7 de fevereiro de 2011
Para ler: O Livro dos Esnobes
Um dia, como eu disse, conheci um homem que, jantando em minha companhia, comeu ervilhas com o auxílio da faca. Ele era uma pessoa cuja companhia a princípio agradou-me muitíssimo... mas o problema é que eu nunca o tinha visto antes diante de um prato de ervilhas, e sua conduta em relação a elas causou-me a mais profunda dor.
Após tê-lo visto comportar-se daquela maneira, só me restou apenas um caminho - cortar relações com ele. Designei um amigo mútuo para resolver o problema com esse cavalheiro da maneira mais delicada possível, e dizer que circunstâncias dolorosas obrigavam-me a evitar intimidade com ele; e assim passamos a nos evitar de maneira ostensiva.
(...)
Durante quatro anos jamais murmurei a causa da minha desavença com Marrowfat a ninguém até o 4 de junho do ano passado.
Encontramo-nos em casa de Sir George Golloper. Fomos colocados, ele à direita, e este seu humilde criado à esquerda do grupo organizado para o banquete - patos e ervilhas verdes. Tremi ao ver Marrowfat servir-se, e desviei o olhar nauseado, temendo assistir ao disparo da arma em suas horríveis mandíbulas.
Qual foi o meu assombro, qual foi o meu prazer quando o vi usar o garfo como qualquer outro cidadão! Ele não manuseou o frio aço da faca uma vez sequer. Os velhos tempos voltaram rápido à minha mente... quase caí em lágrimas de alegria - minha voz tremeu de emoção. "George, meu rapaz!", exclamei, "George, meu querido amigo, um copo de vinho!"
(...)
Eu poderia tê-lo estreitado em meu peito, não fosse a presença do grupo de pessoas. Lady Golloper pouco sabia da causa da emoção que lançou o patinho que eu trinchava em seu colo de seda rosa. A mais bondosa das mulheres perdoou o erro, e o mordomo removeu a ave.
(...)
A propósito, como certos leitores são lentos de compreensão, posso muito bem dizer qual a moral da história. A moral é esta - a sociedade estabeleceu certos costumes, os homens são obrigados a estabelecer as leis da sociedade, e a se conformar com suas inofensivas regras.
W. M. Thackeray – O Livro dos Esnobes
A Régis me mandou esse volume de Natal – ou de dia de Reis (porque os pacotes dela sempre chegam na época de reis) – acompanhado de saquinhos de chá Earl Grey: afinal, para ler O Livro dos Esnobes, é preciso ter toda uma ambientação.
Em virtude do clima – mesmo às cinco da tarde, Hellcife é muito quente – preferi tomar o chá gelado. Não sei se foi por conta da minha forma de servir ou se porque não tenho o paladar de um esnobe – o caso é que não fiquei muito fã do earl grey, até porque prefiro coisas mais doces...
Comentários culinários esnobísticos (essa palavra existe???) à parte, se não tive paladar para o chá, o livro foi mais que delicioso, daquele tipo que você engole aos bocados até chegar perto do final quando começa a tirar fatias menores para ver se dura mais e quando termina, ainda sai lambendo os dedos com gosto.
Sou fã do humor britânico, especialmente o auto-crítico – e O Livros dos Esnobes escrito por um deles é um exemplo digno e prato cheio do gênero. Para completar, ele cuida de uma crítica de costumes do período regencial/georgiano na Inglaterra – que, a essas alturas, vocês já devem saber, é uma das minhas épocas históricas favoritas (especialmente para escolher romances).
São diversos ensaios, publicados originalmente na revista Punch (que também era responsável pela publicação de Dickens!), cada grupo deles formando um estudo de caráter das mais diversas espécies de esnobe: os esnobes da cidade e do campo, os esnobes militares, clericais, da universidade, os esnobes reais e os de clube...
E, embora esses ensaios sejam o retrato de uma época e lugar bastante específicos, pouco se perdeu do valor dessas crônicas; muito pelo contrário, elas continuam hoje tão atuais quanto em 1846.
A moral dessa história, não preciso dizer, é que há muitas coisas desagradáveis na sociedade que você está fadado a engolir, e engolir com um sorriso no rosto.
Confesso, porém, que embora eu tenha, de cara, me apaixonado pela narrativa de Thackeray, o que realmente me impressionou foram as pequenas notas biográficas incluídas na edição que a Régis me presenteou. Thackeray passou toda a sua existência apanhando da vida, e apesar de todas as circunstâncias que sofreu, em especial a relutante separação com a esposa, que enlouqueceu, nos brindou com o humor extraordinário e delicioso desse livro.
Bebo em sua memória, Mr. Snob. Eis aí um homem verdadeiramente admirável. Um brinde de Earl Grey em sua honra!
A Coruja
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Bem, Lulu, fico muito satisfeita em saber que você degustou com prazer a leitura dessa pérola!
ResponderExcluirEntretanto... não posso me furtar a dizer que sua conduta em relação ao Earl Grey causou-me a mais profunda dor.
Após ter sabido que você tratou o mais rico dos chás dessa maneira, só me resta apenas um caminho - cortar relações com você. Designarei um amigo mútuo para resolver o problema com você da maneira mais delicada possível, e dizer que circunstâncias dolorosas obrigam-me a evitar intimidade com você.