26 de junho de 2015
Heróis de Papel - Capítulo 07
Capítulo 07
Meados de Outubro (Ano 1)
Caro David,
Em primeiro lugar... obrigado pelo pacote. Foi uma mais que agradável surpresa quando, em vez de um simples envelope (pelo qual eu já ficaria muito contente), recebi uma caixa inteira, recheada de pequenos confortos com os quais já tinha me convencido a desacostumar. Sinto ainda informar que sua experiência anterior mantém-se correta sobre os travesseiros.
Suas ilustrações foram um particular deleite. Você é talentoso, meu amigo. E, sim, você tinha razão, os desenhos foram uma melhor lembrança do que postais. Eles são algo mais tangível e mais pessoal, e os estimo por isso. Sinto não poder corresponder – receio não ter aptidão para tanto. Se tenho alguma inclinação pela arte, é na música, e, mesmo assim, estou bem enferrujado. Instrumentos musicais não são uma prioridade em meio a equipamento de combate.
Confesso que, dos desenhos, meu favorito foi o do cachorro. Talvez mais por seu comentário que pela imagem em si – sua idéia de querer adotar todos os cães e gatos vira-latas da cidade provocou-me uma crise de risos, algo que bem pode ser aproveitado por aqui.
Seja como for, em retribuição por me permitir um pequeno vislumbre de casa, mando outro postal. Estamos agora em um novo acampamento, mais perto da costa, e consegui uma imagem da vila e da enseada há alguns quilômetros de onde estamos estacionados. Fiz uma visita à praia quando tive minha última licença e passei quase o dia inteiro olhando para as ondas.
Minha mãe adorava o mar. Meus pais se conheceram em uma visita a um balneário e, por conta disso, lugares como esse estavam para ela eternamente associados à imagem de um verão perfeito e um primeiro amor – isso nas palavras dela.
De fato, minha mãe foi uma mulher admirável e meu desejo de me tornar médico tem muito a ver com ela. Mesmo antes de sua doença, eu já sentia a inclinação, mas, posteriormente, ao ver seu sofrimento, tornei-me muito mais determinado a seguir esse caminho.
Não foi apenas essa determinação que me isolou dos meus pares, contudo. Respondendo às suas exortações anteriores e suas desculpas da última carta, devo dizer que sempre fui uma pessoa de natureza solitária. As perdas que foram se somando pelo caminho não ajudaram muito a encorajar a criação de muitos vínculos.
Não que isso tenha me impedido de encontrar camaradagem entre os soldados com quem divido essa guerra. Confio em todos eles para guardar minhas costas. Mas não confio que eles sobrevivam – e, se o luto por um desconhecido já é algo doloroso, por alguém que eu de fato nutrisse afeição seria, no momento, intolerável.
É um mecanismo de defesa do qual não me sinto particularmente orgulhoso, mas algo que tive de aprender muito cedo e que acho difícil de me separar. Tenho uma consciência aguda demais da mortalidade para voluntariamente criar laços com criaturas tão vulneráveis quanto nós, soldados.
Nesse contexto, a continuidade dessas cartas talvez lhe pareça estranho. Se minha preocupação fosse simplesmente Alice – um dos poucos vínculos que mantenho no mundo, anterior à necessidade de tal afastamento – eu poderia apenas esperar que você me comunicasse quando tivesse novidades sobre o paradeiro dela, e não manter uma correspondência à parte.
Mas há algo mais aqui em jogo. Você me estendeu a mão num momento em que eu me sentia desesperadamente vulnerável. Fê-lo sem julgamentos, com uma sinceridade e uma gentileza a que eu não estava acostumado. Eu me agarrei à sua correspondência como a um salva-vidas – uma linha para preservar minha sanidade.
O fato de você não estar envolvido nessa guerra, distante do campo de batalha, e capaz de me lembrar que existe um mundo para além desse caos, me permite ter esperança de que não perderei mais esse laço.
Talvez essa seja uma explicação muito confusa, e peço desculpas por ela. É difícil explicar o que é tirar vidas pela manhã e tentar salvá-las à noite. Se fui capaz de encontrar algum equilíbrio – e não tenho vergonha de dizer que, se o fiz, foi em parte graças à sua ajuda – não significa que sinta menos dificuldade em tentar conciliar o fato de ter me tornado um assassino com o desejo de salvar vidas.
Não posso dizer que sou contra a guerra – fomos atacados primeiro e, se estamos aqui, é para nos defender, defender as pessoas que amamos e os nossos princípios. Se não tivéssemos reagido, teríamos perdido nossa liberdade e nossa dignidade. Mas abomino as consequências trazidas por ela, todo o rastro de destruição que ela deixa.
Não o considero um covarde por ter, de alguma forma, escapado à convocação – e creio que seu irmão também não o consideraria assim. Tive a impressão de que essa é uma preocupação sua; perdoe-me se estiver errado.
O fato é que eu não teria me voluntariado tão prontamente, antes de receber qualquer chamada, se não fosse pelos benefícios que isso me traria, pela possibilidade de conseguir o crédito necessário para a faculdade. Um motivo bastante mercenário, mas, se eu não conseguiria escapar ao alistamento de uma forma ou de outra, que ao menos ele sirva aos meus planos.
Não sei se teria agido tão prontamente se tivesse antes a experiência que tenho agora. Se soubesse o que é uma batalha. Parece-me muito mais corajoso o seu arriscar a vida como bombeiro que o meu arriscar a alma numa guerra.
Alex.
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Cada vez mais apaixonada pela história! Quero só ver o que vai acontecer! :)
ResponderExcluirFicamos ridiculamente felizes em saber, é claro. E tem muita coisa para acontecer ainda ;) Prepare-se para grandes emoções.
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