5 de junho de 2015

Heróis de Papel - Capítulo 04


Capítulo 04

Início de Junho (Ano 1)

Prezado Alex,

Seria estranho eu confessar que, quando você respondeu a carta, fiquei surpreso? Você me agradeceu por tê-lo feito, mas acho que, de alguma forma, mesmo tendo me voluntariado a procurar Alice, não esperava uma resposta. Quando achei, na caixa postal, algo além das usuais contas, avisos e semelhantes, perguntei-me, por um instante, se não haviam encaminhado para a pessoa errada.

Você mencionou que nunca tinha escrito uma carta de amor; pois bem, eu nunca havia recebido uma carta que não fosse, de alguma forma, relacionado a algum trabalho, serviço ou propaganda – a menos que se contem os cartões postais e cartas das crianças.

Creio não ter mencionado, mas fui bombeiro, e, pelo menos uma vez por mês, havia demonstrações em escolas públicas. Como você mencionou que não tinha tempo para sociabilizar, não sei se você vai saber disso, mas muitos garotos (e, às vezes, garotinhas também) almejam ser bombeiros. A maior parte acaba mudando de ideia na medida em que amadurecem, mas, na infância, é um sonho bastante comum. Assim, recebíamos vários postais de crianças que, ou estavam presentes em nossas visitas, ou foram resgatadas, ou, ainda, tiveram algum parente (ou amigo) salvo. Eram as correspondências que eu mais gostava de receber, quando ainda fazia parte da corporação. Na verdade, mesmo alguns anos após ser desligado do corpo de bombeiros, ainda recebo algumas. Entretanto, como são todas encaminhadas à estação, não tinha entendido por que havia uma carta endereçada a mim, até que li seu nome no envelope.

Foi uma sensação nova, e, portanto, devolvo-lhe os agradecimentos pela escrita da mesma. Devo dizer, entretanto, que não creio que outra pessoa não faria igual. É preciso ter o coração bastante fechado para não sequer informar um remetente constante que o destinatário deste não mais se encontra naquele endereço. Ainda mais quando se trata de alguém que está pondo sua vida em risco para proteger as nossas.

Não, não creio que tenha feito além do que diz a ética, ou mesmo o senso comum.

E por falar no destinatário, lamento, mas ainda não tenho pistas de Alice. Depois de muito insistir, confirmei que havia, sim, uma lista dos evacuados, ou pelo menos daqueles que se registraram. Entretanto, o acesso é limitado, e levei certo tempo para consegui-lo. Mas muitos de nossos prédios públicos já não existem (a menos que se considere um amontoado de escombros como “existindo”), e, temo, os registros também não. Na medida do possível, tentarei descobrir mais sobre o paradeiro dela, mas, por hora, não vejo muita esperança de achá-la.

Por outro lado, pelo menos, posso lhe dizer que o nome dela não consta nas listas de casualidades que me chegaram até agora. Acho que isso é motivo para não desanimar. Confirme para mim, por favor, a mãe dela chama-se Carol, estou certo? Quanto mais detalhes eu tiver, maior a possibilidade de achá-la.

Pelo que li anteriormente, ela pode, de fato, ter sido a única pessoa que teve enquanto cresciam, e a única que esteve ao seu lado enquanto a vida lhe desferia golpe atrás de golpe. Porém, no momento, pelo menos fisicamente, ela não está aí. Tenho certeza que Alice o acompanhará sempre, mas, por agora, é só você. E eu sei bem como é isso. Sei o quão difícil é tirar forças a cada instante, aparentemente do nada, só para continuar existindo. Mas você está há quase um ano, creio, sem o apoio dela, e, ainda assim, persiste.

Caro Alex, você tem essa força, não esqueça. Você tem a capacidade de perseverar, de sobreviver. E estou certo que seu desejo de ser médico fá-lo-á tentar salvar o maior número de vidas. Pelo pouco que sei, isso é uma característica sua, e, tenho mais certeza ainda, abrir-te-á caminhos, inclusive entre seus companheiros. Se essa força não foi capaz de te criar muitas amizades antes, é porque esse seu traço não teve escuridão que o fizesse brilhar. Contudo, por mais irônico que seja, terá essa chance agora. Não se feche para ela. Mesmo que doa, não se prive desse contato. Permita-se preservar as memórias de seus colegas, e, se você cair, eles levarão as suas.

Não se isole ainda mais. É preciso muito mais que habilidade para sobreviver num campo de batalha; é necessário camaradagem. Dê-se a oportunidade.

E sobreviva. Faça as escolhas que tem que fazer, por mais difíceis que sejam, mas faça a escolha certa – e não a escolha fácil. Somente assim você será capaz de invocar as forças que precisa, sem duvidar do caminho, e sem precisar ficar sempre olhando para trás. Se você diz que minhas palavras lembraram-no por que está lutando, repeti-las-ei quantas vezes você precisar.

Pelos sonhos e esperanças desse país. Pela Alice. Por aqueles dos quais já se despediu, antes e depois de ser despachado.

Pelos seus próprios sonhos.

Não esqueça.

E sobreviva.

Atenciosamente,
David


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6 comentários:

  1. Queremos David numa palestra do TED! Todas as cartas dele são motivacionais pro meu dia T.T

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    1. David é de fato bastante inspirador... Alex tem sorte de ter alguém como ele para ouvi-lo...

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  2. Encaminharei sua moção aos organizadores do TED (infelizmente teremos que esperar um ano, aqui a seleção foi há duas semanas atrás... >.<). Claro, perguntaremos ao próprio David se ele aceita (não que ele tenha escolha... XD)

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    1. Já pensou que legal? Adoraria ver o David dando uma palestra do TED. Concordo com a Fernanda, ele é extremamente inspirador.

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  3. Pois é. David é o tipo de cara que te coloca pra cima. Gostei dele. :)

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