27 de março de 2010

Neil Gaiman – Parte VI: Dream a Little Dream of Me


“Nós fazemos o que devemos fazer, Lucien. Algumas vezes, nós podemos escolher o caminho que seguimos. Algumas vezes, nossas escolhas são feitas por nós. E, algumas vezes, nós não temos qualquer escolha.”

(Sonho, em Sandman #22: "Estação das Brumas", capítulo 1)

Ok, pessoas, hoje vamos direto ao assunto, sem as habituais enrolações de Lulu. Antes de começarmos, porém, quero avisar que este artigo em específico será cheio, completamente transbordante de spoilers.

Depois não venham reclamar, porque, no final das contas, eu avisei.

Sandman está dividido em 75 capítulos (cada um correspondente a uma das revistas originais), em dez “arcos” de histórias, começando por Prelúdios e Noturnos e terminando em Despertar.

Já exploramos um pouco da personalidade e da história de Lorde Morpheus – Sonho dos Perpétuos, o protagonista da série – no artigo anterior. Vocês devem se lembrar que ao começo da história, ele estava prisioneiro do mago Roderick Burgess, que buscava obter a imortalidade.

Na verdade, a armadilha era para capturar Morte, mas a coisa, obviamente, não deu muito certo, não é verdade?

Se, como Lorde do Sonhar, Morpheus sempre se mostrou extremamente responsável e, por assim dizer, um bom governante, em suas relações pessoais, ele deixou muito a desejar – seja em seu relacionamento com seus irmãos, com suas amantes e namoradas e mesmo com seu filho.

Então, ele passa setenta anos preso – setenta anos que, acredito, o deixaram com muito tempo para pensar, muito tempo para pesar suas próprias ações. Alguma coisa, com certeza, vai mudar em sua forma de ver a existência.

Infelizmente, existe um limite até onde podemos mudar e redenção é um caminho de espinhos, não de rosas. Após se libertar e recuperar seu poder, Sonho vai começar a trilhar nesse caminho, seguindo, inexoravelmente, para sua própria destruição.

Ao final das contas... o sonho é a esperança.

"Eu sou a anti-vida, a besta do julgamento. Eu sou a escuridão ao final de tudo. O fim dos universos, dos deuses, dos mundos... de tudo. E o que você será então, Lorde dos Sonhos?”

“Eu sou esperança.”


(Choronzon e Sonho, Sandman #4: "Uma Esperança no Inferno")

Essas, são, claro, teorias minhas. Mas eu acredito que todas as escolhas que Morpheus fez após fugir de seu cativeiro, ainda que imbuídas de um senso de esperança – esperança por redenção, por perdão, pelo que quer que seja – eram também um passo consciente em direção à sua morte.

Ele clama Daniel para o Sonhar – uma criança que foi praticamente gestada em seu reino e que, no futuro, será o novo senhor dos sonhos. Ele liberta Calíope, a mãe de seu filho e depois, parte para o Inferno, apesar da promessa de Lucifer de matá-lo, a fim de libertar Nada, a humana que o rejeitou. Ele acompanha Delírio na busca por Destruição e garante a Orpheus a dádiva da morte.

Ele derrama sangue de sua própria família.

A morte de Orpheus é ao mesmo tempo uma dádiva e um sacrifício e a cena que se segue, de Morpheus em seus aposentos, limpando as mãos sujas de sangue, imerso em seu próprio desespero – e refletido nos espelhos de Desespero – é uma das mais significantes de toda a série.

Eu confesso que Gaiman me fez chorar nessa cena.

Não sei se vocês conhecem Ésquilo e sua Oréstia, a trilogia (ou tetralogia, uma vez que dizem que havia uma quarta obra, que ficou perdida) sobre a violenta história da família de Agamemnon, rei de Argos – um dos grandes responsáveis pela Guerra de Tróia.

Esse conjunto de peças forma uma das grandes tragédias clássicas gregas. Na primeira peça, Agamemnon, temos a morte do rei nas mãos de sua esposa, Clitemnestra (irmã da Helena de Tróia), em função do sacrifício de sua filha, Ifigênia no altar da deusa Ártemis pelo próprio Agamemnon, a fim de que a deusa soprasse bons ventos em sua partida para Tróia.

A segunda peça, Coéforas, abre com Clitemnestra sonhando que dá à luz a uma serpente. Encarando o pesadelo como um presságio, ela ordena que sua filha, Electra (que é título de outras tragédias de Sofócles e Eurípedes) faça libações no túmulo do pai, Agamemnon. Lá, ela encontra o irmão, Orestes, que acabara de voltar do exílio e, juntos, eles decidem matar Clitemnestra e o amante da rainha, Egisto.

Ao cumprir seus desígnios, Orestes é imediatamente atacado pelas Eumênides (as Fúrias, ou ainda, Erínias), personificações da vingança, responsáveis pela punição dos mortais, especialmente os delitos de sangue.

As Eumênides são três: Alecto, a implacável, que castiga os delitos morais – ira, cólera, soberba; Megara ou Megaira, a rancorosa, que personifica o ciúme, e persegue os adúlteros; e Tisífone, aquela que vinga os assassinatos, que enlouquece os culpados.

Na terceira peça, Eumênides, Orestes tenta fugir das três Fúrias, envolvendo inclusive Apolo na história, que também tinha sua parcela de culpa no assassinato de Egisto e Clitemnestra.

Ao final, Apolo, que não tem poder contra as Fúrias – elas pertencem a raça dos Titãs, deuses mais antigos do que aqueles que habitavam o Olimpo – manda Orestes ao templo de Atena, que surge no momento em que elas estão prestes a matar o príncipe, declarando que era necessário haver um julgamento.

Apolo apresenta o caso, o júri chega a um impasse e então, Atena decide a favor de Orestes (aliás, é desta história que vem a expressão voto de Minerva). Ao tomar essa decisão, Atena chama as Fúrias de “Eumênides”, que significa “Bondosas”, e as convence que Orestes já sofreu suficientemente com a própria culpa e deve ser absolvido, em razão da misericórdia.

No caso de Sonho, não há um julgamento. Não há misericórdia. Em vez de apelar, de se esconder, se proteger, Sonho vai de encontro às Fúrias. E não me digam que ele não sabia o que o esperava quando deixasse seu reino. Não me digam que ele não tinha consciência de tudo o que estava em jogo naquele instante.

Na introdução de Despertar, o décimo e último arco de Sandman, Mikal Gilmore escreveu:

“Por fim, em Entes Queridos - o livro que antecede as histórias reunidas neste volume – Sonho compreende como suas obsessões por seus poderes e responsabilidades, pelas nobres regras da autoridade, eram apenas um eco de seu próprio vazio. Pior: essas coisas serviam como desculpas por ter fracassado em proporcionar o amor verdadeiro e perigoso merecido por aqueles que o amavam e dependiam dele. E então ele entende o que precisa fazer para se redimir: no final de Entes Queridos, Morpheus estende a mão para sua irmã mais íntima, Morte, que a toma e ele deixa de existir. Você pode chegar à sua própria conclusão sobre por que Sonho escolheu esse fim. Talvez, como insinua um personagem, ele desejasse pagar por sua negligência como pai e pela destruição de Orpheus, Mas meu veredicto é este: Morpheus morreu por amor. Não estou dizendo que o amor simplesmente partiu seu coração – embora isso também faça parte do cenário. Mas não é apenas uma questão de má sorte. Morpheus fez escolhas ruins: não só para si mesmo, como também para os outros. Ele não conseguia entender como cuidar de seu próprio coração – compreender suas limitações, vaidades e necessidades reais – nem entender ou respeitar os padrões genuínos dos corações alheios. Morpheus era grandioso e, ao mesmo tempo, terrível – e enquanto cada um desses aspectos de seu coração e seu ser pudessem se abranger mutuamente, nenhum deles era capaz de subjugar ou transformar o outro. Pelo menos, não até o final.”

Interessante que as Fúrias não vão atrás de Sonho exatamente pela morte de Orpheus. Quem coloca a Vingança nos calcanhares de Lorde Morpheus é a mãe de Daniel, Lyta, quando o filho desaparece, uma vez que ela acredita que a culpa é dele.

Só que Daniel foi levado por Loki (sim, é o deus nórdico) e Puck (leia Sonho de uma Noite de Verão) e está... bem, relativamente bem.

E aí está um dos grandes mistérios de Sandman: quem mandou Loki e Puck seqüestrarem Daniel? Qual era, exatamente, o ganho que eles teriam com isso? Eu não vejo nenhum, mas, porém, contudo... eu lembro de Sonho dizendo a Loki no final de Estação das Brumas que ele ficaria lhe devendo um favor.

Tirem suas próprias conclusões.

Uma boa história tem que ter começo e final. E, se você conta uma história por um bom tempo... “elas sempre terminam em morte”. Morpheus, sendo o Lorde dos Sonhos, é também Senhor das Histórias e sua própria história tem que ter um final. Se essa era realmente a intenção dele desde o início, isso fica para cada um concluir por si próprio.

Independentemente, contudo, das intenções de Sonho – e de Gaiman – ao longo dos setenta e cinco “capítulos” de Sandman, o caso é que eles, personagem e autor, conseguiram criar uma história épica, com uma profundidade muito em falta nas obras da “Alta Cultura” atual.

Eu conheço muita gente que torce o nariz para histórias em quadrinhos, carimbando-as como “infantis”. Essas pessoas, é claro, são idiotas. Uma história não perde sua importância e suas possibilidades de interpretação porque a mídia em que seu autor escolheu representá-la não é aceita pelo mainstream.

Aliás, dane-se o mainstream. Como bem disse Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra” (e essa frase é uma bela pegadinha se todos concordarmos com ela...).

Mas essa é uma inteira discussão para outro dia. Não quero falar de idiotas hoje.

Independente da forma como Neil Gaiman escolheu representar sua história, Sandman é, sem dúvidas, uma das mais formidáveis obras de fantasia já escritas. Mais que usar um punhado de mitos – deuses, anjos, demônios, monstros, humanos – Gaiman criou sua própria mitologia e, independente de nem sempre ser o mais simpático ou justo dos heróis, criou em Sonho um dos grandes personagens desta pós-moderna mitologia – sopa de letrinhas, palavras cruzadas, o grande caldeirão do Dagda.

O sinal de uma boa história de fadas – como Tolkien conclui em seu ensaio, Sobre Histórias de Fadas é que “não importa quão desvairados sejam seus eventos, quão fantásticos ou terríveis as aventuras, ela pode proporcionar à criança ou ao adulto que a escuta, quando chega a “virada”, uma suspensão de fôlego, um batimento e ânimo no coração, próximos às lágrimas (ou de fato acompanhadas por elas), tão penetrantes como aqueles dados por qualquer forma de arte literária, e com uma qualidade peculiar.”

É exatamente esse o sentimento que Gaiman evoca com Sandman

Há muito mais coisa do que se poderia falar acerca de Sandman – eu só apresentei a família, ao final e Sandman tem um dos mais deliciosos elencos já imaginados numa história... Mas, ao final das contas, esses artigos são apenas uma “breve” introdução (claro, eu estou chegando a trinta páginas do Word, muito breve, realmente...) ao mundo fantástico de excelentíssimo Sr. Gaiman.

Assim, termino essa parte de minha... hum... é quase uma missão a essa altura... Em todo caso, termino por hoje com as palavras de Desespero no funeral do Rei Sonho.
“Eu gostava muito dele. Era tão sábio; parecia tão convencido da exatidão de seus atos. E eu, que nada faço senão hesitar, admirava isso nele. Era uma criatura de esperança, pois sonhos são esperanças e ecos de esperanças. E eu sou uma criatura de desespero. Às vezes, penso na primeira Desespero. Já deve fazer cem mil anos que ninguém pensa nela, a não ser eu. Foi esquecida num piscar de olhos. E vocês esquecerão dele também: a morte ou a vida o apagará de suas mentes. Eu sei. Mas eu lembrarei dele.

(Continua em “Além da Terra dos Sonhos”)

p.s.: antes que eu me esqueça... amanhã estarei viajando para a casa do meu tio, onde vou passar a Páscoa e é provável que vocês não tenham notícias minhas até que eu volte, próximo domingo. Só avisando, para que não pensem que fui abduzida...


A Coruja


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Um comentário:

  1. Nossa, chorei as bicas durante Entes queridos e Despertar inteiro. Geralmente sou chorona por natureza, mas perder Lorde Morpheus foi a pior sensação de todas!! Derramei até algumas lágrimas lendo seu post e relembrando de tudo.

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