23 de outubro de 2015

Heróis de Papel - Capítulo 24


Capítulo 24

Meados de Agosto (Ano 4)

Kal,

Peço desculpas pela demora nesta carta. Como você já deve saber, seu vizinho Eric tinha razão. Ao longo dos últimos dois meses, houve um desembarque maciço de tropas aliadas e, mesmo estando longe do principal teatro de operações no momento, houve um acirramento das tensões em nossa área.

Estou agora num raro momento de paz em meio aos combates das últimas semanas, após a tomada da capital. Temos avançado para o norte, mas a situação está bastante complicada – o país tem agora dois governos, e receio a possibilidade de que, antes que possamos derrotar os fascistas, isso termine por se transformar numa guerra civil.

Tenho esperança que não cheguemos a tal ponto, especialmente com as últimas vitórias que temos conseguido após a travessia do Canal. É a primeira vez em muito tempo que acredito que há um fim breve em vista para a guerra, e que talvez estejamos de volta em casa para comemorar o natal esse ano.

Estou aliviado que não tenha se entediado com minha última carta. Embora eu admire a sua usual verbosidade – aliás, espero-a com crescente ansiedade – não costumo ser tão dado a longas digressões. Dois motivos principais para isso: não é um costume meu e muitos dos detalhes que eu poderia acrescentar acabariam por serem censurados.

Seja como for, ‘ouvi-lo’ é o mínimo que posso fazer, e faço-o com absoluta satisfação. Reitero o que já lhe disse antes, David, de que nada sobre o que você queira conversar me será um problema.

O baú é, de fato, uma obra-prima. Tive a oportunidade, antes de começarmos o deslocamento para o norte, de ver Agostino, o artista, trabalhando, e devo observar que existe algo de verdadeiramente mágico nisso, na forma como um pedaço de madeira aparentemente inerte é capaz de se transformar sob suas mãos calejadas. Fez-me lembrar do Pinocchio de Collodi que li, creio, na biblioteca da escola.

Em honra a essa lembrança, estou enviando uma das pequenas marionetes que o vi fazer. Com alguma sorte, ele talvez encontre um grilo falante em sua casa e desperte a atenção da Fada Azul.

E, para completar sua coleção, também estou despachando um navio corsário para que você possa dar vazão a sua nova vocação de pirata dos sete mares. Estive guardando as duas coisas por meses, esperando para ter oportunidade de enviá-los. Procurarei agora um gancho e uma perna de pau para despachar junto com a próxima carta. Só espero que o vidro da garrafa não se quebre.

Eu teria provavelmente me esquecido da páscoa se não fosse por você. Seu desenho foi o melhor presente possível – melhor até que os doces (embora eu deva dizer que eles, de fato, estavam muito bons). Tinha conseguido emoldurá-lo, e ele ganhou lugar de honra junto às meias. Quando ainda estávamos no acampamento na costa, Gabriel afirmou que deveríamos começar a cobrar entrada em nossa barraca, porque ela tinha virado um misto de biblioteca, galeria de arte e circo.

Infelizmente tive de recolher minha coleção. Muitos dos livros, que eram mais pesados, deixei em definitivo para o hospital. Os desenhos e as meias, estou carregando todos em minha mochila.

Falando em livros, tenho uma novidade para você. Dispus-me afinal a ler seu volume de poemas – foi um dos que decidi trazer comigo. Nunca tinha lido nada de Tennyson, mas as histórias do rei Artur me são bastante familiares: eram favoritas no repertório de lendas de minha mãe. Voltei a ele várias vezes nas últimas semanas, e acabei por tirar de suas páginas um nome para batizar meu mais novo companheiro de tropa.

Você provavelmente já percebeu a foto que está indo junto com essa carta. Achei que ela serviria de um bom substituto para os postais. Tive sorte de já estar com sua marionete e o navio quando chegaram as ordens de avançarmos, mas tinha deixado para procurar postais de última hora, e acabei não conseguindo encontrar nenhum em virtude das circunstâncias.

Seja como for, quero lhe apresentar oficialmente a Galahad.

Não creio que tenha lhe contado isso em meio a tantas coisas que aconteceram nesse último ano. Você deve saber que um primeiro desembarque de tropas aliadas ocorreu aqui ao sul ainda no ano passado. Dividimos a base por alguns meses, antes deles serem chamados para um novo front.

Um dos pelotões usava cães treinados para encontrar minas e mandar mensagens. Eles estavam estacionados próximo ao local em que fiquei internado. A cadela mascote do hospital aparentemente se deu muito bem com eles, e Galahad foi o resultado final dessa convivência internacional.

Por algum motivo que não tem nada a ver com andar com os bolsos cheios de biscoitos para cães, Galahad passou a me seguir para cima e para baixo quando eu estava na base. Quando afinal chegou o momento de me despedir, decidiram que era uma boa idéia presentear o oficial que estava indo para o meio do combate com um filhote.

Como, a despeito de já estar com quase seis meses, ninguém ainda o tinha batizado, e como ele tem uma expressão bastante nobre quando não está tentando me chantagear com seus olhos enormes para que lhe dê mais biscoitos, decidi que ele deveria se chamar Galahad.

