9 de março de 2016
Quem Conta um Conto (Março): O Conto da Lu || Tudo vira Espuma
Pensei, por um segundo, que o tiro tivesse errado, o som ribombando como um trovão no salão. No último momento, o desgraçado tropeçou em Menowin. Eu ri, é claro. Meu ombro ardia como o diabo, mas como eu poderia deixar de rir da careta que ele fez ao cruzar olhar com Menowin, com toda sua orgulhosa crista em pé?
- Mas o quê essa coisa…
Acho que estou começando a história do lugar errado, não é verdade? Às vezes fico um pouco confusa com essas coisas. E o que importa o tempo de qualquer forma? Se eu tivesse que começar do começo, teria de ir anos e anos atrás, até o momento em que Deus, aquele velho sacana, disse ‘que se faça a luz’.
Então, há muitos lugares de onde eu poderia começar. Eu poderia começar com a história de como mamãe e papai se conheceram. Ou do dia em que as bombas caíram e a cidade ardeu e eu tive que engatinhar para a luz depois que a escola se desfez ao meu redor. Poderia começar com Hermine, numa época em que ela não era Hermine - não era ninguém, na verdade, como eu também não era. Duas criaturas de idade e sexo indefinidos por baixo das roupas sujas, apenas reconhecíveis como seres humanos pelo fato de serem razoavelmente bípedes, e terem olhos enormes e famintos.
Um pacto de sangue: amigas para sempre, vou para onde você for.
Promessas vazias e o inferno, inferno, inferno. Mãos, bocas, corpos pesados. Aí, um corpo leve no ar… e um corpo leve no mar. Sereias não têm alma, você sabia? Quando morrem, elas viram espuma e apenas… flutuam.
Hermine não flutuou. Ela afundou na praia, enquanto a cidade afundava dividida pelo muro. Afundamos todos.
Mas, não, esse ainda não é um bom começo. Esse é um começo de merda e, sinceramente, é melhor fazer de conta que era tudo faz de conta. Já foi, já era, já deu.
Essa história começa quando Menowin trouxe Hermine de volta. Menowin com suas penas brilhantes e sua crista orgulhosa. Menowin, o Rei Galo, meu melhor amigo desde antes de virar repasto de domingo para algum vermelho perdido no meio do caminho.
Veja você, Menowin nunca foi embora de verdade. Nós enganamos o soldado. De toda forma, ele estava mais preocupado em abrir as braguilhas e não posso dizer que me arrependo do que aconteceu a ele. Porque deveria? Ele não se arrependeu pelo que aconteceu comigo.
Mas eu falava de Hermine. Sim, Menowin trouxe Hermine de volta. Quando acordei com o canto dele, ela estava lá, na minha sala, pingando em cima da televisão velha, segurando a corda de Henrik.
Eles tinham rido enquanto a penduravam na corda, sim, tinham rido enquanto Hermine se debatia. Ela ainda tinha a corda quando virou espuma do mar. E agora ela tinha trazido a corda de volta.
Não vou negar que me assustei quando a vi. Naqueles dias, eu tentava ignorar Menowin. Bebia álcool barato e lidava com as pequenas mesquinharias de ser uma atendente de caixa. Achava que estava louca. E tentava fingir que era banal como todo mundo.
Você não pode ser banal quando uma sereia te visita. Não há nada de normal quando sua melhor amiga morta aparece pra ti com a corda com que foi enforcada, cobrando uma promessa feita há quase tanto tempo quanto existe o mundo.
Mas Hermine estava lá. E eu tinha uma promessa a cumprir. Mas não podia ir com ela antes de resolver um último assunto em aberto.
Quando os tiras estouraram o inferno, antes do hospital e das freiras e das tentativas de parecer normal, Henrik conseguiu fugir. Ou molhar a mão da pessoa certa, quem vai saber? Afinal, ele tinha sido importante. Os vermelhos tinham todas aquelas ideias bonitas sobre tudo pertence a todos, mas a verdade é que a ideia era que a maior parte de tudo pertencesse a uns poucos e a menor, a todos. Não acho que fosse muito melhor do outro lado do muro, mas talvez Henrik tivesse sido preso de verdade se o inferno fosse lá.
Seja como for, você pode entender eu dilema, não pode? Henrik estava solto e eu tinha vários recortes de jornal que o mostravam como um respeitável cidadão da cidade. Eu achava, antes de Hermine aparecer, que aquela compulsão pelos jornais e Henrik eram uma maneira de evitá-lo - não que houvesse alguma chance de encontrá-lo nos círculos sociais em que ele se movia, mas é sempre melhor remediar o imprevenível.
Obviamente, eu sabia mais do que realmente sabia: os jornais não eram uma maneira de ter certeza que nunca mais encontraria Henrik no meu caminho, mas sim de ter certeza absoluta que eu saberia onde encontrar o filho da puta quando fosse a hora.
Hermine me deu um ano e um dia. Não falarei das horas de pesquisa, das visitas às pequenas filiais do grande inferno que fizera a riqueza de Henrik e lhe permitiu passear nas colunas sociais. Das tocaias frustradas, de acordar na banheira nos braços frios de Hermine - e serei sincera em dizer que escamas e barbatanas não fazem companheiros aconchegantes (mas ainda era melhor que o chão sujo do meu quarto de pensão alugado). Basta dizer que foi o suficiente.
- Eu sempre achei que você não demoraria a seguir aquela outra vadiazinha para o outro mundo.
Um ano e um dia quando Henrik afinal deu um passo em falso e pude encurralá-lo.
- Você devia me agradecer! Era melhor ser minha puta que ir pra cama com aquela…
Um ano e um dia quando Henrik sacou uma pistola depois que lhe tirei sangue com as unhas.
- EU VOU MATAR VOCÊ SUA MALUCA. VOU MATAR VOCÊ E O MUNDO VAI ME AGRADECER, TÁ ENTENDENDO, SUA…
Um ano e um dia quando Henrik atirou e tropeçou em Menowin.
- Mas o quê essa coisa…
Menowin voou para cima dele com toda a fúria de um galo de briga, esporões prontos, arrancando sangue e gritos, enquanto eu ria, ria, ria, lágrimas de dor rolando pelo meu rosto, criando poças de água, poços de água salgada, passagens para o mar.
Eu tinha a corda de Henrik comigo, a corda com que Henrik matara Hermine.
O laço ainda estava feito. Meu braço direito já era, mas eu não estava sozinha.
Nós só o largamos muitos minutos depois que suas pernas tinham deixado de se debater.
Um ano e um dia e estava feito.
Eu deitei no colo frio de Hermine, enquanto meu sangue virava espuma nas poças de mar. Então ela cantou para mim.
EMPRESÁRIO É ENCONTRADO ENFORCADO EM BORDEL ABANDONADO
A polícia trabalha com a ideia de suicídio. O grande mistério, contudo, é de onde teria vindo a água salgada que inundou todo o andar onde Henrik Metzger foi encontrado.
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