filme por acaso na TV ou foram arrastados ao cinema pela namorada/irmã/prima/mãe?

As aparências, ao final das contas, enganam – e não é interessante perceber que essa máxima se repete livro após livro de Austen? Willoughby, que a princípio nos encanta com seu charme romântico; Wickham que tem “toda a aparência de bondade” e Darcy que embora virtuoso aparenta arrogância; Henry e Mary Crawford que levam todos na conversa (e até mesmo Fanny, por algum tempo); o irresponsável Frank Churchill, a bela e vazia Isabella Thorpe, o elegante Mr. Elton – todos eles, em diferentes graus de subterfúgios, demonstram que é preciso ter mais cuidado com primeiras impressões causadas por uma agradável aparência.

Mas, enfim... contos de fadas. Quem aqui já tentou ler os originais dos irmãos Grimm ou folheou um tomo de Andersen deve saber que eles estão longe das versões sanitarizadas que conhecemos hoje em dia. Ganância, beleza, miséria, amor verdadeiro, sexo, violência, bondade, canibalismo, mutilação, relações incestuosas, amadurecimento – está tudo lá, histórias que respondem aos nossos impulsos, que lidam com os obstáculos que temos de superar em nossa própria “jornada do herói”, em busca de um “felizes para sempre”.

São narrativas que lidam com medos básicos que todos nós temos. E, por estarem tão perto de nós, de nossa psique, é que essas são histórias com padrões que variam nos detalhes, mas se repetem na essência.

Querem um exemplo?

Temos uma menina retirada do seio de sua família e levada para um ambiente estranho. Ou cuja mãe morreu e o pai achou uma madrasta para colocar no lugar. Essa menina cresce dividida – ela é, a um tempo, parte daquele lugar e uma estrangeira em sua própria casa. Sua madrasta – ou sua tia – a trata com desprezo, humilhando-a em toda e qualquer oportunidade, e em especial comparando-a com as figuras de suas duas meio-irmãs, ou as primas cujas vontades são sempre feitas.

A absoluta ausência de uma figura paterna impede que se faça justiça – seja porque o pai sumiu misteriosamente da história, seja porque o tio foi para as Antíguas.

Então chega o príncipe e as meio-irmãs-primas alvoroçam-se com a possibilidade de chamar a atenção dele. A tia madrasta as encoraja, ao mesmo tempo em que faz de tudo para diminuir a pobre boa menina. Mas isso não é o suficiente para obscurecer o verdadeiro fulgor da heroína que, com a ajuda de suas fadas madrinhas – talvez a irmã do príncipe encantado, talvez seu amável primo – roubará as atenções em um grande baile.

Claro que pode acontecer de a heroína preferir a fada madrinha que lhe dá atenção e cuidados em vez do charmoso príncipe, mas falaremos disso num instante... Mas, enfim... Vocês percebem o padrão? Querem outro exemplo?

Normalmente existe um rei e esse rei tem três filhos. Ou três filhas. O rei manda seus filhos ou filhas encontrarem seu próprio caminho, provarem que são dignos do trono, quem o ama mais (algo que relembra o Rei Lear de Shakespeare, que se inspira também numa lenda folclórica) ou algo parecido. A filha mais velha é quase sempre a primeira a falhar, por ser preguiçosa ou indolente. A filha do meio persiste um pouco mais, embora seus esforços não sejam o suficiente para fazê-la menos invisível e desimportante. À filha mais nova está destinado o sucesso: a terceira se casa por amor... mas alguma coisa dá errado na história e só o amor não basta para que ela seja feliz. O que fazer então?

Mandar importar uma sobrinha e começar mais uma vez com um trio de irmãs – neste caso, duas irmãs e uma prima.

É bastante razoável acreditar que Austen conhecia contos de fadas – à sua época, eles ainda não tinham sido relegados ao quarto das crianças; isso foi coisa dos vitorianos. O primeiro volume de contos dos Irmãos Grimm foi publicado em 1812, como parte de um esforço de encontrar uma identidade nacional reunindo histórias folclóricas que circulavam entre o povo – mas mesmo antes deles, eram essas narrativas comuns, faziam parte de uma cultura de oralidade, e eram repetidas com diversas variações por toda a Europa.

Claro que se formos pensar que, na essência, existe apenas um punhado de histórias, e são os detalhes que as fazem variar para criar tantas outras ricas narrativas, poderemos enxergar coincidências em todo lugar. Mas é fato que mesmo uma leitura superficial de Mansfield Park nos faz pensar em Cinderela.

Na nulidade representada pela indolência de Lady Bertram, é Mrs. Norris que figura como presença materna – e ela é exatamente como a madrasta, fazendo todas as vontades de Maria (a mais velha), promovendo Julia mais discretamente (a do meio) e forçando Fanny aos trabalhos domésticos (a mais nova). A ausência de Sir Bertram tem uma explicação, mas funciona com o mesmo efeito da morte/sumiço do pai de Cinderela.

Uma das maiores maldades de Mrs. Norris, aliás, é impedir que se acenda o fogo na lareira de Fanny e isso é algo mais em comum que nossas heroínas têm em comum: o nome Cinderela vem do alemão Aschenputtel, ‘a que limpa as cinzas’ e a personagem ganhou tal alcunha das meio-irmãs após ser banida para a cozinha e forçada a se abrigar na lareira, junto às cinzas, para conseguir se esquentar.

Maria e Julia não são abertamente cruéis com Fanny – não como Mrs. Norris ou as meio-irmãs de Cinderela. Elas apenas... não se importam. Fanny não é suficientemente importante para lhes afetar de qualquer maneira que seja.

Por outro lado, elas correspondem exatamente à figura das meio-irmãs no sentido de suas automutilações. Em algumas das versões mais antigas e conhecidas do conto de Cinderela, uma das irmãs corta o dedão e a outra, parte do calcanhar, para fazê-los caber no sapatinho de cristal.

Maria, de forma completamente consciente, sacrifica sua própria felicidade ao levar adiante seu casamento com o tolo Mrs. Rushworth. São dois os seus motivos: primeiro, a independência que terá, saindo de casa, ocupando um lugar de destaque na sociedade e segundo, por despeito (o que não faz muito sentido, considerando que Crawford realmente não dá a mínima).

Julia, por sua vez, apressa-se a fugir com Mr. Yates, não porque o ame, mas porque sabe que uma vez que seja descoberta a traição de Maria, ela nunca mais deixará Mansfield, seu pai vai transformá-la numa prisioneira.

Talvez Julia ainda tenha chances de algum contentamento, mas é certo que Maria cortou na própria carne – para ela, após a fuga com Crawford, não existe mais qualquer esperança: só o que lhe resta é Mrs. Norris.

Edmund, por sua vez, é uma verdadeira fada-madrinha para Fanny. Ele não é necessariamente um campeão, vez que nunca chega a enfrentar de frente os desmandos da tia – eles sequer chega a enxergá-los, para ser sincera -, mas está sempre tentando avançar os interesses da prima. Ele não transforma abóboras em carruagens ou trapos em suntuosos vestidos, mas providencia papel para as cartas com William, indica livros para que Fanny possa se educar, encoraja-a a aprender a montar e a fazer exercícios para melhorar sua saúde, oferece sua companhia e no dia do baile, dá a gargantilha para usar com a cruz que William presenteou à irmã.

Mary Crawford, a despeito de todos os seus vícios, também atua como uma espécie de fada-madrinha para Fanny. Ela é a primeira a de fato enxergar Fanny – ainda que isso se dê mais ao fato de que ela estava entediada que por qualquer amabilidade própria –, aos poucos a persuadindo a participar nas conversas, chamando por ela, perguntando sua opinião. A atenção que Mary dá a Fanny ajuda nossa heroína a revelar um pouco mais do que pensa, em vez de apenas assistir a tudo calada dos bastidores.

Curiosamente, é quando chegamos ao príncipe encantado da história que as coisas começam a mudar.

Henry Crawford é um perfeito príncipe encantado. Rico, charmoso, absolutamente encantador, tendo sua atenção disputada por todos, para então se apaixonar pela incauta mocinha, que só comparecera ao baile para se divertir e ao bater as doze badaladas do relógio, fugir de volta para casa. Cinderela nunca pensou em chamar a atenção do príncipe. Mas aconteceu.

Da mesma forma, Fanny nunca pensou em chamar a atenção de Henry. Ela vive comodamente em sua invisibilidade. A despeito das intrigas de Mrs. Norris, ela tem o carinho de Edmund, e ganhou o respeito de Sir Bertram. Ela tem as cartas de William para aguardar com ansiedade e até mesmo a amizade de Mary Crawford e dos Grant.

Cinderela não foi ao baile achando que conquistaria o príncipe. Ela apenas queria, por uma noite, esquecer suas aflições e se divertir. Como Fanny.

O fato de Henry Crawford se encaixar na idéia do ‘príncipe encantado’ – e também em outra fôrma de bolo, a de bad boy que muda por causa do amor – é um dos motivos pelos quais muita gente estranha a forma como o livro termina. Austen subverte o que seria uma fórmula bastante convencional e isso nos deixa confusos.

Essa subversão é algo importante, é um diferencial, o que faz de Austen uma das principais autoras da língua inglesa. Numa narrativa simplista, Fanny ficaria com Henry e ele supostamente mudaria seu caráter por amor a ela... ou, pelo menos, a história terminaria nesse ponto, muito antes que ele pudesse se entediar com sua nova vida e voltasse a jogar com os corações de outras pessoas.

Talvez seja cínico na minha parte acreditar nisso, mas não acho que a mudança de Henry duraria muito, ainda que Fanny o tivesse aceitado, que tivesse lhe dado um verniz de moralidade e bons princípios. Mais cedo ou mais tarde, Fanny deixaria de ser uma novidade, um brinquedo novo e brilhante e Henry voltaria aos seus costumes anteriores.

Nos contos de fadas, ninguém nunca questiona o caráter do príncipe encantado. Na verdade, eles estão lá apenas para dar a conclusão final à história – todo o trabalho bruto de crescer e amadurecer tem de ser feito pelas heroínas, sendo o príncipe ao final a sua recompensa.

Fanny tem outras idéias sobre o assunto. Diferentemente de Julia, Maria e da própria Cinderela, ela não se conforma em caber no sapatinho de cristal. Em partir para viver num castelo com um príncipe encantando sobre o qual ela não sabe quase nada – e o que sabe não é nem de longe bom.

Em vez disso, ela prefere ser fiel aos seus princípios e às suas origens. Sim, seu amor por Edmund pode parecer estranho a alguns – algo incestuoso, considerando que foram eles criados sob o mesmo teto, supostamente, quase como irmãos – mas Fanny demonstra muito mais discernimento com essa escolha que todos os outros personagens da história juntos.

Edmund não é um príncipe encantado, mas um companheiro fiel, que conhece Fanny, que admira suas qualidades, que a encoraja a crescer, carinhoso, cuidadoso, honesto em seus pensamentos e sentimentos, de bom caráter e bons princípios. Ele pode não ser o herói dos sonhos de todo mundo, mas é a precisa medida do que Fanny necessita.


A Coruja


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