23 de março de 2013

Para ler: A Elegância do Ouriço


Meu pensamento profundo do dia: é a primeira vez que encontro alguém que procura as pessoas e que vê além. Isso pode parecer trivial, mas acho, mesmo assim, que é profundo. Nunca vemos além de nossas certezas e, mais grave ainda, renunciamos ao encontro, apenas encontramos a nós mesmos sem nos reconhecer nesses espelhos permanentes. Se nos déssemos conta, se tomássemos consciência do fato de que sempre olhamos apenas para nós mesmos no outro, que estamos sozinhos no deserto, enlouqueceríamos. Quando minha mãe oferece petit fours da casa Ladurée à sra. de Broglie, conta a si mesma história de sua vida e apenas mordisca seu próprio sabor; quando papai toma o café e lê o jornal, contempla-se num espelho do gênero manual de autoconvencimento; quando Colombe fala das aulas de Marian, deblatera sobre seu próprio reflexo, e quando as pessoas passam diante do concierge, só vêem o vazio porque ali não se reconhecem.

Do meu lado suplico meu destino que me conceda a chance de ver além de mim mesma e encontrar alguém.

Quando dei uma olhada na lista da Retrospectiva Literária 2012 do blog Pensamento Tangencial, que é o organizador da brincadeira, deparei-me com dois volumes que, pela empolgação da anfitriã, logo me chamaram a atenção. Um, eu consegui através de troca pelo Skoob e ainda não pude começar a ler; o outro foi-me gentilmente emprestado pela Mi, do Bibliophile.

Até que eu pudesse lê-lo, A Elegância do Ouriço passou por três Estados: a Dynha pegou o livro em Porto Alegre quando encontrou com a Mi, eu peguei o livro em Belo Horizonte quando encontrei com a Dynha, e trouxe-o na mala para Recife. Comecei a folheá-lo no avião, mas o caso é que sempre tomo remédio de enjôo antes de viajar e estava dopada demais para dar a ele a atenção que merecia.

Como ele era um empréstimo, dei prioridade nele e peguei-o para ler no final da tarde do dia seguinte ao que cheguei em casa – para terminá-lo perto de uma hora da manhã. A obra de Madame Barbery é completamente envolvente e esse foi um daqueles casos em que eu dizia “só mais um capítulo, só mais um capítulo” e quando vi já tinha terminado.

Cá entre nós, não recomendo ser tão desesperado quanto eu. A Elegância do Ouriço é um livro para ser degustado devagar, com pausas adequadas para refletir sobre as questões que ele coloca.

A história se passa num prédio de alto padrão em Paris formando um microcosmo de famílias, hábitos, preconceitos. Temos duas narradoras em primeira pessoa: a velha e aparentemente rabugenta zeladora, Renée e a adolescente precoce e filosófica Paloma. São duas protagonistas com vozes bem distintas, mas convergentes o bastante para que antes de chegar ao meio da história você já esteja torcendo para que as duas sejam capazes de enxergar o que está tão óbvio sob seus narizes.

Renée mantém sua aura de ‘concierge’ com todas as manias e excentricidades que seus patrões acreditam que alguém de sua classe social deve ter – e esconde sob esse disfarce uma profunda sensibilidade para a Arte em todas as suas formas. Paloma é uma garota genial que diante da mediocridade do mundo que a cerca – de seus pares na escola, de sua própria família absurda e vazia – marcou a data da própria morte.

Ambas são profundamente solitárias e um dos temas do livro é exatamente o encontro dessas solidões: a faxineira portuguesa que sonha com sua antiga pátria; o filho do mestre gourmet salvo pelas camélias do estupor das drogas; a zeladora sem família, viúva, que esconde sua paixão pelo conhecimento; a menina introvertida excluída até mesmo do convívio familiar; o senhor japonês que perdeu a esposa e se rodeia de beleza.

São pequenos dramas, mas cheios de um humor gentil, espirituoso. O enfoque está sobretudo nas coisas simples e belas que muitas vezes nos passam despercebidas pela vida: os personagens estão sempre demonstrando sua apreciação pela boa mesa, pela música, pela natureza que os cerca, por bons livros, quadros de linhas suaves e a companhia que eventualmente encontrarão uns nos outros.

Barbery aqui também consegue um feito extraordinário: ela caminha numa linha fina entre sentimentalismo barato e auto-ajuda em alguns momentos, mas nunca perde a mão; mesmo suas digressões filosóficas conseguem ser claras sem didática papagueada e se o final é um pouco abrupto – a vida também o é e há de se aceitar que a morte faz parte dela.

Enfim, A Elegância do Ouriço é um livro maravilhoso; para ler e reler mais de uma vez, em diferentes momentos da vida, sob diferentes perspectivas, mas sempre com a mesma leveza e senso de esperança. Porque há de se ver a beleza sempre.
"...lá fora o mundo ruge ou dorme... e também provamos a sensação de um néctar precioso, o dom maravilhoso de uma manhã insólita em que os gestos mecânicos tomam novo impulso, em que cheirar, beber, repousar, servir de novo, bebericar, equivalem a um novo nascimento. Esses instantes em que se revela a trama da nossa existência, pela força de um ritual que reconduziremos com mais prazer ainda por tê-lo infringido, são parênteses mágicos que deixam o coração a beira da alma, porque, fugaz mas intensamente, um pouco de eternidade veio de repente fecundar o tempo."


A Coruja


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4 comentários:

  1. Respostas
    1. Sem dúvida nenhuma... Estou com o filme para assistir e torço para que ele seja tão emocionante quanto o livro.

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  2. Encomendei o meu! Ainda bem que tem resenha linda no Coruja

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