18 de março de 2015

Quem Conta um Conto (Março): O Conto da Lu || Por Estações


Ela já não sentia mais o frio. Na realidade, ela já não percebia muitas de suas extremidades e era com uma sensação de distância que via seus pés descalços dando um passo após o outro, afundando na neve e deixando à sua passagem rastros de sangue escurecido.

Longe, podia ainda ouvir os uivos dos cães. Se fizesse esforço, talvez pudesse ainda intuir no vento as vozes que tinham vindo com os machados de aço frio e mãos de dedos cruéis. Mas aquele era um esforço que ela nem desejava nem era mais capaz de fazer.

Perdeu o equilíbrio ao chegar à pequena encosta e rolou pela neve cortante sem notar as novas feridas abertas por pedras e cristais de gelo. De repente, contudo, viu-se deslizando de costas sobre uma superfície quase lisa e tão gelada que voltou a sentir frio por alguns instantes.

Finalmente, seu corpo se quedou inerte no meio do leito congelado do rio. Respirou fundo. Podia ouvir abaixo de si a corrente que continuava forte sob a capa da superfície.

Seus olhos flutuaram, cansados, antes que ela os fixasse no céu cor de chumbo. Ao seu redor o mundo inteiro parecia cinzento, pálido e ela mesma era apenas mais um ponto sem cor naquele silêncio morto.

Dobrando o joelho e escorregando o pé no gelo, tentou encontrar em si forças para se levantar. Não sabia mais porque precisava se erguer e continuar, mas isso não importava, contanto que conseguisse.

Então veio o som de algo se rompendo. Fraturas, como ossos se partindo (como os estalos dos dedos de sua mão quando a empurraram contra o chão, como os galhos partidos de sua árvore antes de cair).

crec, crec, crec

Ela não teve tempo de esboçar qualquer reação. Sob seu corpo a superfície branca se partiu e a engoliu, arrastando-as com suas correntes para um túmulo de gelo.

Era inverno.

*~*~*~*
Sob seus cascos dourados, a terra pouco a pouco despertava. Sua galhada já pesava com as flores que brotavam em sua coroa. Ao seu redor, o coro de sua corte começava a se fazer ouvir.

O sol cortou através das primeiras folhagens, transformando os pingentes de gelo ainda presos nas árvores em centenas de prismas, cores se derramando sobre os brotos que começavam a despontar.

O barulho da corrente distraiu-o momentaneamente de todas essas impressões e ele se encaminhou para as margens do rio, curvando o pescoço longo para sorver alguns goles de água fria, e então encarar seu reflexo por entre pequenos redemoinhos causados pelo degelo.

Um soluço assustado do outro lado da margem fez com que seus músculos tencionassem e ele ergueu a cabeça majestosa para descobrir quem se atrevera a atravessar seu território. E foi então a vez dele de resfolegar.

Era uma ninfa. Uma ninfa pálida, com cabelos da cor da neve suja que ainda se desfazia no chão da floresta, lábios quase azuis e olhos de um cinza tristonho. Ao redor dela, a terra estava nua, escura com a água que ainda pingava de seu corpo miúdo.

Ele podia sentir o cheiro adocicado de terra e decomposição que ela exalava. Uma ninfa que fora arrancada de suas raízes então. Era surpreendente que ela tivesse sobrevivido a tal perda. E era um mistério maior ainda como conseguira chegar à sua floresta sem se desfazer no vento.

Não que isso realmente importasse. Ela estava em seus domínios agora, sob sua proteção. Ele a salvaria, se pudesse.

Com passos lentos, ele atravessou o rio, afastando-se um pouco do ponto de onde a ninfa o observava, toda sua postura tensa e claramente pronta para fugir. Sem desviar sua atenção dela, ele se inclinou, devagar, devagar, devagar até se vir deitado sobre a relva que já começava a surgir ao seu redor.

A primeira hora foi passada quase sem piscar, encarando um ao outro num duelo de vontades. À segunda hora, fraca e de coração partido, ela apenas se submeteu, abaixando a cabeça. Mas ainda não era isso que ele queria e assim, ele continuou imóvel, esperando.

O sol estava no ponto mais alto do céu quando a ninfa voltou a erguer a cabeça. Ainda sentada, ela se arrastou alguns centímetros de cada vez erguendo uma mão trêmula em sua direção.

Ele deixou que ela o tocasse, os dedos gelados encostando em seu focinho com uma infinita delicadeza. Podia sentir em suas veias o toque de morte que ela trazia em si, apartada de sua árvore. Se fosse mais fraco, teria sucumbido, mas ele era o Senhor da Floresta e ao seu redor, a vida se renovava a cada momento.

Sentiu-a mais uma vez tremer enquanto ela curvava seu corpo num quase abraço em torno dele. Finalmente, fechou os olhos e, com a mesma delicadeza com que ela o tocara, ele aninhou sua cabeça junto ao pescoço da triste criatura, soprando seu hálito junto ao coração dela.

A ninfa suspirou, enrodilhando-se ao redor dele ainda mais apertado, seus cabelos desgrenhados revelando matizes escuras, que pareciam ir ganhando mais cor a cada expiração. Ele sentiu o momento em que ela afundou os pés na terra, deitando raízes, ao mesmo tempo em que o corpo pálido começava a se tornar áspero e enrijecer.

Ao entardecer, o Senhor da Floresta deixou sua forma de gamo, tornando-se agora uma grande águia, que se desvencilhou facilmente da pequena árvore que surgira no lugar da ninfa.

Não havia ainda folhas nem flores, apenas a madeira clara de um tronco muito reto, e ainda machucado. Mas havia tempo para crescer, para cuidar das feridas abertas deixadas de sua encarnação anterior.

A primavera chegara.

*~*~*~*
A brisa quente fazia balançar suas folhas verdes, espalhando o perfume de seus frutos maduros pelo bosque. Ela espreguiçou seus galhos, sorrindo com a sensação do sol sobre seu tronco em contraste com o orvalho que ainda escorria nos pontos mais espessos de sua folhagem.

Fazia pouco tempo que voltara a despertar sob a sombra de sua jovem árvore, suas raízes fortes uma vez mais em solo rico, seiva doce correndo em suas veias. Ainda havia cicatrizes e ela jamais esqueceria sua primeira semente, sua antiga floresta. Ela fora uma das ninfas mais antigas, uma das primeiras de sua florada – um impávido e orgulhoso freixo.

Não era mais tão frondosa e forte quanto antes, seu tronco coberto de musgo e líquens num vestido pontilhado de pequenas flores parasitas. Sua madeira era agora mais lisa e maleável – uma bétula de tronco nu e pálido, um pouco mais gentil que sua encarnação anterior. Mas estava satisfeita com sua árvore e com os cachos que começavam a aparecer nas pontas de seus galhos. Ela gostaria de ver as irmãs que nasceriam de suas sementes.

Aqueles dias se passaram distraídos, na contemplação dos pássaros que vinham aninhar-se sob sua sombra; da corrente do rio que ela podia sentir sob a terra, próxima às suas raízes; do caminho do sol nos dias mais longos da estação.

Ela quase não o reconheceu quando ele veio até ela. Da primeira vez, ele fora o gamo rei, e a águia real: grave e majestoso enquanto despertava a terra para o início da primavera. Desta feita, contudo, ele surgiu como a astuciosa raposa, os olhos dourados brilhando com humor.

Ele se retorceu entre suas raízes e enrodilhou-se em seu tronco, descansando sob uma abertura em sua copa, por onde o sol podia se infiltrar sem obstáculos.

Gostaria de ter agradecido, mas ela não sabia exatamente o que falar e nem poderia ainda se desvencilhar de sua árvore - ainda demoraria um pouco para que pudesse fazê-lo.

De toda forma, ele parecia satisfeito em simplesmente se quedar junto à bétula dia após dia, e ali atender sua corte. Ela passou a esperá-lo, a oferecer livremente sua sombra e seus frutos.

Ele plantou flores na relva que a cercava. Por vezes, ele se quedava junto a ela até o alvorecer e lhe contava histórias ou cantava antigas baladas.

Era confortável. E tranquilo. E, aos poucos, suas cicatrizes foram se fechando e suas forças retornando.

E assim se passou o verão.

*~*~*~*
Tornou-se hábito reunir sua corte sob o tronco da bétula. Era confortável descansar sob sua sombra e sentir a atenção gentil da ninfa, compartilhar histórias e companhia – embora da parte dela, que ainda não tinha forças para se separar de suas raízes, não houvesse outra contribuição além do sussurro do vento por entre suas folhas.

Pouco a pouco, os dias passaram a se tornar mais curtos. Folhas vermelhas e douradas formavam curiosas tapeçarias no chão, enquanto os animais da floresta preparavam-se para os dias vindouros de frio e gelo.

Foi como um texugo que ele começou a cavar um túnel sob uma das curvas da jovem bétula. No coração da terra, sob os braços da ninfa, ele passaria a mais longa noite do ano, e esperaria até o sussurro das sementes preparando-se para germinar o despertassem.

Quando terminou sua toca, ele se enrodilhou junto a uma das raízes que lhe servia de teto.

As cores do outono já definhavam então.

*~*~*~*
O inverno os encontrou adormecidos, envolvidos numa manta de silêncio e espera.

*~*~*~*
O primeiro broto, o primeiro botão de flor. Uma única folha verde estendida em direção ao sol que pouco a pouco, paciente, ia derretendo a neve que se acumulara nos meses anteriores.

Ela despertou com uma carícia e o murmúrio de seu nome. Sem hesitar, aceitou a mão que lhe era oferecida, soltando-se de seu confortável casulo no coração da jovem bétula.

Os dois sorriram um para o outro.

Uma vez mais, era primavera.


A Coruja


____________________________________

 

Um comentário:

  1. Quando uma coisa é triste e feliz ao mesmo tempo, essa coisa é bela. E, no caso, é a Vida...

    ResponderExcluir

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog