13 de julho de 2010

Lobos em pele de Cordeiro – Parte II


Uma vez que já tenhamos tecido nossas conjecturas sobre a origem dos lobisomens, bem como sua participação em mitologias diversas, revelando-se como uma figura arquetípica, é hora de cuidarmos destas criaturas de um ponto de vista histórico.

Sim, histórico, eu disse. Porque, durante uma certa época, um determinado período de tempo, a humanidade acreditou tanto em lobisomens quanto acreditamos na existência de... baratas, por exemplo. Eles faziam parte do cotidiano; eram quase comuns demais para que pudéssemos chamá-los, realmente, de sobrenaturais.

Falo, claro, da Idade Média. Entre os séculos XIII e XVI, lobisomens – junto com bruxas, feiticeiros, vampiros, gatos (porque não se pode haver bruxas sem gatos e os pobres animais também eram condenados à fogueira...) e demônios de uma forma geral – infestaram a Europa. Há milhares de casos e processos ricamente documentados, investigando (e na maioria das vezes, condenando à morte) estes seres.

Neste ponto da História, marcado pelo recrudescimento da intolerância em todas as suas matizes e pela demonização de tudo o que era minimamente diferente, o lobo perde por definitivo o status de sagrado, de espírito natural protetor para se tornar se não o próprio Diabo, ao menos um seu servo.

Não apenas as aparições de lobisomens eram freqüentes, como diversos autores clássicos o asseguravam – Heródoto; Plínio, o velho; Virgílio, Petrônio, Ovídio. Deixemos de lado o fato de que pelo menos os três últimos nomes são de poetas, não historiadores; e que o lobisomem de Petrônio aparece em Satyricon (se nada mais, o título já devia servir como pista da veracidade dos contos narrados neste volume...) – o fato é que isso era prova mais do que suficiente para que os lobisomens fossem servir de estudo para gente como Jean Bodin e Collin de Plancy, ambos homens bastante inteligentes.

Em favor de De Plancy, ele pelo menos não disse com todas as letras que acreditava na existência dos lobisomens. É claro que eles ganham uma entrada no Dicionário Infernal - mas se era um dicionário sobre ocultismo, tinha mesmo que aparecer. Bodin, por sua vez, conhecido humanista e juiz, editou De la demonomanie des sorciers baseado em suas experiências à frente de cortes que julgaram também lobisomens, recomendando, sem nenhuma particular dor na consciência, o uso de tortura para determinar os fatos.

Por exemplo... uma das muitas versões sobre como as pessoas se transformavam em lobisomens dizia que eles viravam sua pele do avesso – de um lado, eram homens; do outro, lobos. Essa versão, aliás, foi usada por Monteiro Lobato em O Saci (e me fez ter muitos pesadelos quando criança...).

Assim, para determinar se um determinado acusado era ou não culpado, bastava escalpelá-lo – um método realmente rápido, simples... mas não indolor, já que não existia anestesia (e se existisse, tenho minhas dúvidas se os inquisidores gostariam de usá-la). Se eles tivessem outra pele por baixo, estava provado que eram lobisomens e então eles eram mandados para a fogueira... ou enforcados, decapitados, desmembrados... enfim, cada lugar tinha sua forma favorita de matar.

Essa idéia de que os lobisomens tinham uma pele “dupla-face” é apenas uma das muitas versões que se conheciam à época. Há outras, claro. Lobisomens podiam resultar de um fatídico encontro com uma bruxa, que, se não fosse com a sua cara, poderia encantá-lo. Podiam também ser o resultado de um pacto com o Diabo. Nestes casos, a transformação era voluntária e ocorriam usando-se ungüentos, ervas, encantamentos ou pelo uso de um cinto de pele de lobo.

Você também poderia ser um lobisomem se tivesse um comportamento sexual fora do padrão. Ou se não foi devidamente batizado. Se é o sétimo ou o nono filho. Se seu pai é padre ou se ele teve você com a comadre. Se você tomou banho nas águas de um determinado lago. Se nasceu coberto com o saco amniótico.

Enfim... se você respira, há uma boa probabilidade – ao menos para os padrões medievais – de que você seja um lobisomem.

Os únicos pontos em que todas essas histórias parecem concordar é que (1) lobisomens são seres malignos e (2) carne fresca humana está no topo de suas preferências gastronômicas.

Opa, espera um pouco... Há uma única história que conheço que destoa desse padrão em julgamentos de lobisomens pela Idade Média – e essa é uma das minhas histórias favoritas.

Por volta de 1692, em Livônia – atuais Letônia e Estônia, junto ao Mar Báltico – um homem chamado Thiess confessou, em juízo, que era um lobisomem, mas que, diferente do que se acreditava, ele e outros seus iguais, eram os “Cães de Deus”, os quais desciam ao Inferno para combater as hostes do demônio.

Para sorte de Thiess, que tinha oitenta anos quando fez tais declarações, os juízes, apesar de não acreditarem na história de lobisomens heróis e tementes a Deus, decidiram que ele só precisava de umas dez chicotadas para se colocar no caminho correto.

Eu só não consegui descobrir se o bom octagenário sobreviveu às chibatadas...

Interessante é que as discussões continuaram pela Idade Média adentro, incluindo questões filosóficas de grande importância - teólogos, quando não estavam tentando chegar a uma conclusão sobre qual seria o sexo dos anjos, debatiam se os lobisomens assumiam uma forma inteiramente lupina ou se o Diabo, quando lhes concedia o "dom" apenas os estava enganando com ilusões.

Foi São Agostinho que anunciou um consenso sobre o assunto - que o Diabo não é capaz de criar uma nova natureza (poder esse divino), mas que seria perfeitamente capaz de fabricar uma ilusão.

O que nos leva ao ponto de que existem algumas condições médicas que explicam a idéia do lobisomem - do ponto de vista psicológico, licantropia é uma espécie de loucura que faz crer àquele que sofre dela ter se transformado numa besta.

No primeiro artigo, eu já citei a hipertricose. Outra possibilidade é o hirsutismo, um sintoma da doença conhecida como porfiria. Tradicionalmente, ligamos a porfiria com o vampirismo, já que são também sintomas dela a sensibilidade à luz e a despigmentação da pele, anemia e alucinações; mas considerando a possibilidade do crescimento exagerado de pêlos (o já citado hirsutismo), também poderíamos diagnosticar lobisomens nessa categoria.

Feitas essas muitas considerações, vocês já devem ter notado que a maioria dos cânones em termos de licantropia não foram citados – nada de lua cheia, mordidas ou balas de prata.

Se esses detalhes não vieram exatamente do folclore clássico, então, de onde diabos eles surgiram?

Vocês arriscam um palpite?

(Continua...)



A Coruja


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Um comentário:

  1. Na verdade, não é nem um palpite. Todas as crenças atuais que temos sobre lobisomens são criações de Hollywood. Lua cheia, balas de pratas, a transmissão da maldição através de uma mordida... Tudo criado pelo cinema, para poder assustar uma nova geração de pessoas.

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