18 de setembro de 2015

Heróis de Papel - Capítulo 19


Capítulo 19

Meados de Maio (Ano 3)

Alex, não vi como poderia juntar o assunto das duas cartas, de forma que escrevi a segunda (a mais curta) só agora, separadamente. Fique à vontade para responder só uma, ou ambas, no mesmo estilo, ou em uma só canetada.

(Carta 1)
Alex,

Seu comentário sobre as meias me encheu de alegria. Afora o fato de me assegurar que você estará sempre muito elegante (não pude evitar uma risada ao escrever essa frase), também estarão seus pés protegidos. Preciso apenas arranjar um macacão de estampa familiar para fechar o pacote.

De fato, o médico que o acolheu deve estar bastante satisfeito consigo mesmo pela iniciativa. Apenas ele para dois grupos diferentes parece realmente pouco, principalmente se estão numa área ativa...

E, nesse ponto, confesso que me bateu uma curiosidade: foi seu primeiro contato com a prática médica? Recordo-me que, a certa altura, mencionou duvidar sobre o futuro com a medicina, devido ao que está aí vivendo. Esse sentimento passou, ou permanece?

Eu sinto muito desapontá-lo, Alex, mas não posso ser culpado pela sua repentina sociabilização, vez que a decisão de dividir com seus companheiros foi totalmente sua. Tal ato já demonstra um altruísmo maior do que esse do qual me acusa. (Mas, ainda assim, agradeço o bem intencionado elogio.)

Independentemente de quem a culpa seja, não posso negar minha felicidade acerca dessas mudanças. Sei bem como é sentir-se sozinho, mesmo com tantas pessoas ao redor. Sei, também, a diferença que faz quando isso muda, quando os estranhos deixam de ser estranhos e tornam-se conhecidos, colegas, companheiros... amigos. Estou extremamente feliz por ter contribuído.

Creio ser um bom momento para dizer que, possivelmente, resolvi contribuir um pouco mais para sua popularidade. Já que as peças de teatro foram tão bem recebidas, encaminho mais algumas. Comecei a vagar pela cidade de forma aleatória, simplesmente procurando sebos. Em um deles, tive a felicidade de encontrar essa enorme coleção de peças de teatro de autores famosos. Inclui uma das que mandei anteriormente, tenho quase certeza, mas as outras são inéditas – tendo, inclusive, outras do bardo. Se isso resultar em mais performances, permita-me saber, por favor.

Mando também mais dois volumes daquela enciclopédia. Não sei se seu superior acha ruim tantos livros para carregar nas mudanças. Avise-me se isso lhe causar algum problema.

É verdade. Creio que não conheço nem uma construção antiga que não tenha sua própria lenda assustadora. (Pergunto-me quem criou essa tradição...) Todas elas estão habitadas, ou abandonadas? Será que faz diferença o estado de habitação para as lendas? Não sei se eu teria coragem de morar em um castelo desses... Se houver possibilidade, e já que há tantos deles próximos um de outros, quem sabe não tenham correlação não só as construções, como suas histórias? Descubra por mim, por favor. E, também, aguardo ansiosamente as histórias de cada um, principalmente ado "meu" castelo de infinitas torres.

(Se eu fosse bem sincero, porém, admitiria que sou uma das pessoa que exige uma lenda para admitir a legitimidade de um castelo – preferencialmente uma bem mística.)

Meu caro amigo, vossa senhoria não tem noção do perigo em que se meteu com tão inocente boa-vontade. Marianne irá te inquirir até a beira da morte, e talvez mais um pouquinho. Ela abriu um sorriso enorme (e suspeito) quando repassei seu recado. Aviso logo, ela certamente tentará prendê-lo o dia todo para tanto, e usará de artimanhas baixas (deliciosas tortas) e sujas (chás e limonadas) para mantê-lo lá. Você não terá como negá-la.

Sim, Luka é o nome de meu irmão. Se não mencionei antes, foi um excelente palpite. Realmente, jogos de lógica são seu forte. Eu peço desculpas se não me expliquei melhor, mas, ainda hoje, tenho dificuldades em falar sobre ele de outra forma que não seja somente de passagem. A dor de tê-lo perdido é-me tão viva e forte quanto o dia em que realmente o perdi...

Se aprendi alguma coisa de música, contudo, foi com ele. Luka era um desses indivíduos que consegue ser bom em quase tudo: música, artes e atividades que exijam esforço físico. Não era profissional em nenhum desses, mas tinha a capacidade de o ser, se quisesse, tínhamos certeza. Infelizmente, ele não chegou a tentar. Se tivesse, talvez eu tivesse aprendido também algum instrumento... Mas, certamente, quem primeiro ensinou-me a mexer com lápis e papel foi ele. Meu primeiro desenho também foi baseado nele. Até hoje não estou particularmente feliz com o que consigo fazer (nenhum desenhista é), mas certamente admito que melhorei bastante desde então.

Segue um exemplo: fiz um rabisco enquanto viajava de trem para o interior. No primeiro, tentei capturar o movimento da locomotiva usando a paisagem para demonstrá-lo. No segundo, a estação com o trem estacionado.

O terceiro, já que gostou do chá subaquático, tentei imaginar a hora do chá da Força Aérea, lutando contra as forças aéreas naturais. Foi bastante divertido, vez que, obviamente, não tenho a possibilidade de fazer um estudo desse tipo de movimento, precisei criar todo e qualquer detalhe. Isso vai desde as expressões, até o movimento das roupas. Aquela pequena ave, que se junta à bagunça, é meu elemento preferido. Imaginei o que "pensaria" um pássaro que, porventura, deparasse com essa situação.

Por fim, para receber o verão, incluí, dessa vez, doces com sabores cítricos, de menta e de hortelã. Não creio que estraguem, mas, se isso ocorrer, avise-me, por favor, para evitar uma recorrência.

Stephenson anda num mau humor tão imenso, que mal saiu de seu apartamento desde minha última carta. Não fazemos ideia se ele fez a descoberta do século ou não... Uma pena...

Abraços,

Kal

PS. Esse é o apelido pelo qual meus amigos me conhecem. Gostaria de oficialmente dividi-lo com você.

(Carta 2)
Alex,

Eu realmente não sei por onde começar, nem sei como dizer. Descobri o que houve com Alice, e onde ela está. Isso mesmo, Alice está viva. Acho que é um bom ponto por onde começar. Estou aqui quebrando a cabeça há dias tentando uma forma de explicar o que houve, mas nada do que tenha escrito ou pensado parece correto. Então resolvi frisar no fato que acho que é mais importante: Alice está viva. Por favor, não esqueça desse detalhe enquanto lê o que vem a seguir.

Depois da evacuação, ela e a mãe tomaram refúgio com um amigo da família, um senhor de idade, mas bastante lúcido e simpático. O Sr. Cecil as recebeu em sua casa, localizada num vale muito bonito e bastante pacífico, que dificilmente seria alvo de algum ataque inimigo. E foi lá que elas receberam um comunicado oficial das nossas Forças Armadas que anunciava sua morte.

Alice chegou a me mostrar essa carta, porque, inicialmente, não acreditou em mim. Foi entre lágrimas que ela o fez, e creio que só não tenha mandado me expulsar já da porta da casa, porque, contra tudo, queria acreditar em mim. Ainda bem que levei comigo as cartas endereçadas a ela, e outra mais recente. Sua amiga reconheceu sua letra no mesmo instante, antes mesmo de piscar. Foi a primeira vez que não soube como ajudar uma dama em lágrimas.

Foi então que Alice me explicou o que houvera com ela e a mãe. A Sra. Carol, infelizmente, já não se encontra entre nós. Assim, Alice viu-se sozinha, e não podendo mais depender da bondade do Sr. Cecil – visto que todos sabemos a repercussão de moças solteiras morando com senhores igualmente solteiros. Mas ele a pediu em casamento, e ela aceitou. Pelo que me contou, não havia alternativas.

Eu sinto muito. Por você, e por ela. Infelizmente, é tudo o que posso oferecer no momento: minhas condolências e uma carta amiga.

Kal

Fins de agosto (Ano 3)

(folha 1)
Alex,

Não sei se foi um problema com o serviço de entregas, se a minha carta perdeu-se no meio do caminho (ou talvez a sua resposta). Abril foi a última vez que tive notícias suas, e não consigo determinar se foi o correio, a notícia de minha última correspondência ou a guerra lhe tomando o tempo (rezo para que não lhe tenha tomado a vida). De uma forma ou outra, vou presumir que foi a mais simples das hipóteses: que minha missiva não chegou às suas mãos.

Não há problema: envio novamente.

Em minha comunicação anterior, dava-lhe a notícia de que encontrei Alice, e expliquei o que houve com ela. A essas alturas, eu creio que ela já lhe deve ter enviado alguma explicação em punho próprio também, de forma que serei sucinto (caso não tenha).

Alice está viva –frisarei esse detalhe – e morando numa vila no interior, onde o risco de bombardeios é quase zero, vez que não há nada de interesse bélico por lá. Ela e mãe foram acolhidas pelo Sr. Cecil, amigo do pai dela. Algum tempo depois, receberam uma comunicação de sua morte (que ela me mostrou; é legítima). Quando a Sra. Carol faleceu posteriormente, Alice viu-se sozinha e acreditava que você estava morto. Assim, aceitou o pedido de casamento do Sr. Cecil, posto que, como moça solteira e sem acompanhante, já não podia morar de favor na casa do mesmo. Ela me assegura que sempre foi bem tratada lá.

Espero, honestamente, que você esteja bem, e que, de alguma forma, eu possa ser de algum conforto. Para minha completa angústia, é tudo o que posso oferecer nesse momento...

A partir da folha seguinte, respondo a sua carta de março, a última que recebi. Não sei se quererá retomar a troca normal de cartas, mas achei por bem dar-lhe a opção. Entenderei se não quiser fazê-lo, ou se quiser mais tempo para si.

David

(folha 2)
Alex,

Fico feliz que meus presentes estejam lhe sendo úteis de tantas maneiras, a começar com as meias (ri bastante com a frase "irracional afeição às meias coloridas"), passando pelos livros e, por fim, aos doces e afins. Preciso destacar, contudo, que dividi-los com seu pelotão foi escolha sua, e eu não posso, infelizmente, ser culpado pela sua repentina sociabilização... O que não impede de me sentir muito feliz por você. Acredito que não se sinta mais tão só.

Apenas um médico para tantos soldados? Realmente, ele teve uma ideia muito bom ao acolhê-lo como aprendiz; ganharam os dois (três?) lados... Ou melhor, pelo menos eu acho que ainda pense assim. Lembro de você ter comentado ter dúvidas sobre querer prosseguir nessa carreira (de médico) depois do que viu por aí. Acha que prosseguirá, ou mudou de ideia, afinal?

De fato, não me recordo de nenhum castelo antigo que não tenha alguma lenda atrelada. Não que eu possa reclamar, vez que sempre fui fascinado por esse tipo de história. Elas me fazem questionar o que está por trás de tais lendas, que acontecimentos as inspiraram, por que o desfecho foi aquele, e o que, fatalmente, levou ao abandono da construção. Aliás, não perguntei (perdoe-me se deveria ser óbvio), mas os castelos estão inabitados, correto?

Por favor, não se esqueça de me contar as lendas, de preferência indicando a qual lugar pertence cada uma. Em especial, a do "meu castelo de infinitas torres". Creio ser um lugar bonito demais para abrigar alguma tragédia (embora, por força de costume, tenho a impressão de será justamente esse tipo de história que estará ligada a ele).

Sinto muito, mas sou uma das pessoas que fatalmente acha que os castelos precisam de uma lenda para acompanhá-los. Faz tudo ficar mais divertido, em minha opinião. (E, de certa forma, também ajuda a preservá-los, vez que muitos acabam por temer uma aproximação...)

