10 de março de 2014
Quem Conta um Conto (março): O Conto do Dé || O Garoto e os Corvos
O garoto despertou, mas não conseguiu ter certeza se estava de olhos abertos. Estava escuro como ele nunca havia presenciado: uma completa ausência de luz. Ele tentou balançar as mãos em frente aos olhos arregalados, mas foi inútil. Tentou gritar, chamar por alguém, mas o silêncio era total, tal qual a escuridão.
Assustado, o garoto levantou-se e começou a andar, a procurar por um interruptor, uma porta, uma janela... ou alguém. A única coisa que sabia haver naquele local era um piso, já que estava em pé sobre alguma coisa, mas não sabia se haviam paredes ou teto. Não sabia onde estava e nem como chegou lá. Apenas continuou a caminhar.
Andou por mais tempo do que pode acompanhar, mas de alguma forma, tinha sensação de que não avançou um centímetro sequer. Por muito tempo, o garoto resistiu conta a vontade de chorar, e que deveria seguir enfrentar até encontrar... alguma coisa, ou alguém. Mas a escuridão, o silêncio e a solidão finalmente venceram, e o garoto caiu de joelhos e chorou. Não fez questão de chorar em silêncio: gritou a plenos pulmões e chorou até os olhos doerem e todas as lágrimas secarem. E o silêncio não foi quebrado em momento algum.
E isto só aumentou a surpresa quando o garoto ouviu algo, pela primeira vez no que pareceu uma eternidade: uma risada, ecoando de todos os lados e de lugar algum. A mesma voz, um possante e rouco barítono, em seguida disse:
- Enfim desistiu de sua caminhada, não é? Finalmente percebeu ser inútil. Deste lugar não há saídas, garoto.
Após tanto silêncio, o garoto achou que ficaria aliviado ao ouvir alguma coisa, mas havia algo de assustador naquela Voz. A Voz era antinatural, alienígena, aterrorizante. Ele tentou cobrir os ouvidos com as mãos, mas foi inútil. A Voz continuou, e ele a ouviu tão claramente quanto antes.
- Este é meu domínio, garoto. Você já pertence a mim, independente do que acontecer. Fora daqui, existem aqueles que tentam levá-lo de volta, mas não permiti que o fizessem.
Uma fagulha de esperança se acendeu no peito do garoto. Estavam tentando resgatá-lo!
- Mas talvez deixá-lo ir me dê um pouco de entretenimento, garoto... Vê-lo tentar, inutilmente, escapar de mim pode ser divertido...
E com estas palavras, o garoto sentiu um puxão na nuca. Um puxão tão forte que o derrubou no chão e o fez perder os sentidos.
Acordou pouco depois, ao som de bipes cadenciado. A luz doía nos seus olhos, uma versão muito maior do incômodo de abrir os olhos pela primeira vez pela manhã. Estava deitado em uma cama dura, coberto até o peito por um lençol branco, mas com os braços descobertos. Em um dos braços, uma agulha conduzia soro para uma veia e havia uma espécie de pregador de roupas no indicador na mão oposta, ligado à um enorme aparelho branco com várias luzes. Deste aparelho também partiam outros fios, ligados à cabeça e peito do garoto. Uma mangueira assoprava ar em seu nariz. Estava em um quarto de hospital, percebeu.
A frequência dos bipes aumentou, e logo uma enfermeira entrou no quarto, examinando-o. Os olhos ainda doíam, devido à luz. Quase conseguia ver o rosto dela, mas mal conseguia manter os olhos abertos. Ela fez algumas perguntas simples: nome, idade e coisas simples assim. Quase conseguia ver, ao final das perguntas, mas a enfermeira estava de costas, falando a um interfone, comunicando que o garoto estava acordado, que o médico viesse imediatamente. Virou-se novamente para o garoto, que finalmente viu o rosto da mulher.
Aonde deveriam estar os olhos dela, existiam apenas as órbitas vazias, vertendo sangue escurecido.
Um corvo crocitou no mesmo instante que o garoto começou a gritar.
****
Após o que pareceu a milionésima sessão de fisioterapia, o garoto estava em casa. Cada sessão parecia uma tortura, e as... coisas, por falta de melhor palavra, que aplicavam piorava tudo. Ao menos ele já conseguia andar novamente, sem auxílio, apesar de meses após o esperado.
A família estava sentada à mesa, esperando a mãe terminar de colocar a comida na mesa, para o jantar. Frango assado, purê de batatas, molho, salada, suco de laranja e um bolo de chocolate de sobremesa. A mãe preparou um prato para o garoto, tentando esconder a apreensão atrás de um sorriso forçado. O pai observava a situação toda sob uma máscara de neutralidade. As refeições em família não eram mais a mesma coisa, desde que o garoto voltou para casa.
O pai só estava em casa durante a noite, mas podia ver o que a esposa via todos os dias, o dia todo. Para ela, a situação estava beirando o intolerável. As refeições eram um tormento para a família inteira, mas os pais ainda insistiam em mantê-las um evento familiar.
Mãe colocou o prato na frente do garoto, que se encolheu um pouco, afastando-se do prato. Para ele, as refeições eram apenas mais uma sessão de tortura. Ele olhou o prato rapidamente, e se perguntou novamente como a mãe podia fazer aquilo com ele: o fedor azedo de comida estragada atingia o nariz do garoto sem piedade, e ele podia jurar que via alguma coisa se movendo no prato. Semana passada eram larvas de moscas, e antes de ontem moscas adultas. Ele não queria comer, mas o pouco que via nas expressões dos pais era preocupação por ele não comer direito. Olhou pela janela, para os corvos parados no parapeito, olhando para dentro.
Olhou para os pais, fingindo conversar despreocupadamente sobre o dia de trabalho do pai, mas ambos disparando olhares furtivos para o filho, esperando para ver se ele iria ou não comer. Nenhum dos dois falava abertamente, mas o fato era que o garoto não havia recuperado muito peso desde que saiu do hospital. Ele não estava comendo. Os pais não sabiam o porquê.
Continuavam olhando para o garoto, cada vez menos furtivamente, esperando que ele comesse um pouco. E o garoto se forçou a comer. O gosto era exatamente o que ele esperava, horrível. Conteve as ânsias de vômito e foi comendo o quanto aguentou. Chegou na metade do prato e não aguentou: correu para o banheiro, para vomitar.
E os corvos crocitaram ao mesmo tempo em que a mãe começou a chorar.
Já havia algumas semanas que tinham se mudado para a casa da avó, um sitiozinho na serra. Os médicos diziam que o ar diferente seria bom para o garoto, então ele e a mãe se mudaram, e o pai ia durante os finais de semana.
Inicialmente, o garoto encarou a mudança positivamente. Adorava a casa da avó, e podia passear na mata nos arredores, pescar e nadar no lago dentro da propriedade, acompanhar a avó cuidando os animais. Mas o encantamento acabou na primeira noite: sombras nas paredes com dentes e garras à mostra, olhos vermelhos brilhantes entre as plantas na mata. E os malditos corvos, cada vez mais numerosos. Até a avó comentou sobre eles, pouco tempo depois que chegaram.
Não durou muito até outras coisas começarem a aparecer. De início, o garoto encontrou uma galinha morta, quando a avó pediu que fosse buscar ovos no galinheiro. A cabeça do pobre animal havia sido esmagada, e os órgãos internos espalhados para todos os lados. Quando tentou mostrar para a mãe e avó, já não havia mais nada lá.
Dois dias depois, encontrou o que só poderia ser descrito como um monstro: parecia um touro, mas não tinha pele, com os chifres e cascos em chamas. O garoto tentou gritar, mas antes que pudesse, o monstro disparou em sua direção, soltando fumaça pelas narinas. Correu como nunca antes, e se fechou dentro de casa. A mãe e a avó estavam fora, fazendo compras, e o monstro continuou circulando a casa até elas chegarem. Naturalmente, não acreditaram no garoto, mesmo quando ele tentou mostrar as pegadas queimadas no chão.
Depois disso, o garoto não saía mais do quarto. O pai passou a vir todos os dias, depois disso, mesmo que seu emprego pudesse sofrer por isso. Tentaram de todas as maneiras tirar o garoto do quarto, sem sucesso.
