25 de setembro de 2015
Heróis de Papel - Capítulo 20
Capítulo 20
Meados de Dezembro (Ano 3)
Alice,
Nunca menti para você antes, e não será agora que irei começar. Não posso dizer que estou contente ou que posso felicitá-la por seu casamento. Mas o alívio em saber que está viva – e bem – sobrepuja qualquer outro pensamento.
Não pretendo me estender. Talvez no futuro eu possa pensar em você sem dor, e voltar a ser o amigo que fui em nossa infância, mas, no momento, não posso crer que manter um vínculo seja saudável – nem para mim, nem para você.
Não há o que perdoar. Você fez o que precisava fazer, dadas as circunstâncias – acreditando-me morto, você estava liberada de quaisquer promessas, e tinha de pensar em sua sobrevivência. Não me ressinto das escolhas que você foi obrigada a fazer, Alice, especialmente a se considerar as perdas que você tinha sofrido.
Aqui me despeço, e perdoe-me se não pude ser mais eloquente ou coerente. Vê-la feliz sempre foi minha maior ambição, e eu espero que você tenha encontrado essa felicidade em seu caminho. Esse será meu consolo daqui por diante.
Alex.
Meados de Dezembro (Ano 3)
Kal,
Meu caro amigo, eu lhe devo desculpas. Tenho muitas justificativas para meu silêncio e talvez não possa explicá-las a contento sem despertar a fúria da caneta do censor – mas você talvez compreenda o suficiente para ser capaz de me perdoar.
Devo-lhe também um agradecimento – e já perdi a conta de quantas vezes lhe devo minha gratidão – por não ter desistido de mim, por ter continuado a escrever e se preocupar por todo esse tempo.
Sim, a notícia do casamento de Alice me chocou, e me levou a um estado de desespero antes que eu pudesse começar a compreender todos os seus nós. Mas, creia-me, eu não teria simplesmente interrompido nossa correspondência sem qualquer aviso por causa disso.
Recebi sua primeira missiva das que lhe devo resposta junto com uma carta dela. Na ocasião, não tive tempo de responder. Sofremos um ataque – tivemos algumas baixas e perdemos a base em que estávamos – a pista e quase todos os aviões que estavam pousados foram destruídos.
Tive uma grande sorte, escapando sem ferimentos. Fomos mandados para outro acampamento, e acabei por ser incorporado a um pequeno grupo de comandos responsável por missões de inteligência e sabotagem. Minha primeira missão terminou por me levar além das linhas inimigas.
Houve complicações. Perdemos comunicação, escapamos de ser descobertos por muito pouco, e terminamos sendo alvo de nossas próprias bombas quando decidimos nos arriscar a entrar numa das cidades para tentar reativar a comunicação. Pensei em determinado momento que era uma ironia cruel que Alice tivesse passado esse tempo todo achando que eu estava morto, para me reencontrar e logo em seguida perder-me de novo.
Fomos resgatados mais por sorte que por nossa própria astúcia. Passei o último mês no hospital, e foi aqui que suas últimas cartas vieram me encontrar, depois de ter atravessado quase meio continente. Considerando que, até novembro, não se sabia para onde enviá-las, elas até que me chegaram rapidamente.
Antes que se preocupe, em breve terei alta. Desloquei um ombro quando do bombardeio e tive algumas escoriações, mas nada muito grave. Teriam apenas imobilizado meu braço e me mandado de volta para o acampamento, não fosse pela desidratação e uma infecção em consequência da mesma. Tomei minha última dose de antibióticos essa semana e estou agora apenas em observação para ter certeza de que a infecção foi debelada.
Toda essa odisséia colocou-me muitas coisas em perspectiva. Fui capaz de responder a Alice – o envelope endereçado a ela já está ao meu lado, apenas esperando que eu termine sua carta para seguir viagem – e espero que tanto eu quanto ela possamos encontrar paz, agora que sabemos que o outro está bem.
Por mais dor que a notícia ainda me cause, não sinto mais a amargura que me assaltou quando primeiro a recebi. Estive muito próximo da morte nesses meses, não tenho quaisquer garantias de que sobreviverei ao final da guerra, e talvez seja uma benção disfarçada que Alice esteja livre desse peso. Ela não precisará cumprir luto uma segunda vez se algo me acontecer. Ela está bem, e confortável, e tem alguém que cuida dela. Se nada mais, ao menos isso é uma satisfação para mim.
Posso compreender melhor agora sua própria atitude filosófica em relação a sua esposa. Ainda me ressinto que ela o tenha abandonado, mas, de certa forma, é um alívio saber que elas não serão vítimas dos nossos demônios ao final.
Mudando completamente de assunto, tento retomar o fio da meada de nossa correspondência. Primeiro e antes de mais nada, permita-me agradecer pela permissão em usar seu apelido e também satisfazer uma curiosidade: sendo seu nome David, de onde teria vindo o Kal? Há alguma história por trás do epíteto?
Estamos de novo à época do Natal, mas dessa vez há pouca probabilidade de neve e hipotermia. Meu novo endereço é próximo aos trópicos – o clima é agradável a despeito da guerra. Ainda que minhas coloridas meias de lã tivessem sobrevivido ao primeiro ataque que minha base sofreu, haveria pouca necessidade delas aqui.
Na verdade, sinto dizer que a maioria dos seus presentes se perdeu. Ao menos consegui salvar suas cartas e desenhos. Elas foram uma constante fonte de conforto nos meses que se seguiram.
Seja como for, e considerando que estamos às vésperas do Natal, tive a oportunidade de conseguir providenciar um presente para você também. Pedi ajuda a uma das enfermeiras que tem cuidado de mim, e ela me trouxe o saquinho de conchas da praia que posso enxergar de longe através da minha janela. O baú, eu encomendei a um rapaz que fornece verduras ao hospital – contaram-me que ele era bom com entalhes e decidi arriscar. Espero que goste.
De resto, ainda estou disposto a enfrentar o escrutínio de Marianne. E na esperança de que o mistério dos gnomos de Stephenson seja resolvido.
Espero que essa carta o encontre em bom espírito e siga rápido o bastante para lhe trazer alívio. E que o ano que está para começar nos traga a todos paz.
Alex.
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