5 de dezembro de 2016

As (outras) Casas de Hogwarts: uma defesa de lufanos, corvinais e sonserinos


Com a estréia de Animais Fantásticos e Onde Habitam, uma enxurrada de produtos oficiais inspirados no universo criado por J. K. Rowling apareceu por aí. Acho que todas as mystery box brasileiras usaram o tema como mote; a Funko lançou vários personagens e trocentas variações exclusivas e até grandes lojas de departamento começaram suas coleções, que vão de camisetas até pacote completo para o quarto dos potterheads (ou pottermaníacos, como se falava na minha época e, ei, como me senti velha com isso agora…). Eu mesma andei fazendo compras nesse sentido e estaria bastante satisfeita com tudo que andei adquirindo não fosse um pequeno detalhe: a dificuldade em encontrar produtos das Casas de Hogwarts que não sejam só Gryffindor.

E, ok, se eu der uma procurada na internet eu até encontro camisetas com o brasão da Ravenclaw, minha casa do coração (não, sério, ainda que eu não me identificasse, o fato é que TODOS os testes que já fiz me sortearam lá, sem exceção). Infelizmente, a quase totalidade dos que achei tinham um corvo no lugar da águia, que é o animal que de fato representa a casa nos livros... Mas é isso, não existe muita diversidade, outras estampas que utilizem os símbolos relacionados a ela, suas cores… e menos ainda se você restringir sua procura a produtos licenciados.

Mesmo da Slytherin, onde supostamente encontramos todo o pessoal ‘do contra’ que prefere Império aos Rebeldes, há pouca oferta. E, olha, até entendo que considerem que a maior parte dos fãs não quer outra coisa além de uma blusa do time de quadribol da casa dos leões, com ‘Potter’ escrito nas costas, mas acho que o pessoal de pesquisa de mercado esqueceu de duas coisas: primeiro, que nós, leitores de tia Jo, levamos muito a sério as palavras do Chapéu Seletor e, segundo, embora Harry seja o grande herói da história, sua saga é um libelo contra o preconceito e a intolerância - algo que também se representa na diversidade das casas de Hogwarts.


Ok então, confesso que um dos motivos de estar escrevendo tudo isso não só para reclamar de não encontrar camisetas legais com estampas inspiradas na Ravenclaw, mas porque às vezes me parece que existe uma certa noção de que a diferença entre as quatro casas é que todo mundo legal vai para a Gryffindor, os vilões são sonserinos; CDF vai para Ravenclaw e o resto é Hufflepuff. Os próprios personagens volta e meia partilham dessa ideia - e a Rowling nem sempre entrega o que promete nesse quesito.

Eu já resmunguei bastante sobre a forma como sonserinos foram retratados na Batalha de Hogwarts. Embora numa entrevista posterior à publicação de As Relíquias da Morte, Rowling tenha afirmado que após todos deixarem a escola com o professor Slughorn, seguindo as ordens da professora McGonagall, parte dos sonserinos voltou para lutar, trazendo consigo como reforço os pais dos alunos que tinham ficado - o que demonstra boa estratégia, em vez de covardia - o fato é que ela só fez referência a isso numa entrevista, não havendo nada, NADA no livro que deixe isso claro. Como nem todo mundo vai sair cavando entrevistas para podcasts em inglês seis meses depois do lançamento do livro, na prática é como se ela não tivesse dito isso.


Sonserinos são astutos, engenhosos, ambiciosos. Determinados também, mas do tipo que pensam e planejam antes de agir, em vez de se enfiar no meio de uma batalha de forma impulsiva e despreparada. O fato de a maior parte dos seguidores de Voldemort serem, originalmente, sonserinos, deve-se primeiro a ser uma das casas com maior concentração de ‘sangues puro’ e, segundo, pelo próprio Voldemort ter sido da Slytherin e ali ter um círculo maior de conhecidos. Não é característica da casa ser inerentemente maligno.

É bom observar que os dois personagens-chave a trazer Voldemort de volta ao círculo dos vivos são um corvinal e um grifinório, Quirrell e Pettigrew, respectivamente. Quirrell pode ter sido subjugado pela vontade de Voldemort de forma não completamente intencional, mas Peter Pettigrew, mesquinho, covarde, desleal Peter, escolheu ser um comensal.