E os corvos crocitaram ao mesmo tempo em que toda a família começou a chorar.
Já a uma semana que o garoto não saía do quarto, que permanecia trancado por dentro. Os pratos de comida, que a mãe conseguiu convencê-lo a aceitar, se acumulavam ao redor, estragando e atraindo todo tipo de pequenos animais: ratos, baratas, moscas. O fedor da comida estragada preenchia o quarto, e chegava até o resto da casa. O garoto não comia mais, tudo chegava a ele já estragado, cheio de vermes e mofo.
Quando tentava olhar pela janela, via corvos por todos os lados. Sobre as cercas, nos galhos das árvores, no parapeito da janela. Todos olhando para ele, com olhos negros e que não piscavam nunca. Todos pareciam esperar alguma coisa dele.
Podia ver outras coisas escondidas entre as árvores e entre os arbustos. Coisas esqueléticas, com olhos flamejantes, sem pele e ensanguentadas. Também o encaravam, tal como os corvos, esperando algo.
O garoto levantou-se, mas lentamente e laboriosamente. Estava fraco, com fome, sede e cansado de chorar e ter medo. Queria comer alguma coisa, mas não podia pedir para ninguém, mas tudo que o serviam para comer estava estragado e com coisas dentro e os pais não acreditavam nele. Iria até a cozinha, pegar alguma coisa fresca para comer.
Ouviu à porta, mas não ouviu nenhum movimento. Abriu a porta e foi até a cozinha, mas nada poderia prepara-lo para o que encontrou lá. O chão estava coberto de sangue e pedaços de carne, o cheiro adocicado e metálico o atingindo logo que chegou lá. Logo em frente ao seu pé, estava um braço decepado, que pelos anéis e pulseiras deveria ser da avó. Espalhados pela cozinha, outros membros estavam à vista, que ele pode identificar como sendo dos pais.
O pior estava à mesa. No lugar das cadeiras, estacas de metal haviam sido enfiadas no chão. Em três delas, estavam espetadas as cabeças dos pais e da avó, ainda pingando sangue.
O garoto não conseguia se mexer, perante aquela cena dantesca. Apenas quando as cabeças viraram-se em sua direção, e sorriram felizes, com expressões de extremo alívio em seus rostos que o garoto recuperou os movimentos. Saiu correndo pela noite, lágrimas fluindo sem controle, ignorando tudo o que vira lá fora anteriormente.
Correu, até chegar ao lago. Ao seu redor, o silêncio era total. Nenhum animal ao redor, sem vento nas folhas das árvores. Apenas os corvos, que voavam em círculos sobre a superfície do lago, faziam barulho com seu bater asas. E aquela risada, ouvida a tanto tempo atrás, em um local completamente escuro e silencioso, soou no fundo das memórias do garoto.
Com as passadas pesadas, o garoto seguiu em direção ao lago. Ao invés de afundar, o garoto continuou como se a superfície gelada fosse chão sólido, e ele caminhou até o exato meio do lago. Os corvos abriram caminho para o garoto, e em nenhum momento o tocaram. Apenas quando o garoto parou que os corvos passaram a voar em círculos cada vez menores, encobrindo-o completamente.
E em poucos instantes, os corvos debandaram, levando o garoto consigo.
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Err... alucinacoes? Por causa dos remedios de fisioterapia? O.o"
ResponderExcluirNão vou comentar nada sobre o conto porque ainda não posso. ;) Mas olha... até que a sua hipótese é bem legal, hein!
ExcluirConsiderando que muitos dos remédios mais "inocentes" podem causar as mais variadas e estranhas reações adversas, incluindo alucinações e delírio, isso até que é bem crível. Eu mesma tive uma vez um período breve de delírio após tomar uma simples vacina contra gripe. ^^" Até hoje não sei o que raios aconteceu! Foi muito estranho...
Anh...apenas agora entendi como funciona o esquema de "Quem conta um conto" >.<"
ExcluirComecei recentemente a seguir o blog por isso nao tinha ideia...
Foi um otimo conto!
Nenhum problema ;) Semana que vem tem os comentários do Quem Conta um Conto e aí dá para entender bem o que cada um dos três autores (e a desenhista) pensaram ao escrever sua história.
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