14 de julho de 2010

Lobos em pele de Cordeiro – Parte III


Já falamos no artigo passado sobre alguns autores clássicos que trataram de lobisomens. Não levando em consideração os mitos, talvez o primeiro lobisomem literário seja o soldado que é capaz de se transformar livremente num dos contos do Satyricon, do escritor romano Petrônio. Essa história, contudo, era mais uma brincadeira que qualquer outra coisa - uma anedota para ser contada à mesa do Imperador Nero.

No início da Idade Média, por volta de 1198 - antes que começasse a histeria que assaltou a Europa, levando milhares de supostos lobisomens (entre outras espécies diabólicas) à fogueira - Marie de France escreveu Bisclavret, cujo protagonista homônimo é um barão bretão.

Toda semana, o barão sumia por três dias, sem que ninguém soubesse o que lhe acontecia. Sua esposa consegue, após muito implorar, que ele lhe conte a causa destes sumiços, quando então ele explica que é um lobisomem. Toda vez que ele vai se transformar, ele precisa tirar sua roupa e escondê-la num lugar seguro - se não puder voltar a se vestir, ele ficará preso na forma animal.

Quando, após ter contado esta história para a esposa, o barão volta a sumir, ela rouba as roupas do marido, e, uma vez que este não mais retorna ao lar, casa-se com seu amante.

Um ano depois, numa caçada do rei, seus cães cercam Biclavret, que corre para cima do rei e lhe beija os pés, como se a pedir clemência. Todos ficam surpresos com a atitude do lobo e ele é meio que... adotado pela corte. Mais tarde, o lobo há de se encontrar com o cavaleiro amante de sua esposa e a própria, de quem arranca o nariz. Surpresos com o comportamento do lobo, que até então sempre fora muito pacífico, o rei manda questionar a mulher (sob tortura), que finalmente revela o que fez e entrega as roupas que roubara.

Bisclavret então retorna a sua forma humana e o rei lhe devolve suas terras e riquezas. Quanto ao cavaleiro e a mulher, ambos são exilados.

No Morte d'Arthur de Thomas Malory, há inclusive uma referência a essa história.

Mais ou menos da mesma época é o Guillaume de Palerme, poema francês que conta a história do plebeu Guillaume, que levado à corte do Imperador Romano, apaixona-se por sua filha, a princesa Melior, que, por sua vez, está prometida a um príncipe grego.

Para que possam ficar juntos, Guillaume e Melior acabam tendo de fugir, escondendo-se na floresta sob o disfarce de peles de urso. Para tanto, eles recebem a ajuda de um lobo, que não é ninguém mais que Alfonso, primo de Guillaume e, na verdade, um príncipe espanhol (de forma que Guillaume também se revela um nobre), amaldiçoado na forma lupina por sua madrasta.

Alfonso providencia proteção e comida para os dois fugitivos, até que Guillaume consiga derrotar seu tio (e pai do simpático primo lobo), retomar seu reino e quebrar o feitiço.

Não consigo entender como é que sendo retratados de forma tão benigna nesses dois contos, os lobisomens foram tão perseguidos na Idade Média. Mas, bem, vamos deixar isso pra lá...

Em 1839, Frederick Marryat escreve a novela The Phantom Ship, que conta com o episódio intitulado The White Wolf of the Hartz Mountains, onde temos uma mulher capaz de se transformar em lobo. Eu tenho esse conto traduzido no livro Homens, Lobos e Lobisomens e é um dos melhores da coletânea (sinto arrepios toda vez que penso na madrasta...).

Em 1848 veio Wagner the Wehr-Wolf, de G. W. M. Reynolds um folhetim em 77 capítulos, no qual o protagonista ganha vida eterna ao fazer um acordo com Satã, transformando-se em lobisomem. Pelo resto da história, o pobre Tinhoso tenta barganhar a alma de Wagner - afinal, se o cara era imortal, como é que o Diabo ia deitar mãos sobre a alma dele?

Agora essa é uma história engenhosa...

Em 1857, Alexandre Dumas escreve O Senhor dos Lobos, outra história de pactos demoníacos - porque vender a alma ao Diabo parece um bom negócio nessa época, já que todo mundo o faz...

Finalmente, em 1886 temos a publicação de O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Stevenson. E, se há uma história de lobisomens por excelência - ainda que não haja nenhuma menção específica ao termo - é essa.

O tema principal do lobisomem, ao final das contas, é a da dualidade da natureza humana. Ele representa o conflito entre o animal, o primitivo e a sociedade, a civilização. Essa é uma dualidade que todos temos e que somos capazes de reconhecer nessas histórias.

Por isso que Dr. Jekyll e Mr. Hyde são o supra-sumo, o ápice, o modelo do que seja um lobisomem - mesmo que em nenhum momento Mr. Hyde surja com um focinho. Aqui, a idéia não é simplesmente começar a andar em quatro patas, mas sucumbir a sua faceta mais bestial.

Em 1933, Guy Endore publicou O Lobisomem de Paris que é, para a literatura lupina o que o Drácula de Bram Stocker é para os amantes dos vampiros. Nessa história temos Bertrand, filho de um padre (que, aliás, molestou a mãe do rapaz), perseguido por pesadelos de conteúdo sádico e sexual em que ele mesmo figura como um lobo. A história envolve incesto, estupro, profanação de cadáveres e suicídio.

Finalmente, em 1941, com o filme The Wolf Man, com Lon Chaney Jr. no papel de Larry Talbot, o mito surge em sua versão moderna. É neste filme que temos as noções de que (1) você se torna um lobisomem após ser mordido por um; (2) após a mordida, você se tornará um lobisomem toda lua cheia e (3) balas de prata são a única arma capaz de matar lobisomens.

Todas as concepções supostamente clássicas da lenda não vêm do folclore, mas de Hollywood.

O interessante dessa vertente que veio após o filme de 1941 (que foi refilmado ano passado com Del Toro no papel de Larry Talbot) é que os lobisomens deixaram de ser as criaturas temíveis, malignas, resultantes de pactos demoníacos - de algozes, elas agora são vítimas, destinadas a cumprir seu triste fado.

No final das contas, você sente mais pena dos lobisomens nesses filmes do que qualquer outra coisa. O conflito entre a natureza humana e animal deu lugar quase que a teoria do bom selvagem numa versão terrivelmente abrangente - o lobisomem é o natural, o puro, a vítima; o homem, intolerante e preconceituoso, é o verdadeiro vilão.

Bem, acho que terminamos - ao menos a minha parte - por aqui. O André, que foi quem fez o pedido para esse especial, disse que ia escrever mais sobre os filmes e talvez até um conto sobre lobisomens.

Quando ele terminar de escrever, publico aqui também como extras para os Lobos em pele de Cordeiro. Até lá... voltamos à nossa programação normal.

Mesmo o homem que é puro no coração
que antes de dormir faz sua oração
pode se tornar um animal
se o lobo de dentro o chamar
e a lua brilhar em seu quintal.
The Wolf Man, 1941


A Coruja


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Um comentário:

  1. Acho q ser lobisomem é uma das piores maldições.
    Sou mais o vampirismo que a licantropia :P

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