Há vários sonserinos que fazem justiça aos ideais da casa sem se converterem no processo para as artes das trevas. Merlin, considerado o maior mago da História, conselheiro pessoal do rei Artur e um militante em favor dos direitos dos trouxas, foi um sonserino. No curso da saga há também outros bons exemplos, como os professores Horace Slughorn e Severus Snape, o regenerado Draco Malfoy de A Criança Amaldiçoada, seu filho Scorpius (o mais bem resolvido personagem de toda a história) e Albus Potter, filho de Harry - para não falar do próprio Harry, que poderia ter sido colocado em Slytherin se não tivesse implorado ao Chapéu que não o fizesse.

Por mais pomposo e ridículo que Slughorn soe, ele nunca foi particularmente preconceituoso, sabendo reconhecer talento independente de fortuna, linhagem ou casa. Ele é oportunista, mas fica claro que ele alimenta seu ego criando também oportunidades, apresentando pessoas, pavimentando caminhos para os talentos que encontra. Além disso, Slughorn também é capaz de grande coragem e sangue-frio: é ele quem vai atrás de reforços para a Batalha de Hogwarts, algo em que ninguém mais pensou durante o cerco, além de duelar contra o próprio Voldemort antes do último embate do Lorde das Trevas com o Garoto que Sobreviveu.

Severus Snape, por sua vez, é, a um tempo, herói e vilão de sua própria história. Por um lado, ele, um dia, escolheu estar ao lado do Lorde das Trevas, mudando de lealdade não por questão de opinião, mas por interesse - para salvar a vida de uma única pessoa e não em nome de um ideal maior. Por outro, ele foi fiel ao amor que sentia por Lily mesmo quando já não havia mais qualquer esperança para ele. Snape é cruel e, em alguns momentos, até mesmo infantil em seu tratamento de Harry e não se pode negar que ele tenha uma parcela de culpa no que aconteceu a Sirius. Mas ele nunca se esquiva de fazer o que for necessário uma vez que se comprometa com um caminho. Snape é inteligente e talvez o personagem mais sangue-frio de toda a saga, mantendo sua calma e seus pensamentos em ordem, de forma a enganar até Voldemort.


Mais recentemente tivemos a adição de dois sonserinos muito interessantes ao elenco de personagens que conhecemos: Albus, filho de Harry Potter e Scorpius, filho de Draco Malfoy. Albus é meio que uma cópia da fase mal humorada e hormonal do pai e não há muito mais o que eu possa dizer sobre ele porque, na verdade, a melhor parte de A Criança Amaldiçoada são os Malfoy. Draco se mostra aqui um pai interessado, até afetuoso, com um relacionamento próximo do filho que, por sua vez, a despeito do bullying que sofre, é um personagem surpreendentemente bem resolvido. Scorpius é leal em suas amizades, é extremamente inteligente e obstinado em consertar seus erros.


Ravenclaw é a casa que valoriza inteligência e sabedoria, mas também a criatividade e a individualidade. Considerando que para entrar em seu salão comunal, é necessário desvendar um enigma que está sempre mudando, os corvinais, sem sombra de dúvidas, têm bom senso de humor (ou viveriam fumegando de raiva quando não conseguissem descobrir a resposta das charadas de primeira, ficando trancados do lado de fora de sua casa).

Corvinais gostam de aprender. Isso não significa necessariamente que eles sejam sempre os queridinhos dos professores, daqueles que sentam na frente da sala e anotam tudo o que é dito. Deve haver, sem dúvida, corvinais com essas características, mas inteligência não se resume a isso. Eles devem perder tantos pontos com explosões de feitiços e poções experimentais quanto ganham com respostas corretas; e esquecer de fazer as lições porque estavam mais envolvidos com projetos de pesquisa pessoais. São do tipo que uma vez que gostam de alguma coisa, querem saber tudo sobre ela, a ponto de se tornar quase uma obsessão. Seus debates se aprofundam e saem por tangentes cada vez mais prolixas e distantes do assunto original, mas há sempre lógica em suas conclusões. Os membros da Ravenclaw são livres pensadores, humanistas no sentido renascentista da palavra, pessoas que sabem pensar fora da caixa.


Quando pensamos em Ravenclaw, pensamos em Luva Lovegood e acho que a Luna é uma perfeita demonstração dos ideais imbuídos no legado de sua fundadora. Luna é excêntrica, interessando-se por assuntos os mais diversos possíveis, muitas vezes ridicularizada por esses interesses. Mas ela não se importa com o que os outros pensam dela, aprendendo o que quer aprender, com uma serenidade de espírito que eu invejo - e, em muitos momentos, revelando-se a voz da razão.

Muitos dos corvinais mais famosos foram inventores, cientistas, estudiosos, especialistas em suas áreas de atuação. Curiosidade e originalidade são, sem dúvida, características tão importantes para essa casa quanto sabedoria. E, se por um lado, tudo isso deve tornar membros da casa da águia competitivos por natureza, também os faz tolerantes de todas as diferenças representadas por seus membros.