Voltando agora à sua carta, não aumente demais em sua mente um talento bem comum. O subúrbio em que morei com minha mãe era uma região com uma comunidade de imigrantes bem forte. Eu me oferecia como ajudante aqui e ali para ajudar com os gastos em casa, e com isso era exposto a uma variedade de dialetos.

O alemão veio do meu tempo trabalhando como auxiliar num açougue – eu lidava especialmente com notas e contas, e meu chefe insistia em escrever tudo em sua própria língua. Fora a tendência a praguejar e dar ordens também em alemão. É um idioma da mesma família que o inglês – mesmo que não sejam tão próximos quanto eu gostaria, há muitas palavras com a mesma raiz, o suficiente para servir como base de estudo.

O francês aprendi na escola – Alice gostava de francês e me convenceu a estudar com ela. Peguei algo de italiano antes de vir parar aqui em outro trabalho, dessa vez numa padaria. E uma frase ou outra de polonês e hindi com o grupo de taxistas que ficavam parados na esquina de casa.

A pronúncia é a única coisa que tenho com facilidade. Nunca me peça para escrever nada em italiano ou polonês ou hindi, porque não saberei fazê-lo, principalmente esse último. O alemão eu terminei por achar uma gramática para estudar por conta própria, se nada mais, para poder responder a altura das pragas de Herr Milman.

Tenho sentido falta do piano do hospital – o que é curioso, porque não tive assim tantas chances de tocá-lo. Mas nunca tive antes a oportunidade de utilizar um instrumento tão magnífico – a forma como o som ressoava nele é algo que levarei em minha memória para o resto da vida.

A despeito de minha experiência com o piano, não creio que vá ter uma retomada mais fácil que a sua à vida civil. Temo que minha reação a uma orquestra no momento vá ser a mesma que você teve, porque não há como escapar do ribombar da percussão. Tambores e pratos ecoam toda a sinfonia diária que temos aqui.

Para ser sincero, não consigo imaginar como serão as coisas quando voltar à vida civil. Há muitas coisas que desejo – a escola de medicina, um bendito bife Wellington, biscoitos caseiros saídos do forno com chá de verdade (e não a coisa aguada que temos aqui), silêncio – mas são coisas que parecem fragmentadas em minha mente, coisas que parecem fazer parte de outra pessoa que não eu mesmo.

Intelectualmente, compreendo que parte dessa dissonância decorre da repentina retirada de Alice de todos esses planos. Mas isso é apenas parte do todo. A verdade é que não acredito que a guerra algum dia deixe de ser parte do que sou agora.

Não sei se foi assim com você também. Mas você tem lembranças ainda mais dolorosas que as minhas. Não tinha me dado conta até sua última carta que você estava com seu irmão quando ele morreu. Vocês eram soldados juntos?

Não posso dizer que tenha tido perdas pessoais irreparáveis. Lamento todos os companheiros que perdi em todo esse tempo que estou aqui, mas não posso dizer que fui particularmente próximo de qualquer um deles, mesmo depois de minha repentina alçada à popularidade decorrente do compartilhar das lembranças que você está sempre enviando. Por isso, minha experiência pessoal é muito diferente da sua.

De fato, como você observou, campos de prisioneiros são algo comum em guerras. Por mais que possamos não concordar com suas condições, existe uma lógica em sua existência. Não é uma boa idéia matar indiscriminadamente soldados capturados. Você separa oficiais para pedir resgate ou trocar por seus próprios oficiais prisioneiros. A soldadesca é levada para os trabalhos forçados, para serem úteis de alguma forma.

A mesma coisa é feita com opositores do regime. A depender do nível de perigo que eles representem, são prontamente fuzilados, feitos prisioneiros para servir de moeda de troca ou coisa parecida.

Mas o que está acontecendo aqui é algo diferente. Não são campos de prisioneiros, simplesmente; campos para prender opositores do regime. São campos de extermínio, de assassinatos de massa, sem qualquer motivação prática.

O que vi quando estive em minha missão é algo que palavras não podem descrever. E receio que aquela seja apenas uma pequena parte dessa insanidade, que descobriremos muitos outros horrores à medida que avançamos.

Mais até do que as bombas e as trincheiras, meus pesadelos são constantemente assombrados por essas lembranças.

Não posso me explicar muito mais do que isso. Mas, mais cedo ou mais tarde, a notícia vai estourar nos jornais e você entenderá do que estou falando. E essas sombras, esses fantasmas definirão a história dos dias de hoje, muito mais que quaisquer outros atos, quaisquer outros crimes.

Sinto-me, de repente, muito cansado, meu amigo. Tenho receio que, ao final das contas, cheguemos tarde demais para fazer aquilo que nos propomos desde o início dessa guerra. Lutamos por liberdade, por democracia, por um futuro que cremos ser o melhor possível. Mas como poderemos olhar para esse futuro depois do que aconteceu aqui?

Peço desculpas por estar falando em enigmas, dando voltas e voltas sem deixar nada claro. Não era a minha intenção. Talvez seja melhor me despedir por aqui por hoje.

Espero que as coisas estejam melhores por aí com a confusão que Marianne tem deixado no caminho.

Abraços,

Alex.



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