22 de novembro de 2018
Leve-me com Você: quando uma história se torna pessoal
August Shroeder é um professor de ciências desacreditado e um alcoólatra em recuperação. Todos os anos, seu destino nas férias de verão é o mesmo: a estrada. Em seu trailer, ele percorre quilômetros e mais quilômetros nas rodovias para visitar os belíssimos parques e reservas naturais. Seu plano era visitar o Parque Nacional Yellowstone com seu filho, Phillip, mas agora não há ninguém no banco do passageiro — apenas um punhado de cinzas guardado no porta-luvas, em uma garrafa de chá carregada de significado.
Quando o trailer quebra, August busca conserto na oficina mais próxima. Mas, além do motor home pronto para seguir viagem, ele sai de lá com dois garotos a tiracolo — seus novos companheiros nessa road trip — e a chance de repaginar uma viagem que tinha tudo para ser melancólica e permeada por lembranças doloridas.
Sabe quando você encontra uma história, por coincidência ou capricho do destino, no momento certo para você? Quando ela deixa de ser algo geral, para se tornar pessoal; quando ela parece conversar diretamente contigo ou com o momento em que você se descobre? Porque foi exatamente isso que Leve-me com você foi para mim: um enredo que espelhava a jornada em que eu mesma me encontrava.
Não foi proposital. Eu estava já saindo para o aeroporto quando me lembrei de que teria quase doze horas de voos pela frente, e embora já tivesse colocado o tablet na mochila, é sempre bom ter um livro físico em mãos. A obra de Catherine Hyde tinha sido um dos últimos volumes a chegar lá por casa e estava em cima da bancada, de forma que era mais fácil pegá-la que ir ficar pensando na frente da estante sobre o que levar. Assim é que, em algum lugar acima das nuvens, atravessando o Atlântico, comecei a ler sobre a jornada de August, que viaja atravessando os Estados Unidos para tentar lidar com o luto da perda do filho, Phillip. O objetivo é levar um punhado das cinzas do rapaz para o Parque Nacional Yellowstone, um destino que eles tinham planejado visitar juntos, mas que um acidente impediu de acontecer.
Minha própria viagem era uma despedida. Era algo que eu tinha prometido a uma tia muito querida, que perdi no início de 2017. Antes de sabermos da gravidade de seu diagnóstico, prometi que iríamos juntas a Paris e mais além; e até a última semana com ela consciente no hospital, minha tia falava nesse plano - ainda que, a essa altura, já soubéssemos que era improvável acontecer. Quando tia Marilu faleceu, cortamos uma mecha de cabelos dela, que guardei num envelope e, durante um ano e meio, planejei cada detalhe da viagem que teríamos feito juntas. Minha ideia era deixar um pouco dela por cada lugar que eu passasse.
"Mas, antes de terminarmos a conversa, e antes de ele beber todo o chá, a mãe dele entrou na sala e pediu para Phillip acompanhá-la a uma loja. Ela precisava fazer uma compra grande e queria ajuda para carregar tudo. Ele nunca recusava um pedido da mãe. Nunca. Acho que imaginou que voltaria logo. Então deixou a garrafa em cima da mesa, porque sabia que ia voltar logo. Mas ele não voltou logo."
"Quando ele voltou?"
"Não voltou. Ele e a mãe sofreram o acidente."
"Ah."
"Aquela garrafa ficou em cima da mesa nas duas semanas seguintes. Eu entrava na sala, olhava para ela, mas não conseguia jogá-la no lixo. No nível emocional, ainda não aceitava que ele não voltaria. Não sei como explicar essa parte. É como se eu soubesse, mas não compreendesse. Minha cabeça sabia, mas uma parte de mim não conseguia entender o que havia acontecido. Era como se a garrafa fosse prova de alguma coisa. Como se comprovasse que ele voltaria e terminaria de beber o chá. A garrafa quase tornava isso possível. Mas o tempo passou, e a garrafa começou a embolorar. E eu não suportava ver aquele bolor. Então lavei a garrafa e a guardei. Não consegui jogar fora."
"Por isso guardou as cinzas em uma garrafa velha de plástico, em vez de usar uma urna bonita."
"Isso."
"E leva a garrafa para todos os lugares aonde vai?"
"Não. Não levo. Estou levando para Yellowstone porque vou deixar as cinzas lá."
"Vai deixar lá?"
"Isso mesmo."
"Vai deixar a garrafa em algum lugar? E se alguém jogar fora?"
"Não, não vou deixar lá desse jeito. Vou deixar as cinzas, não a garrafa."
"Ah, vai espalhar. Já ouvi falar nisso."
"Acontece que acho que não é... bem, acho que não é exatamente legal. Mas ele viria comigo nessa viagem. E isso é o máximo que posso fazer para trazê-lo. Mas acho melhor não contar nada disso a ninguém."
Então, eis que eu estava a caminho de Paris, com aquele envelope na carteira, quando August conta a história da garrafa de chá e das cinzas de Phillip. E, como o ser humano gosta de atribuir significado a essas coincidências, não é surpresa que eu tenha começado a chorar na hora, ou que visse a coisa toda como algum tipo de sinal.
Importante aqui ressaltar que, embora a sinopse soe um tanto deprimente, Leve-me com Você é um livro surpreendentemente prazeroso. A história trata de perda, problemas de família, alcoolismo, mas também de esperança, resiliência, companheirismo. A presença inesperada de Seth e Henry, os filhos do mecânico que August acaba levando consigo na viagem em troca do conserto do trailer, faz com que o professor lide com algumas verdade sobre si e sobre o que aconteceu; para além disso, ele se afeiçoa aos meninos e se torna também para eles um ponto de apoio.
Não é a primeira vez que Seth e Henry têm sua vida virada do avesso. A mãe os abandonou quando pequenos; o pai é um alcoólatra e, já foi preso mais de uma vez por dirigir embriagado. Antes da chegada de August, a perspectiva era terem de ir para um abrigo do governo - algo que já acontecera antes e que terminara com Henry, o caçula, parando de falar com qualquer outra pessoa que não fosse Seth. Talvez justamente por isso, pelo desespero de não ter outras alternativas, seja possível acreditar no pedido de Wes para que August leve os filhos consigo durante o verão. A viagem para o Yellowstone representa novos pontos de vista, modelos pelos quais aspirar. A história de August os inspira a enfrentar a realidade sobre o alcoolismo do próprio pai, e também lhes dá alternativas à vida provinciana que levam. Como Seth mesmo diz em mais de uma ocasião, o que eles veem ao longo da jornada expande seu mundo: é a primeira vez que eles percebem que há algo maior para além da cidade e da vida que conhecem.
Seth e Henry tiveram de crescer mais rápido do que deveriam, mas eles não deixam de ser crianças. E August respeita isso, é gentil, capaz de aconselhar sem nunca adotar um tom de sermão e consegue se ouvir na mesma medida em que lhes fala; por essa exata razão, a relação que ele constrói com os meninos se revela tão sólida e genuína. As conversas junto à fogueira, nos acampamentos; as belezas e colossos naturais pelos quais passam, de reserva em reserva até Yellowstone; a forma como eles vão compartilhando e permitindo que o outro parte de sua história, tudo isso constrói uma base segura para o futuro de Seth e Henry, enquanto ajuda a cicatrizar as feridas de August. É um belo retrato de apreço e amizade entre diferentes gerações. O impacto que eles tiveram uns nos outros é duradouro, indelével.
Leve-me com Você consegue ser comovente sem soar condescendente ou melodramático. A autora não pesou a mão, mesmo nos momentos mais difíceis, e conseguiu criar personagens que soam como pessoas reais, que podemos reconhecer ou nos identificar. Sensível e inspiradora, essa é uma daquelas histórias para a qual retornar quando precisamos de conforto, para aquecer o coração.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Leve-me com Você
Autor: Catherine Ryan Hyde
Tradução: Débora Isidoro
Editora: Darkside
Ano: 2018
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ResponderExcluirSua tia participou da sua vida e impressionou sua alma, fora isso, era carne da sua carne e por isso está viva através de você.
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