E assim chegamos a Hufflepuff, a casa dos justos e leais, tolerantes e pacientes. Os lufanos são a casa mais inclusiva de Hogwarts - não porque receba ‘o resto’ dos que não foram para as outras casas, mas sim porque é de sua natureza dar uma chance a todos. Lufanos possuem uma notável ética de trabalho, são extremamente dedicados e esforçados. Uma vez que um membro da casa dos texugos se comprometer com um determinado caminho, não tenho dúvida que eles seguirão obstinadamente até completar seu objetivo.

Uma das personagens mais legais dos livros é uma lufana típica: a auror metamorfomaga, Nymphadora Tonks. Tonks é animada, sempre disposta a dar o seu melhor e a encorajar as pessoas ao seu redor. Quando ama, ama com todo o seu coração - e por isso, é tão afetada pela rejeição de Remus Lupin.

Cedric Diggory, o campeão do torneio tribruxo, é outro exemplo do que a fundadora da casa valorizava em seus pupilos. Do começo ao final do torneio tribruxo, mesmo tendo Harry como rival, Cedric nunca recorre a qualquer tipo de jogo baixo. Sempre que acha que as chances não são iguais para todos os lados, ele tenta trazer de volta a equidade - basta ver sua atitude no jogo de quadribol que acontece contra Gryffindor em O Prisioneiro de Azkaban. No final das contas, Cedric morre por seu compromisso com o jogo justo. E por isso é horrível quando Voldemort ordena, sem dar chance de reação, ‘kill the spare’ - mate o outro, o sobressalente, o extra, o desnecessário...


Na nova série de filmes que se iniciou com Animais Fantásticos e Onde Habitam, somos apresentados a mais um lufano extraordinário. Newt Scamander é gentil e compassivo, extremamente leal àqueles que conquistam seu respeito - já tendo acontecido antes de pessoas se aproveitarem disso (nos livros com informações extras sobre o filme já foi esclarecido que Newt foi expulso de Hogwarts por ter decidido assumir a culpa de um acidente que, na verdade, foi causado por Leta Lestrange).

Quando fui assistir Animais Fantásticos e Onde Habitam, eu não tinha formado muitas expectativas - vi apenas um trailer do filme, e bem antes de sua estréia, e fui meio ressabiada, perguntando-me se iam estragar aquele mundo pelo qual me apaixonei quando li os primeiros livros. Considerando ser este um primeiro ato, uma introdução de fatos e personagens, achei o andamento do filme muito bom e, claro, amei o protagonista. Newt é um personagem muito interessante, que passa vulnerabilidade e força e é bem isso que o torna um representante tão bom dos lufanos: sua gentileza e timidez contrastam com sua competência e capacidade; e é sempre bom sublinhar o fato de que Newt duelou e ganhou a primeira batalha contra um dos bruxos das trevas mais temidos da história, alguém que, posteriormente, apenas Dumbledore derrotaria.

Há vários tipos de coragem, assim como há vários tipos de sabedoria, ambição e lealdade. Todas as Casas de Hogwarts são igualmente importantes; todas nutriram bruxos e bruxas notáveis e, qualquer que seja a casa em que você for sorteado (ou aquela que você escolher se o Chapéu lhe der uma chance), é certo que será uma honra pertencer a ela. Que Ravenclaw, Slytherin e Hufflepuff sejam tão bem representadas quanto Gryffindor, que usemos suas camisas com orgulho e que nunca nos esqueçamos das palavras de Dumbledore sobre o assunto: "são as nossas escolhas que revelam o que realmente somos, muito mais do que as nossas qualidades."


A Coruja


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2 comentários:

  1. Caiu uma lágrima aqui. Se ravenclaws sofrem pra achar produtos da Corvinal, imagina os lufanos aqui... Impossível. Nem produto errado a gente acha. Fiz uma série de edits há anos atrás sobre membros notáveis da Lufa-Lufa, e outra sobre "kill the stereotype", onde eu usava Peter Pettigrew pra representar a Grifinória, Lockhart pra Corvinal, Merlin na Sonserina e Tonks pra Lufa-Lufa. Recebi mensagem de grifinório revoltado? Podes crer.

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    1. Isso é um bocado bizarro, essa coisa de se revoltar com a realidade... Não gosto de estereótipos e vejo mais de uma ocasião em que grifinórios agiram como vilões - não apenas o Peter. Para uma história que prega tolerância, os leitores nem sempre demonstram essa capacidade, né?

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