15 de junho de 2010

Jane Austen - Parte V: a biblioteca de Austen




Vamos começar hoje de onde paramos no último tópico: a questão da educação como um dos temas centrais que perpassa toda a obra de Austen – especialmente de um ponto de vista ético-moral.

Boas maneiras e dever para com a sociedade são expressões muitas vezes utilizadas em seus romances e caracterizam o código moral interposto pela autora. Na verdade, todas as personagens de Austen passam por um processo de educação, de “iluminação”, pelo sentido de ascensão moral.


Nós temos, por exemplo, Marianne, em Razão e Sensibilidade em seu reconhecimento da necessidade de temperança; Catherine, em Northanger Abbey, compreendendo que o mundo não é um romance gótico e que ela não deve sair fazendo suposições nem enfiando o nariz onde não é chamada e, Emma, no livro homônimo, dando-se conta de que não é nenhuma mestre das marionetes e que as pessoas ao seu redor não estão ali colocadas para seu deleite pessoal.

Não esqueçamos também Elizabeth Bennet, que revê em Orgulho e Preconceito toda a sua conduta, seus preconceitos em relação a Darcy e Wickham, sua visão de mundo restrita – e ela mesma o admite:

- De que modo desprezível agi! – exclamou. – Eu, que me orgulhava de meu discernimento! Eu, que me congratulava por minhas habilidades! Que tantas vezes desdenhei a generosa candura de minha irmã e gratifiquei minha vaidade com desconfianças inúteis ou censuráveis! Como é humilhante esta descoberta! Mas como é merecida esta humilhação! Estivesse eu apaixonada e não poderia estar mais desgraçadamente cega! Mas foi a vaidade, e não o amor, a minha insensatez. Lisonjeada com a preferência de um e ofendida com o desprezo do outro, pouco depois de nos conhecermos, alimentei em relação a ambos o fascínio e a ignorância e abandonei a razão. Até este momento, eu não me conhecia.
Por assim dizer, as heroínas de Austen passam por sua própria “jornada do herói” (perdoe-me Campbell, pelo uso frouxo que faço de suas teorias) – elas precisam evoluir moralmente, reconhecendo o erro de seus julgamentos e amadurecendo para o mundo.

Ao final das contas, devemos lembrar que praticamente todas elas são muito jovens – exceto por Anne, que está às portas de tornar-se uma balzaquiana – com idades variando entre dezessete e vinte e dois anos. Se, para a época, essa era uma boa idade para se casar e começar uma família, não é exatamente uma idade em que somos lá muito sábios ou cautelosos.

Pelo contrário, a marca da juventude é impetuosidade de corpo e espírito, impressionabilidade, e o início da descoberta de que há um mundo lá fora. E a gente tem de levar umas pancadas na cabeça antes de nos tocarmos que as coisas nem sempre são aquilo que parecem.

Nem tanto assim mudou em duzentos anos, não é verdade?

Essa jornada pela qual passam nossos heróis e heroínas austenianos são também um mundo literário à parte. Na verdade, nós poderíamos montar uma biblioteca só com os livros citados, satirizados ou homenageados nos romances de Jane Austen.

Como já falei em um tópico anterior, os livros que Austen coloca seus personagens para ler são também um indicativo da época em que eles se passam – como os pesquisadores mais aficcionados são capazes de indicar. De cabeça e sem dar uma colada nos livros, eu posso citar de imediato Ann Radcliffe em Northanger (óbvio) e Byron e Scott em Persuasão.

Aliás, o capitão Wentworth me parece muito byroniano em algumas acepções...

Talvez vocês se lembrem, lá da primeira parte deste especial, que falei sobre Plan of a Novel, manuscrito de 1816 em que Austen demonstra sua verve para o humor e para ironizar o que havia de ridículo – inclusive na literatura de sua época.

Suas primeiras obras foram, em muitos pontos, experimentos – o uso de clichês literários bastante em voga à época, estereótipos dos chamados “romances de sensibilidade”, os quais ela subvertia completamente.

Um dos mais deliciosos e divertidos exemplos que encontrei dessa característica de subversão foi em Lesley Castle, outro dos excertos da Juvenilia:

Perhaps you may flatter me so far as to be surprised that one of whom I speak with so little affection should be my particular freind; but to tell you the truth, our freindship arose rather from Caprice on her side than Esteem on mine. We spent two or three days together with a Lady in Berkshire with whom we both happened to be connected. -- During our visit, the Weather being remarkably bad, and our party particularly stupid, she was so good as to conceive a violent partiality for me, which very soon settled in a downright Freindship, and ended in an established correspondence. She is probably by this time as tired of me, as I am of her; but as she is too polite and I am too civil to say so, our letters are still as frequent and affectionate as ever, and our Attachment as firm and sincere as when it first commenced.
Sou a única a morrer de rir aqui com a completa falta de sentido desta carta? “Ela estará provavelmente tão cansada de mim quanto eu dela; mas como ela é muito polida e eu, muito civil, para dizê-lo, nossas cartas continuam tão freqüentes e cheias de afeição como sempre...” – poderíamos passar o dia aqui tirando dessa única frase várias e várias considerações e ainda assim, não iríamos exaurir o tema.

Assim é que agora, vou deixá-los para tirar suas próprias conclusões. Já falei e fiz propaganda o suficiente para que tenham ao menos uma idéia do que o esperam e um vislumbre da genialidade de Austen – especialmente a se considerar que ela foi uma autora, mulher, num mundo e século ainda dominados por homens.

Apenas para terminar esse especial, na próxima e última parte, vamos dar uma pincelada sobre essa nova moda de misturar clássicos com o sobrenatural – e dá-lhe vampiros, lobisomens, múmias, zumbis, krakens, fantasmas...

(Continua em “De monstros, vampiros, zumbis e outros mash-ups”)


A Coruja


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3 comentários:

  1. Finalmente vim aqui dar uma fuçada no seu blog e AMEI!

    Parabéns, parabéns!

    Pode ter certeza de que voltarei mais vezes =)

    beijinhos

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  2. Dona Coruja! ops... quer dizer, Dona Luciana, os posts estão excelentes. Eu poderia publicá-los como uma coletânea lá no blog?

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  3. Sim, Dri, pode publicar à vontade no blog.

    E Mari, vou ficar esperando mais visitas!

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