14 de outubro de 2013
Quem Conta um Conto (Outubro): O Conto da Lulu || “Não com uma explosão, mas com um suspiro...”
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.
- T. S. Eliot -
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.
- T. S. Eliot -
Dia 913º da Expedição Bastet
Este mundo também está morrendo.
Percorremos todos os dias as rotas pré-estabelecidas da expedição, atravessando cidades desertas cujos campos de contenção ainda zumbem com energia, por desertos banhados pela luz amarelo-esmaecida de um sol doente, evitando as florestas de esporos que se adaptaram à constante radiação. Algumas raras vezes encontramos corpos ressequidos, preservados de alguma forma no ambiente estéril dos subúrbios desabitados.
Não sei por que insisto nessa rotina. Talvez porque ela seja o único resquício de sanidade no meio da destruição causada pela lenta morte de nosso sol ou pela guerra civil que terminou de exterminar o que restava da liga. Talvez porque uma vez que eu a cesse, nada mais me restará de propósito.
Dia 1095º da Expedição Bastet
Mais um planeta deserto.
Creio que sejamos os últimos, eu e Tasha, pulando de mundo em mundo, coletando amostras que já não servem mais de nada.
Às vezes me pergunto se tudo isso é familiar para Tasha. Suas memórias, codificadas no DNA usado para criá-la, também são de um mundo que encontrou seu fim muito antes de evoluirmos para o que somos hoje. Ou para o que sou hoje. Singular, plural, isso ainda faz algum sentido?
Não que ela realmente se lembre de quando seu próprio sol explodiu numa supernova... Ou que isso faça diferença para ela. Memórias sim, os cientistas decidiram trazer, tentando descobrir algo que pudesse ajudar em nossa situação. Emoções, reações, escolhas, foram deixadas de lado num corpo de cabos e circuitos, sob uma pele sintética.
Ou talvez... Talvez tenham deixado o suficiente de quem quer que Tasha tenha sido um dia. Às vezes, ela parece reagir àquilo que encontramos para além de análises frias. Ou talvez eu esteja vendo o reflexo dos meus próprios desejos em vez de uma janela. Mas gosto dessa ilusão – ela me permite acreditar que não estou completamente só.
Dia 1148º da Expedição Bastet
Encontramos hoje o cadáver de um unicórnio. Um unicórnio, um maldito unicórnio, provavelmente fugido de algum dos laboratórios que ainda zumbem no subsolo, máquinas ligadas, luzes pálidas em salas há muito abandonadas.
Não seria nada de diferente do que já vimos até aqui – tantos corpos, tanto horror – se não fosse pelo fato de que o sangue da criatura ainda está fresco.
Mais que isso: alguém deixou uma das medalhas de nossa organização na carcaça. Um aviso? Uma ameaça?
Não sei bem o que pensar.
As três luas eram um símbolo de tolerância e pensamento independente. Não nos subordinávamos à liga. Fomos os primeiros a percebermos os sinais, os primeiros a alertar sobre as cada vez mais freqüentes explosões solares, os primeiros a procurar alternativas.
Fomos contra a criação dos campos de contenção. Na melhor das hipóteses, eles não passavam de meros paliativos, na pior, uma ferramenta de controle e ameaça. Talvez, se os tivessem feito de forma individual, como os que eu e Tasha utilizamos... Em vez disso, preferiram usá-los como uma redoma para prender todos dentro das cidades.
Não demorou muito após a construção da primeira torre para que a guerra começasse.
Nesse meio tempo, já tínhamos deixado nossa base e começado a expedição. Não apenas eu e Tasha, mas outras tantas duplas de trabalho, divididos entre a expectativa de encontrar um raio seguro de onde não seríamos mais afetados pelo sol, um trampolim para algum outro sistema solar ou mesmo algum tipo de tecnologia ou substância que pudesse servir para nos salvar a todos.
Um dia, a comunicação cessou por completo e descobrimos que nossa base tinha sido destruída por insurgentes. A princípio, ainda conseguíamos contato com outras das equipes, mas pouco a pouco elas deixaram de responder.
Nosso símbolo foi usurpado pelos insurgentes contra a liga. Seu sentido foi distorcido. Conspurcado.
E agora eu o encontro aqui.
Pode ter sido um de meus antigos companheiros. Um sacrifício por compaixão de uma criatura provavelmente insana pelo confinamento e pela dor causada pela exposição desprotegida à atmosfera.
Pode ser um grupo de rebeldes sobreviventes. Intolerantes e fanáticos.
Não tenho certeza a essas alturas se desejo descobrir.
Dia 1513º da Expedição Bastet
Não creio que reste muito tempo mais. Não podemos mais usar nossa nave. As explosões estão cada vez mais freqüentes e não é possível continuar. Estamos agora cativos aqui, enclausurados numa das bases subterrâneas que encontramos.
Não que faça qualquer diferença. A atmosfera daqui foi completamente varrida e estou vivendo tempo emprestado. Não há energia para os geradores. Quando o ar acabar, não haverá mais para onde ir.
Pergunto-me o que acontecerá com Tasha. Se ela continuará com suas funções pré-programadas até que o reator no lugar de seu coração pare de funcionar. Se ela apenas coletará mais memórias de outros fins de mundos até que o próprio tempo seja extinto.
Se ela vai sentir minha falta.
Talvez um dia encontrem meu corpo, um espécime perfeitamente preservado, e tentem entender o que eu sou ou o que eu era e o que me trouxe este momento. Talvez eles repitam os nossos erros ou cometam outros.
Esta foi uma jornada apenas de conjecturas. Talvez um dia eu possa encontrar respostas.
Assim acaba o mundo. Ou, pelo menos, o meu mundo: uma última lufada de ar estagnado numa cela escura a quilômetros da superfície, perdido e febril, sem perguntas ou esperança.
Não mais amanhã.
“Assim expira o mundo
Não com uma explosão,
Mas com um suspiro.”
A Coruja
Este mundo também está morrendo.
Percorremos todos os dias as rotas pré-estabelecidas da expedição, atravessando cidades desertas cujos campos de contenção ainda zumbem com energia, por desertos banhados pela luz amarelo-esmaecida de um sol doente, evitando as florestas de esporos que se adaptaram à constante radiação. Algumas raras vezes encontramos corpos ressequidos, preservados de alguma forma no ambiente estéril dos subúrbios desabitados.
Não sei por que insisto nessa rotina. Talvez porque ela seja o único resquício de sanidade no meio da destruição causada pela lenta morte de nosso sol ou pela guerra civil que terminou de exterminar o que restava da liga. Talvez porque uma vez que eu a cesse, nada mais me restará de propósito.
Dia 1095º da Expedição Bastet
Mais um planeta deserto.
Creio que sejamos os últimos, eu e Tasha, pulando de mundo em mundo, coletando amostras que já não servem mais de nada.
Às vezes me pergunto se tudo isso é familiar para Tasha. Suas memórias, codificadas no DNA usado para criá-la, também são de um mundo que encontrou seu fim muito antes de evoluirmos para o que somos hoje. Ou para o que sou hoje. Singular, plural, isso ainda faz algum sentido?
Não que ela realmente se lembre de quando seu próprio sol explodiu numa supernova... Ou que isso faça diferença para ela. Memórias sim, os cientistas decidiram trazer, tentando descobrir algo que pudesse ajudar em nossa situação. Emoções, reações, escolhas, foram deixadas de lado num corpo de cabos e circuitos, sob uma pele sintética.
Ou talvez... Talvez tenham deixado o suficiente de quem quer que Tasha tenha sido um dia. Às vezes, ela parece reagir àquilo que encontramos para além de análises frias. Ou talvez eu esteja vendo o reflexo dos meus próprios desejos em vez de uma janela. Mas gosto dessa ilusão – ela me permite acreditar que não estou completamente só.
Dia 1148º da Expedição Bastet
Encontramos hoje o cadáver de um unicórnio. Um unicórnio, um maldito unicórnio, provavelmente fugido de algum dos laboratórios que ainda zumbem no subsolo, máquinas ligadas, luzes pálidas em salas há muito abandonadas.
Não seria nada de diferente do que já vimos até aqui – tantos corpos, tanto horror – se não fosse pelo fato de que o sangue da criatura ainda está fresco.
Mais que isso: alguém deixou uma das medalhas de nossa organização na carcaça. Um aviso? Uma ameaça?
Não sei bem o que pensar.
As três luas eram um símbolo de tolerância e pensamento independente. Não nos subordinávamos à liga. Fomos os primeiros a percebermos os sinais, os primeiros a alertar sobre as cada vez mais freqüentes explosões solares, os primeiros a procurar alternativas.
Fomos contra a criação dos campos de contenção. Na melhor das hipóteses, eles não passavam de meros paliativos, na pior, uma ferramenta de controle e ameaça. Talvez, se os tivessem feito de forma individual, como os que eu e Tasha utilizamos... Em vez disso, preferiram usá-los como uma redoma para prender todos dentro das cidades.
Não demorou muito após a construção da primeira torre para que a guerra começasse.
Nesse meio tempo, já tínhamos deixado nossa base e começado a expedição. Não apenas eu e Tasha, mas outras tantas duplas de trabalho, divididos entre a expectativa de encontrar um raio seguro de onde não seríamos mais afetados pelo sol, um trampolim para algum outro sistema solar ou mesmo algum tipo de tecnologia ou substância que pudesse servir para nos salvar a todos.
Um dia, a comunicação cessou por completo e descobrimos que nossa base tinha sido destruída por insurgentes. A princípio, ainda conseguíamos contato com outras das equipes, mas pouco a pouco elas deixaram de responder.
Nosso símbolo foi usurpado pelos insurgentes contra a liga. Seu sentido foi distorcido. Conspurcado.
E agora eu o encontro aqui.
Pode ter sido um de meus antigos companheiros. Um sacrifício por compaixão de uma criatura provavelmente insana pelo confinamento e pela dor causada pela exposição desprotegida à atmosfera.
Pode ser um grupo de rebeldes sobreviventes. Intolerantes e fanáticos.
Não tenho certeza a essas alturas se desejo descobrir.
Dia 1513º da Expedição Bastet
Não creio que reste muito tempo mais. Não podemos mais usar nossa nave. As explosões estão cada vez mais freqüentes e não é possível continuar. Estamos agora cativos aqui, enclausurados numa das bases subterrâneas que encontramos.
Não que faça qualquer diferença. A atmosfera daqui foi completamente varrida e estou vivendo tempo emprestado. Não há energia para os geradores. Quando o ar acabar, não haverá mais para onde ir.
Pergunto-me o que acontecerá com Tasha. Se ela continuará com suas funções pré-programadas até que o reator no lugar de seu coração pare de funcionar. Se ela apenas coletará mais memórias de outros fins de mundos até que o próprio tempo seja extinto.
Se ela vai sentir minha falta.
Talvez um dia encontrem meu corpo, um espécime perfeitamente preservado, e tentem entender o que eu sou ou o que eu era e o que me trouxe este momento. Talvez eles repitam os nossos erros ou cometam outros.
Esta foi uma jornada apenas de conjecturas. Talvez um dia eu possa encontrar respostas.
Assim acaba o mundo. Ou, pelo menos, o meu mundo: uma última lufada de ar estagnado numa cela escura a quilômetros da superfície, perdido e febril, sem perguntas ou esperança.
Não mais amanhã.
Não com uma explosão,
Mas com um suspiro.”
A Coruja
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
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