Vou mudar um pouco o assunto, mas, antes que me esqueça, preciso dar-lhe esse aviso. Você não tem ideia da situação em que se meteu ao "submeter-se ao escrutínio" de Marianne. Ela é uma boa pessoa, mas é possuidora de um incisivo espírito inquisidor. E, tenho certeza, usará de suas habilidades culinárias para prendê-lo até que ela se satisfaça (o que levará, provavelmente, o dia inteiro).

Mas estou ansioso pela limonada, confesso.

Você, de fato, deduziu corretamente (não me admira que goste de jogos de lógica). Luka era meu irmão. Desculpe se não expliquei, achei que já o tivesse feito, vez que, estou certo, já o mencionei algumas vezes. Entretanto, ao mesmo tempo, não estou tão surpreso que isso tenha acontecido; mesmo o tendo perdido há anos, a dor não parece ter diminuído, de forma que, mesmo mencioná-lo traz-me de volta a lembrança de tê-lo perdido. Anna e Luka eram-me as pessoas mais caras nessa vida.

Foi ele quem me ensinou o pouco que sei de música (pelo menos ler uma partitura eu consigo), e também foi ele quem primeiro me ensinou a desenhar. Na verdade, Luka era bom em muita coisa...

Na carta anterior, mandei uma cópia das peças do bardo que achei em um sebo. Não sei se recebeu (ou se receberá) o pacote, mas, já que estão montando uma companhia de teatro, não creio que doa ter mais de uma cópia de algumas das peças dele. Não é o mesmo livro, vez que não achei um tão bom dessa vez, mas creio que contenha um bom número das obras de palco. Incluí, dessa vez, mais um romance policial e outro da “tia Jane” (acho que já foram três obras dela até agora, é isso?).

Insiro aqui uma entrelinha curiosa: apesar de nos correspondermos há três anos, nem você sabe meu aniversário, nem eu sei o seu. Corrigirei metade do problema agora: o meu cai no terceiro dia do terceiro mês. E, já que estamos no assunto, mando também algo que me veio à cabeça quando pensei nisso: uma ilustração de um aniversário.

Mando também um rabisco que fiz do pôr-do-sol no porto. Foi bastante difícil traduzir para monocromático as cores sagradas desse acontecimento diário. Aliás, não tive muito sucesso, mas, ao mesmo tempo, não saiu tão ruim quanto imaginei que ficaria (e, por isso, mando). Admitidamente, essa é a terceira tentativa...

No fim da lista, como de costume, os doces e nozes. Tentei incluir a maior variedade possível deste último. Acho que alguns tipos, inclusive, estão mergulhados em açúcar. Particularmente, eu não gosto dessa receita, mas não sei o que você(s) achará(ão).

Por fim, estamos todos preocupados com Stephenson. Ele voltou a aparecer, mas continua calado. Começo a achar que ele achou os gnomos, mas o preço foi seu silêncio total... Está explicado porque ninguém nunca viu um.

Abraços,

Kal

P.S. Mencionei isso na carta de destino indefinido, mas Kal é o apelido que meus amigos mais próximos usavam. Ficaria muito feliz se aceitar fazer parte desse grupo.

Fins de Outubro (Ano 3)

Prezado Alex,

Não sei mais como interpretar seu silêncio. Rezo para que você esteja em boas condições de saúde, porque já não creio que o correio seja responsável pela falta de comunicação.

Já esperava que o choque sobre Alice lhe atrasaria algumas semanas em sua resposta, mas não esperava que parasse completamente. Não creio que seja saudável para você acumular isso... A menos que tenha achado em seus companheiros de pelotão alguém com que conversar, eu insistiria que me responda.

Na verdade, após três anos de trocas de cartas, eu peço encarecidamente que o faça. Nem que seja para dizer que não pretende mais continuar.

Mas, por favor, dê-me algum sinal de vida... e que essa comunicação, até então constante, será encerrada por sua vontade, e não por um fator alheio à mesma. Tenho acompanhado as notícias de nossas tropas pelo jornal, e espero encarecidamente que não se encaixe em nenhuma das perdas anunciadas.

Atenciosamente,

David

P.S.: Mando frutas secas, como de costume. E um rabisco do parque do outro lado da cidade, por onde andei recentemente em busca de mais sebos.


____________________________________

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog