12 de março de 2014
Quem Conta um Conto (Março): O Conto da Ísis || Noite dos Corvos
Fora rápido, indolor e, precisava admitir, bem profissional.
Ela o vira desaparecer diante de seus olhos. Em um momento, ele estava lá, inteiro, vivo, talvez pensando... No segundo seguinte, nada disso era verdade. Não era o primeiro, nem o segundo, nem mesmo o décimo. Porém, definitivamente desejava que fosse o último.
Houvera desaparecimentos assim antes, ela entendera, e nenhum deles havia deixado escapar um pequeno gemido sequer.
Agora, sabia o porquê.
Há mais ou menos um mês atrás, o sol praticamente desaparecera por trás de inúmeras nuvens em formato estranho. Desde então, o mundo que ela conhecia havia se transformado. Não havia dúvidas de que o sol permanecia em seu lugar de sempre, e com o mesmo brilho de sempre.
Aquelas nuvens, todavia, qualquer um podia notar, estavam no lugar errado, na hora errada. Ou, melhor ainda, as próprias nuvens eram erradas. Havia qualquer coisa que se traduzia como totalmente errada naquelas formas estranhas.
E ela sabia disso, testemunhara, na noite em que haviam encoberto o céu, apagando a lua e as estrelas. Vira não somente o estanho fenômeno em si, como também a sombra de um movimento que chamará sua atenção.
Um jovem garoto, que parecera aparecer do nada, caminhando em direção a uma poça que ela jurava não estar ali antes. Contudo, ele simplesmente caminhara até o centro daquele pequeno corpo d'água, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Ela não entendera, até então, o que estava acontecendo, ou por quê. De repente, nada fizera sentido. Sentira-se como se alguém a tivesse virado de cabeça para baixo, ou como se a tivessem segurado com a cabeça para cima, enquanto o mundo inteiro invertia-se 180º... Na vertical.
Aquele momento de loucura agravara-se quando ouvira os chamados dos corvos. Ao olhar para cima, vira inúmeros deles suficientes para quase formarem uma segunda nuvem negra, direcionada a um único ponto: o garoto.
O menino, contudo, permanecia imóvel, impávido.
Do outro lado, ela estava tremendo toda, das pontas dos pés até às pálpebras, sem qualquer controle sobre seu corpo. O ar subitamente estéril também não estava ajudando. Seus espasmos apenas pioraram quando vira os inúmeros pontos vermelhos dentro da nuvem negra, aproximando-se rapidamente. Precisara enfiar uma mão quase inteira dentro da própria boca para calar o grito que desesperadamente queria soltar.
O garoto, todavia, apenas levantara um braço, como se os chamasse para si. Claramente ele não estava assustado.
Fora assim que ela pensara, pelo menos.
Mas, segundos antes dos corvos o alcançarem, ele olhara na direção dela. Se ele a vira ou não, a moça não tinha certeza, mas a expressão em seus olhos jamais a deixaria em paz, mesmo que ela vivesse mil anos.
Um momento, ele estivera lá, vivo, inteiro, encarado-a. Mas seus olhos repentinamente tornaram-se rubros, e brilharam. No instante seguinte, os corvos haviam-no coberto.
Quando eles se afastaram segundos depois, ele já não estava mais lá.
Seguiram-se minutos de silêncio, pois não havia mais ninguém naquele campo, os corvos e seu gritos voaram para longe, e ela estava petrificada demais para fazer qualquer coisa. Sentia que precisava movimentar-se logo, para correr, ou mesmo para respirar.
Mesmo ainda tremendo por inteira, ela engatinhou lentamente. Contudo, para sua surpresa, descobriu-se indo em direção à poça, apesar de todos os seus institutos naquele momento empurrarem-na na direção contrária.
Todavia, algo a chamava, como se houvesse um ímã emocional puxando-a. Seria capaz de jurar que sentia isso, fisicamente, tamanha a força.
Como se não fosse ela mesma, viu-se caminhar naquele sentido, como se observasse outra pessoa fazê-lo.
Mas era o seu corpo que se aproximava à poça. Quando chegou um pouco mais perto, porém, percebeu que havia algo de estranho naquele corpo d'água: em vez de terra, pedrinhas e vegetação, eram outras coisas que ocupavam o fundo.
Na medida em que mais e mais se aproximava, o ar também parecia modificar-se. Previamente antes daquele fenômeno estranho acontecer, aquele lugar exalara o cheiro de grama. Depois, quando vira o menino, todo e qualquer odor desaparecera.
Mas agora, chegando perto da poça, um cheiro um pouco desagradável subia. Não era impossível permanecer ali, mas também era difícil de ignorar.
Chegando à beirada da poça, viu-se olhando bem mais fundo do que seria possível. Mas os formatos estranhos que vira antes se tornaram distinguíveis, e ela não pôde conter uma súbita inspirada de ar quando seu enodoado cérebro finalmente os identificou.
Ossos.
Vários e vários ossos humanos. Milhares.
Havia claramente naquela pequena poça muito mais do que deveria ser fisicamente possível, distorcendo completamente a noção de espaço. Outra coisa também era inquestionável: dezenas de pessoas tiveram seus ossos ali depositados.
Alguns ainda possuíam um pouco de carne, mas a maioria estava mais limpa do que se tivessem sido polidos e encerados.
As caveiras, porém, eram outra conversa. Ou melhor, não havia caveiras à mostra ali, apenas cabeças, quase todas intactas. Dentre as mais velhas - ou as que ela imaginava que eram as mais velhas, vez que estavam mais longe - algumas estavam sem um olho, ou sem os dois, ou mesmo com um deles pendurado pelo que imaginava ser o nervo óptico.
Os olhos dela, entretanto, absorveram tudo isso em um segundo, pois estavam fixos no rosto que vira minutos atrás.
Mas, agora, sem o resto do corpo.
A expressão do garoto era similar a dos outros: o momento em que foram comidos vivos ainda presente em todas as faces. Eram expressões de medo, de dor, de terror. Nunca, nunca que ela havia visto semelhantes em qualquer ser humano vivo.
A moça sabia que devia correr, que precisava avisar alguém, que devia fazer alguma coisa... Nem que fosse fugir para salvar sua própria vida.
Mas, no instante seguinte, todas as cabeças viraram para ela, mesmo sem seus respectivos pescoços. A garota ia tombar para trás com o susto, mas suas costas foram de encontro a outro corpo sólido, e, antes que ela pudesse gritar, sentira como se algo fosse colocado em sua boca, e nenhum som saiu.
Foi então que um calafrio particularmente forte percorreu sua espinha, e ela notou que o um vento frio começara a soprar em algum momento. Ela automaticamente abraçou-se numa tentativa de se aquecer.
Foi, porém, o sussurro em sua orelha que a congelou de vez.
"Lindos, não?"
Mas ela não teve tempo de se virar.
A Elefanta
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