18 de fevereiro de 2017

#LendoSandman: O Grande Momento da Vida


Há muito de familiar em O Grande Momento da Vida para os leitores regulares de Sandman, a começar pelas protagonistas, Hazel e Foxglove. Foxglove, que no começo de tudo se chamava Donna, é citada por uma das clientes da lanchonete que o Doutor Destino toma refém em Prelúdios e Noturnos. As duas já aparecem como um casal em Um Jogo de Você, quando seguem Tessália para o Sonhar, usando uma bacia com água e sangue para fazer a Lua abrir um caminho para resgatar Barbie - e, à época, Hazel já estava grávida. De novo, nós as encontramos em O Alto Preço da Vida, quando Sexton, com um comentário cheio de timing, lança as bases do que será a carreira de Foxglove, que é o ponto em que começamos essa história.

Agora uma cantora de sucesso, Foxglove tem canções em trilhas sonoras de filmes e potencial para iniciar uma carreira de atriz, vai a pré-estréias e talk-shows, viaja pelo mundo fazendo turnês e trai Hazel quando surge uma oportunidade. Ela atravessa o mundo meio sem sentir - a realização de seus sonhos acabou se tornando um fardo e Foxglove sonha repetidas vezes em se desfazer dele, em poder fugir de tudo, de suas responsabilidades e voar, livre, como uma borboleta.


Aliás, é interessante notar que todas as pessoas e os momentos que mostram Foxglove nos bastidores do show business são cheios de desapontamentos e arrependimentos, de respostas prontas, vidas vazias e, claro, a tentativa de manter as aparências. De certa forma, o triunfo de Foxglove é como um daqueles pactos demoníacos numa encruzilhada, em que ela abre mão de tudo o que realmente importa - incluindo sua própria identidade, sua sexualidade, sua opinião, e se as coisas continuassem da maneira como iam, sua própria maneira de fazer arte - para ter realizado seu desejo.

Enquanto isso, Hazel fica em casa, cuidando do filho, Alvie (talvez uma homenagem ao falecido Alvin/Wanda?), atuando como uma espécie de secretária de Foxglove ao mesmo tempo em que observa, dia após dia, a outra se afastar, tanto física quanto emocionalmente.

Há coisas maiores com que se preocupar, contudo. Alvie, logo no prólogo da história, pára de respirar no berço, e Hazel acaba fazendo um acordo com uma personagem misteriosa que ela parece reconhecer: a Didi de O Alto Preço da Vida, ou ainda, Morte dos Perpétuos. É outro pacto mefistofélico, no qual em vez de Foxglove vendendo sua alma para a indústria, Hazel acorda com Morte que ela dará a Alvie mais algum tempo, mas em breve estará de volta para ver a pequena família… e nessa ocasião, ela levará consigo um dos três: Alvie, Hazel ou Foxglove.


Quando Hazel conta essa história para Foxglove, ela não acredita, ainda que saiba que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia, afinal, ela esteve com uma bruxa antes, e caminhou para fora do nosso mundo e direto ao reino do Lorde Moldador. E assim é que o tempo passa, com uma sucessão de ausências, corações partidos e quartos de hotéis, até o momento de acertar as contas.

O empresário de Foxglove morre com um ataque cardíaco e retorna em sonhos para Foxglove, com crípticas mensagens, numa atuação que muito lembra a do fantasma de Marley, sócio de Scrooge em Um Conto de Natal. É quase tarde demais quando Foxglove afinal volta para casa, seguindo os pedidos de Hazel e Larry, e, sem encontrar o resto da família, apela para o que aprendeu com Tessália.


Enquanto isso, acompanhamos Hazel e Morte no que é, afinal, ‘o grande momento da vida’ de que fala o título, quando Hazel rememora toda sua história, especialmente seus momentos com Foxglove, numa representação daquela ideia de que, quando morremos, toda a nossa vida passa num instante por nossos olhos, como um filme. Como bem dito na história, “se você vai ser humano, tem um monte de coisas no pacote. Olhos, um coração, dias e vida. Mas são os momentos que iluminam tudo. Os instantes em que você não nota que os está vivendo… são eles que fazem o resto valer à pena”.


Essa é uma das minhas citações favoritas de tudo o que Gaiman já escreveu e, mais uma vez, a essência do que é O Grande Momento da Vida. Mais que o sucesso - muitas vezes efêmero e vazio, como se vê na jornada de Victor, Boris/Endymion, Larry e , claro, Foxglove - são os pequenos momentos relembrados com tanto cuidado por Hazel que realmente importam.

O que me impressiona em O Grande Momento da Vida é que Gaiman consegue passar todas essas impressões para o leitor sem grandes dramas: por mais que haja uma interferência sobrenatural, os relacionamentos, os sentimentos, as responsabilidades desses personagens são verossímeis, genuínas, completamente normais. Mesmo quando Foxglove revela sua traição e diz a Hazel que acha que não a ama mais, esse momento - como tantos outros pequenos instantes dessa história - não tem melodrama, não é nada exagerado.

É interessante que nas duas minisséries mais lembradas de Morte, seja a vida o grande e verdadeiro tema, o que faz das nossas existências algo tão rico, com que nos apegamos com tanto afinco. Morte aparece aqui para lembrar, sobretudo, porque a vida é algo tão sublime, seja em momentos épicos, seja nos pequenos instantes que podem não parecer importante, mas que fazem parte da nossa história, que constroem nossa identidade.

Então, por hoje, acho que é tudo. Próximo post vai ser sobre Noites sem Fim. Até lá, continuem acompanhando o projeto na comunidade All About Gaiman e também pelo Pipoca Musical!


A Coruja


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Um comentário:

  1. Oi Lu! Achei muito bacana a forma como você abordou essa edição, em especial quando fala dos bastidores de showbusiness e tal. A gente vê tanto isso em filmes e séries que realmente é bem coerente, né. Achei bacana.

    Mas infelizmente pra mim foi a história mais fraca de todas. Não tanto pelas coisas que acontecem, mas pq acontecem. Na minha visão, as atitudes da Morte contradizem tudo o que ela "pregou" ao longo de Sandman - que ela chega para todos. Não é bem assim, se vc negociar bem negociadinho, ela pode te dar um prazo extra e, isso, pra mim é incoerente ~as hell. Continuo preferindo O Alto Preço da Vida em absolutamente todos os aspectos, mas achei bacana ver a evolução da Hazel, de menina 'inocente e ignorante' em Um Jogo de Você para alguém mais ciente das coisas. Ela mudou muito pela Fox.

    Beijoca no coração :D

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