7 de agosto de 2015

Heróis de Papel - Capítulo 13


Capítulo 13

Início de Julho (Ano 2)

David,

Devo começar, mais uma vez, agradecendo pelos presentes. É curioso observar que a despeito de minha natureza introspectiva, estou a me tornar o oficial mais popular do acampamento, graças a você. Considerando a quantidade que você sempre me manda de doces e outras miudezas, acabo por compartilhar com meus colegas e isso, aparentemente, é tudo de que necessito para ter uma boa reputação junto aos soldados.

Por aqui, já conhecíamos a ‘tia Jane’ – de fato, ela continua bastante popular. Mas é sempre bom voltar a ela e suas paisagens calmas e o volume que enviou vai substituir o que tínhamos, cujas costuras só se mantinham com muita boa vontade e paciência. Quando aos volumes de teatro, devo dizer que as comédias empolgaram o suficiente alguns dos soldados que eles estão a planejar uma apresentação.

Não conhecia seu russo, mas, pela sinopse, creio que ele seja exatamente o meu tipo de livro. E, por falar em tipos de livro e recomendações, peço licença para recomendar um dos livros que você mandou em fevereiro. Sei que disse não gostar de fantasia, mas há algo mais que devaneios na história do senhor Bolseiro. Lá e de volta outra vez é algo com que posso me identificar. A linguagem é leve e divertida, mas há mil e um perigos pelo caminho.

Um dos meus subordinados tem uma boa voz para imitações, de forma que durante todo o mês passado nos reunimos antes do toque de recolher para ouvi-lo ler em voz alta. Aliás, o cabo Taylor é também o responsável pelo plano do teatro. Nosso comandante gostou da idéia, acha que é algo que ajudará a aumentar a moral do pelotão.

Arranjei também uma gaita em nossa última licença – você talvez se lembre de que observei ter certo pendor musical – e fui agora cooptado para fazer a trilha sonora de tais projetos.

Imagino se você tinha essas consequências em mente quando começou a despachar-me tantos livros. Aliás, espero que essa sua gentileza não esteja lhe pesando no bolso – sei que está havendo racionamento por aí por conta dos bloqueios submarinos. Agradeço por todos os pequenos luxos que tem enviado, David, mas se eles lhe pesam de alguma forma, por favor, não se preocupe em continuar. Suas cartas são mais que o suficiente para mim.

Mande um olá de volta para a senhora Marianne. Eu a conheci quando Alice primeiro se mudou para o seu prédio. Nós morávamos antes algumas ruas abaixo da sua; éramos praticamente vizinhos. Talvez uns seis meses antes de ter de seguir para o treinamento, ela e a mãe se mudaram porque o locatário da casa delas decidiu aumentar muito o aluguel. Ajudei na mudança e lembro-me de ter bebido uma limonada na casa de sua vizinha.

Conheci vários dos vizinhos de Alice nos dias da mudança – ela sempre foi meu oposto, extremamente social e aberta com todos, e não demorou a que boa parte do prédio a tivesse adotado. Se ainda são os mesmos que conheci, e lembrando as histórias que Alice costumava contar, posso bem imaginar o quanto tem se divertido com eles. Seu amigo dos gnomos, se bem entendi, é seu vizinho do andar de baixo; o senhor do fonógrafo morava no apartamento de cima e Alice o achava um cavalheiro muito distinto e educado, que sempre recebia visitas que pareciam pertencer à nobreza.

Se seu amigo, o senhor Stephenson, encontrar algum gnomo, você se importaria em mandar as evidências? Tenho certeza que isso se revelaria algo muito interessante...

Ri-me muito de sua ilustração do nosso chá surreal e a sugestão musical – mas, acredite-me, não é algo tão difícil de acontecer por aqui. Frente às incertezas e o medo, as pessoas se apegam às suas rotinas. Da mesma forma, elas podem sair completamente dos eixos – e isso explica seus esbarrões em loucos de toda a espécie pela cidade. Às vezes é preciso se desconectar um pouco da realidade para sobreviver.

Agora, sinto informar que minha eventual carreira como contador de conchas está com os dias contados. Nosso pelotão está sendo realocado; vamos avançar para o sul, trocar o mar pelas montanhas. Mando alguns novos postais que consegui na mesma oportunidade em que arranjei minha gaita – os três primeiros são propaganda de uma casa de dança que havia na vila antes da guerra começar (ainda há dança por lá, mas nada tão intenso quanto as propagandas prometiam), o último é do velho farol, num ângulo diferente do que o que lhe mandei primeiro.

Com a mudança, provavelmente terei novas paisagens para lhe mostrar da próxima vez. E novas histórias também, uma vez que você parece gostar de histórias e lendas de fantasmas.

Termino por hoje reiterando o convite que fiz. Por mais que nunca tenhamos nos encontrado, não creio que possamos dizer que somos completamente estranhos após quase dois anos de correspondência. Tenho absoluta certeza que Alice concordará comigo – para além do fato de que ela sempre foi de uma personalidade extremamente gregária, os esforços que tem empreendido, seja para encontrá-la, seja para manter a comunicação comigo, certamente farão com que ela o receba como alguém da família.

Parece-me uma boa expectativa para o futuro, não?

Alex.



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2 comentários:

  1. Não sabia que era possível visitar alguém do exército durante a guerra. :) Tomara que o encontro aconteça!

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    Respostas
    1. Tatá, acho que entendesse errado... Alex convidou David a visitá-lo quando a guerra já tiver acabado e ele estiver em casa ^^

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