20 de novembro de 2015

Heróis de Papel - Capítulo 28


Capítulo 28

Início de Março (Ano 5)

Kal,

Essa talvez seja a última carta que lhe escreverei durante algum tempo: amanhã atravessaremos Remagen e a última fronteira antes de adentrarmos de fato o território inimigo. Sua carta chegou-me às vésperas dos preparativos para a invasão, e não me deixou tempo suficiente para responder. Assim, como não sei quando poderei mais uma vez sentar e escrever; ou quando as comunicações estarão suficientemente organizadas para que eu possa despachar essa missiva, preferi dar-lhe agora uma resposta breve em vez de deixá-lo esperando sem termos em vista.

Creio que esse vá ser o derradeiro golpe dessa guerra insana. Mesmo que ela ainda se arraste por alguns meses – estou tentando não ser otimista demais, e levar em consideração a resistência acirrada que certamente encontraremos – a verdade é que somos agora superiores em armas e tropas, e praticamente todos os aliados do Eixo já sucumbiram.

Devo começar observando que me ressinto de sua família. Tolos, é o que eles são – da maneira como agem, desrespeitam a memória de seu irmão, e privam-se de mais um de seus parentes. Acredite-me, meu caro amigo, quando lhe digo que a perda é deles. A perda é inteiramente deles.

Sei que é doloroso confrontar-se com tal situação, mas não se deixe abater. Não me force a comprar uma briga com sua família – não gostaria de terminar uma guerra aqui para voltar e começar uma nova guerra em casa. Eu seria forçado a vingá-lo, afinal. E não queremos isso, não é verdade?

Minhas festas de fim de ano foram um tanto melancólicas, pois tive de me despedir de Galahad por um tempo. Ele é muito jovem, e eu não teria coragem de expô-lo ao front em que agora nos encontramos. Deixei-o com um colega no último hospital de campanha pelo qual passamos, e, se eu tiver sorte e sobreviver mais esses meses, eu o reencontrarei quando estiver pronto para ir para casa.

Ainda assim, elas parecem ter sido um pouco melhores que as suas. Improvisamos um jogo de futebol no acampamento – antes que pergunte, não joguei, vez que tenho dois pés esquerdos e nenhuma capacidade de driblar ninguém; mas por motivos que me escapam, fui convidado a ser o juiz da partida.

Você estava certo quando disse que eu explodiria em gargalhadas com seu último desenho – a idéia de um avião de chocolate despejando bombas recheadas ao leite renderam-me muitas. Eu lhe agradeço por esse riso: tem havido poucos motivos para tanto nos últimos dias.

Se eu soubesse do seu gosto por Veneza, teria procurado mais lembranças para lhe mandar de lá. Foi um dos lugares mais interessantes em que estive durante a viagem, a despeito do fato de ter encontrado a cidade numa época de tristezas e olhares desconfiados. Gostaria de poder voltar em tempos de paz – ser um verdadeiro turista, pagar uma fortuna por um passeio de gôndola e ver o carnaval de algum balcão ou ponte.

Mas confesso que, de um ponto de vista eminentemente prático, não é um lugar em que quereria morar. Deve ser bastante problemático conviver com as infiltrações e o mofo causado pelos canais.

Creio ser tudo por agora – preciso me preparar para o que virá amanhã. Despeço-me agora na esperança de que da próxima vez que nos falarmos, seja frente a frente, com a paz reestabelecida, e o mundo caminhando para alguma ordem afinal.

Abraços,

Alex.


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