6 de novembro de 2015
Heróis de Papel - Capítulo 26
Capítulo 26
Início de Dezembro (Ano 4)
David,
Precisei ler e reler várias vezes sua última carta para digerir tudo o que decidiu me contar, antes de me atrever a responder. Não desejo lhe causar mais mágoa, ou oferecer palavras de consolo vazias. Acredite em mim quando digo que me sinto honrado por merecer sua confiança, e a única coisa que deploro em toda essa miserável situação é o fato de que não posso fazer muito mais além de lhe escrever.
Meus pêsames pelos seus pais. Ainda que a relação entre vocês estivesse estremecida, nada pode mudar o fato de que eles eram seus pais, e que perdê-los de uma maneira tão abrupta é doloroso. Considerando o fato de que você deixou implícito que os dois morreram juntos, imagino que tenha sido algum acidente ou algo parecido, não é?
Posso entender sua culpa em relação ao seu irmão – da mesma maneira que posso entender o que o levou a fazer o que fez. As longas esperas injetadas de nervosa expectativa são talvez piores que as bombas e a ação. A ansiedade causada por esses períodos de suposta calmaria são capazes de acabar com os nervos mesmo dos mais contidos.
O que você não pode deixar é que essa culpa o domine – e nem acho que isso é o que seu irmão gostaria. Por tudo aquilo que você já me contou sobre Luka, tenho absoluta certeza que ele não desejaria vê-lo se torturando eternamente pelo que aconteceu. Pelo contrário, ele desejaria que você seguisse em frente. Só posso crer que Luka gostaria de vê-lo feliz. Sua família teria honrado muito mais a memória dele em receber você, em vez de excluí-lo.
Eu realmente gostaria de ser capaz de fazer mais que escrever essas linhas. Mas ainda não será esse ano que retornarei para passar o Natal em casa. Quando acreditávamos que as coisas só podiam melhorar dali para frente, uma nova resistência surgiu, e, como eu temia, para além da guerra nas fronteiras, estamos agora tendo de lidar com uma guerra civil.
Não posso reclamar demasiado – como oficial, eu pelo menos poderei passar as férias no quartel-geral, em vez de nas barracas junto a algum dos fronts, e tenho Galahad por companhia. Mas a verdade é que cada dia se torna mais e mais difícil olhar para a desolação que nos cerca e esperar que em breve esteja tudo terminado.
Às vezes tenho a impressão de que estou preso num pesadelo, e que nunca mais conhecerei outro horizonte além dessa guerra. Tantas vezes nos últimos anos pensei que estávamos perto do fim, e tantas vezes a realidade se provou contrária...
Nessas horas, o consolo que consigo encontrar são suas cartas. Perdi o número de vezes em que suas palavras me ajudaram a fugir do desespero. Eu já lhe disse antes, David, e lhe digo de novo, que devo minha sanidade – e até minha vida – à sua companhia.
Isso, mais que qualquer outra coisa, é o que tenho a lhe oferecer: a consciência de que, a despeito de toda a angústia e das suas perdas, sua experiência ajudou a salvar outras pessoas. E não falo só de mim, mas de todas aquelas que você ajudou quando era um bombeiro.
E depois de tudo isso, sinto-me incapaz de continuar a escrever sobre coisas de cotidiano e outras banalidades. Prefiro me despedir aqui, sem aparentar que está tudo bem e que devemos proceder como de hábito. Não porque eu não queira dividir com você minhas histórias, mas porque acredito que é melhor lidar com esse tipo de perda sem adiamentos e distrações.
Desejo que o ano novo lhe traga alívio e paz, meu amigo. E que ele me traga a oportunidade de, finalmente, agradecer pessoalmente por tudo aquilo que você fez por mim.
Abraços,
Alex.
p.s.: enrolei seu presente de natal em várias e várias camadas na esperança de que ele chegue inteiro para você. Não estou tentando lhe mandar qualquer mensagem subconsciente com o pavão – é só que tive a oportunidade de visitar uma daquelas famosas fábricas de vidro, e fiquei encantando com as cores que eles conseguiram imprimir à estátua.
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