21 de julho de 2016
Para ler: Pamela
À primeira vista, Pamela, de Samuel Richardson, não é o tipo de livro com o qual o leitor moderno sentiria muita identificação: trata-se de um romance epistolar que acompanha as desventuras de uma jovem de beleza incomum, a qual se aferra com unhas a dentes a sua virgindade como símbolo máximo de seu próprio valor contra um patrão aristocrata que, continuamente, tenta violentá-la, mas acaba mudando frente ao exemplo da moça e pelo amor que ela lhe inspira e, de libertino consumado, se torna marido piedoso.Oh, coração traiçoeiro! Como pudeste me tratar dessa maneira? Sem me dar sequer um aviso das brincadeiras de mau gosto que ias fazer comigo! Como pudeste te curvar tão facilmente ao invasor impetuoso, sem ao menos consultar tua pobre dona? Mas teu castigo será o primeiro e o maior de todos, e bem merecido, pérfido traidor.
Não há muitas pessoas hoje em dia que possam dizer que escrevam cartas. Missivas, de vez em quando por e-mail; no mais das vezes uma ou duas linhas ou uma mensagem pelo whatsapp. Nada como Pamela faz aqui, traduzindo em seus relatos tudo o que está acontecendo ao seu redor.
Escrever um romance epistolar não é fácil (tive minha experiência com a Ísis quando trabalhamos em Heróis de Papel). Você está escrevendo na voz de um único personagem, vê apenas aquilo que esse personagem pode enxergar e julga todos os outros pela forma como o correspondente as julga. É um meio extremamente restritivo para a ação, especialmente se você não transforma suas epístolas em cenas inteiras de diálogos rápidos - como Frances Burney faz em Evelina.
Um romance epistolar é um constante exercício de introspecção e costuma ser bem mais lento do que o mundo moderno está acostumado a consumir. Mas quando nos dispomos ao desafio, muitas vezes encontramos histórias que nos convidam a reflexões bem mais profundas que um rom-com normal faria.
Pamela é, por vezes, repetitivo, mas não o achei nem de longe cansativo ou demasiado lento - pelo contrário, ele foi um vira-páginas frenético para mim, ansiosa de saber como cargas d’água Pamela conseguiria se livrar da lascívia do Sr. B. As situações em que a mocinha vai se encontrando são dignas dos melhores melodramas e folhetins.
Não me surpreendi com isso: publicado em 1740, ele foi um dos primeiros romances a se tornar um ‘best-seller’ no sentido como conhecemos hoje. As pessoas se reuniam para ouvir os capítulos, avançando um pouco mais na leitura a cada dia - sofriam, torciam e se entusiasmavam com o que estava acontecendo na história. E, acima de tudo, elas se identificavam com sua heroína: Pamela é uma das primeiras protagonistas de um romance que pertence à classe trabalhadora.
(Embora eu deva confessar que, considerando as reviravoltas em que Pamela vai se encontrando, e o típico ritmo de folhetim, fiquei na expectativa de que ela se revelasse na verdade uma nobre trocada no berço ou coisa parecida. Surpreendi-me por não ter sido assim e isso conta muitos pontos para o romance.)
Podemos hoje estranhar a forma como a personagem crê que seu valor - e o valor das mulheres de uma maneira geral - só existe se ela se mantém casta. Contudo, se estudarmos Pamela com mais cuidado, descobriremos que ainda é possível ‘empatizar’ com a heroína e a defesa que ela faz de seus princípios. Ela é firme e convicta do que está fazendo e ninguém é capaz de demovê-la do caminho que escolhe para si. Através de suas cartas, ela se revela muito mais que uma pequena criada de rostinho bonito e é muito pela riqueza de seu caráter, sua compaixão e delicadeza entrevistas nessa correspondência que o Sr. B. acaba por se apaixonar.
Se, por um lado, a firmeza de convicção de Pamela a torna a nossos olhos uma personagem admirável, por outro, eu não me professo uma grande fã de seu envolvimento com o Sr. B. Não sou partidária da velha máxima de que os libertinos fazem os melhores maridos - e Richardson também não era, a julgar pela forma como ele encerra seu outro grande romance, Clarissa.
Eu talvez tivesse apenas rido se o romance entre patrão e empregada tivesse se dado através da sedução - as cláusulas do contrato em que o Sr. B. propõe a Pamela que seja sua amante são uma coisa inacreditável e as respostas dela são algo ainda melhor e se tornou minha parte favorita do livro. Mas ao longo de boa parte da história, é através do assédio e da violência que o homem tenta fazer valer sua vontade. A mágica conversão do ‘herói’ não me parece o suficiente para apagar todas as barbaridades que ele cometeu anteriormente, especialmente a se considerar que o desespero de Pamela quase a levou ao suicídio.
Para minha sensibilidade moderna, é estranho que Pamela aceite voltar para o Sr. B. E, se eu tivesse lido esse livro apenas pelo romance, teria terminado desapontada, porque esse é um relacionamento que não acho particularmente saudável (mas, bem, isso é questão de gosto...). Contudo, boa parte do meu interesse em Richardson vem do fato de ele ser um dos principais autores do século XVIII e uma das mais importantes inspirações para Jane Austen - e assim é que as expectativas que eu tinha para ele foram muito bem atendidas.
De fato, à medida que ia avançando na leitura, peguei-me fazendo mil e uma comparações. O tom geral da história provavelmente inspirou Sandition e Os Watsons; Fanny Price parece ter saído do mesmo molde de Pamela e todos os patifes charmosos de Austen - e em especial Mr. Willoughby - homenageiam o Sr. B.
No cômputo geral, eu me diverti mais do que esperava com o livro. E fiquei particularmente enamorada da edição da Martin Claret, com a capa dura ilustrada - gosto muito dessas capas com ilustrações originais que eles têm colocado em seus romances. A tradução foi bem fluida e, a despeito de ter sido escrito mais de dois séculos atrás, a linguagem de Pamela não é um empecilho para o leitor moderno.
Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)
Ficha Bibliográfica
Título: Pamela, ou a Virtude Recompensada
Autor: Samuel Richardson
Tradução: Carlos Duarte e Anna Duarte
Editora: Martin Claret
Ano: 2016
Onde Comprar
Amazon || Cultura || Saraiva
A Coruja
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sobre
Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário