18 de junho de 2014

Quem Conta um Conto (Junho): O Conto do Dé || Histórias

                O céu noturno estava coberto por nuvens, mas isto parecia não incomodar os ratinhos.

                - Vamos, já vai começar! – disse o da frente.

Os outros já estavam próximo ao precipício, esperando. A Lagarta disse algo, mas os ratos não conseguiam entender. Ela sempre falou um pouco enrolado, então ninguém parecia conseguir entende-la. Se isso a perturbava, não demonstrava.

                Juntaram-se ao redor do penhasco e esperaram em silêncio. A qualquer momento iria acontecer. Em poucos minutos, as nuvens começaram a dispersar e a medida que a iluminação da lua aumentava, a figura ficava mais clara. Era rechonchuda, coberta de pelos pelo corpo todo, exceto no rosto, e com pequenas frutinhas crescendo nos chifres e, curiosamente, na cauda. Segurava um livro, e todos os presentes prenderam a respiração em antecipação quando a figura o abriu.

                - Boa noite, crianças. Apesar de minha demora, creio que ainda temos tempo para duas histórias esta noite. Quem gostaria de escolher a primeira?

                Todos ergueram as patas, embora a pobre Lagarta tenha precisado deitar-se de costas para tanto. A Leitora riu um pouco e acabou concedendo o direito à Lagarta, embora apenas ela tenha compreendido o pedido.

                - Excelente escolha, Lagarta. Deixe-me procurar a página... – E começou a folhear o livro – Ah, aqui está... Era Uma Vez, em uma Floresta muito distante...

                - Não consigo encontrar! Não consigo! – Repetia a raposa.

                Desde pequena aquela raposa buscava algo. Seus irmãos e irmãs nunca procuraram nada além de comida, assim como seus pais. O que ela procurava ninguém sabia.   

                Os anos passaram, a raposa tornou-se adulta e ainda assim ela buscava alguma coisa que ninguém sabia o que era. À medida que o tempo passava, a frustação aumentava e a tristeza ia tomando forma. Foi aí que tomou a decisão.

                Com os anos de prática, poderia encontrar praticamente qualquer coisa no mundo, então encontrar a raposa cinzenta foi relativamente simples, embora demorado. A raposa cinzenta vivia em uma floresta muito distante, longe da vista de todos e diziam que ela possuía poderes fantásticos, embora ninguém que a raposa conheceu pudesse dizer com certeza. Uma longa jornada iniciou-se ali, e durou por meses.

                A floresta era fria, com árvores altas e frondosas, mas parecia receptiva. Pequenos animais podiam ser ouvidos ao longe, fora da vista da raposa. Espertos, ela pensou.

                - Você veio de longe, isso eu vejo. – Disse uma voz suave, que ecoou simultaneamente por toda a floresta e por lugar nenhum. – O que deseja, raposa vermelha?

                - Vim em busca da raposa cinzenta. – respondeu – Busco por algo, e vim pedir ajuda.

                Do topo das árvores uma forma cinzenta se aproximou. Era uma raposa, porém diferente: além do pelo cinza, inclusive nas patas, possuía o pescoço mais grosso e garras fortes e curvadas.

                - Já me encontrou, raposa vermelha. Diga-me o que precisa.

                - Preciso enxergar melhor, para auxiliar em minha busca.

                - Posso conceder seu pedido, sim. Porém, preciso alertá-lo... Sua busca não terá sucesso pelo caminho que você segue.

                Aquelas palavras doeram mais do que a raposa quis admitir. Mas ele precisava seguir em frente.
                - Não importa. Preciso encontrar, e para isso preciso ver.

              Após um breve silêncio, que pareceu se estender por uma eternidade, mas a raposa cinzenta finalmente disse:
                - Muito bem. Lhe darei o que quer.

                Um leve toque na testa e no peito, e o mundo adquiriu novas cores, novas texturas... praticamente um mundo novo. Podia enxergar cada detalhe de tudo.

                - Está feito. Espero que consiga encontrar o que procura. – E com estas palavras, a raposa cinzenta se retirou, novamente escalando as árvores, até sumir entre os galhos.

                E assim, iniciou a volta para casa.

                Com a nova visão, novos caminhos se mostravam para a raposa, que completou a jornada na metade do tempo. Em tempo de ver a fumaça que se erguia no horizonte.

                Ainda de longe, podia ver os caçadores montados e os cães. Muitos deles, a maior parte armados e outros conduzindo os cães, treinados para caçar raposas. Já avançavam floresta adentro, os cães com os narizes rente ao chão conduzindo os homens.

                Mas a raposa adiantou-se aos homens, e encontrou as demais, guiando-as para longe dos caçadores. Cada uma delas o olhava com uma expressão surpresa, mas não podia se preocupar com aquilo no momento.

                - Mais rápido... Eles estão mais perto. – Repetia para si mesmo.

                Logo viu um grupo de caçadores próximo à uma fêmea escondida. Ela não duraria muito tempo, com os cães farejando furiosamente tão próximo. Rapidamente, viu um caminho que levaria até um esconderijo próximo ao rio, que esconderia o seu cheiro.

                - Ei, seus vira-latas! Aqui!!! – gritou, chamando a atenção de todos os cães. Eles não gostaram nem pouco da ofensa, e passaram a perseguir a raposa.

                Com todos em seu encalço, correu o mais rápido que pode seguindo a trilha para o rio. Os caçadores montados não podiam seguir através dos galhos baixos, então só precisaria despistar os cães. Com um olhar de relance, viu a fêmea escapar sem ser vista. Tudo de acordo com o plano. Em pouco tempo, alcançou o rio, e a segurança do esconderijo. Se mantendo em silêncio total, viu os cães passarem em toda a velocidade e, poucos minutos depois, os cavalos.

                Foi então que descobriu, como era possível ter passado enxergar tão bem. No seu reflexo na água, viu que em sua testa e no meio do peito, dois novos olhos de abriram. Entendeu o por que dos olhares surpresos, mas não importava agora, já que tinha salvo dezenas de outras raposas dos caçadores.

                E foi aí que começou a perder o interesse em sua busca. Nos dias, semanas, meses e anos que se passaram, o interesse diminuiu ainda mais. Depois desse dia, nenhuma outra raposa o olhou surpreso ou com estranheza. Depois de seu casamento com a última fêmea que salvara dos cães, nada disso importou mais. E foi aí que percebeu que havia, finalmente, encontrado o que procurou por tanto tempo: a felicidade.

E, fechando o livro, a Leitora disse.

                - Nem sempre podemos achar aquilo que queremos procurando ativamente. Às vezes é necessário que simplesmente deixemos a vida acontecer, como a Raposa bem mostrou. A vida trouxe a felicidade para ela.

                A Raposa acenou com a cabeça, concordando.

                - Lembrem-se disso, crianças, e vivam o melhor possível. – Olhou para a lua, como se tomando medida da hora. – Ainda temos tempo para outra história... Acho que deveríamos deixar a Raposa escolher, não?

                A Raposa disse que história gostaria de ouvir, mas novamente, apenas a Leitora pareceu compreender.

                - Boa escolha, Raposa. – E passou a procurar a história no livro. – Vejamos... Ah, aqui está. Era Uma Vez, em uma fazenda muito distante...

                  O sol iria se levantar logo, logo, e isso queria dizer que mais um dia duro de trabalho viria para o Burrico. Sem surpresa nenhuma, lá veio o fazendeiro com a cabeçada. O bridão sempre machucava a boca do burrico, não era bem ajustado, mas o fazendeiro ou não se importava ou não podia fazer nada a respeito.

                Pela manhã, precisaria puxar uma carroça até o campo, e trazer uma carga de capim. A ida não era tão ruim, exceto pela boca que começaria logo a sangrar, mas a volta era excruciante. Frequentemente a carga de capim que o fazendeiro carregava era enorme, muito mais do que devia ser saudável carregar. Mas se demorasse para começar a puxar, lá vinha o chicote... Que não era tão ruim àquela altura, comparada a boca ferida e ao sol escaldante.

                No almoço, comia apenas a grama seca do campo e bebia a água barrenta do córrego que passava ali perto. Depois, eram horas e mais horas puxando o arado para preparar o campo para plantação do fazendeiro. Apenas quando chegava que retirava o doloroso bridão, o fazendeiro lhe banhava com água gelada para lavar o suor do dia e que podia comer o seu jantar, ração canina vencida e ocasionalmente mofada. Na verdade, ele achava que tinham um gosto melhor quando estava mofada.

                Mas tudo mudou no dia que o carro passou em frente ao campo. Ele pôde ver a garotinha com o rosto pregado ao vidro e gritando alguma coisa para os pais. O burrico não entendeu o porquê da rotina ser quebrada quando o pai veio falar com o fazendeiro, do mesmo jeito que não entendeu quando foi retirado dos arreios e levado para uma carroça, ao lado de um enorme alazão.

                - Pronde tamo indo? – Perguntou para o cavalo, que apenas bufou em resposta.

                Foi uma viagem estranha. O burrico não estava acostumado a ir a qualquer lugar se não fosse andando e puxando uma carga pesada. O alazão seguiu em silêncio estoico e se recusou a responder qualquer uma das perguntas que fez. Da mesma maneira não entendeu quando foi colocado em uma baia de alvenaria, ao invés de uma de pau a pique, com água limpa e ração de qualidade. E entendeu menos ainda quando a menininha o levou para passear. Passear! Ainda mais com ela pendurada ao pescoço, escovando seu pelo e lhe oferendo cenouras. Cenouras!!!

                E os dias seguiram da mesma forma, passeando e brincando com a garotinha. Em pouco tempo ganhou peso, as feridas na boca sararam (finalmente pode sentir o gosto normal da comida!) e recebeu ferraduras. Ele nem mesmo havia percebido que não deveria sentir dores nos cascos, de tanto tempo que as tinha! Em pouco tempo era um burrico saudável, e que passava os dias simplesmente se divertindo com a garotinha. Demorou um pouco mais para perceber que estava realmente feliz. E feliz com a garotinha.

                O burrico percebeu o quanto se importava com ela no dia em que a garotinha montava no alazão, o mesmo que foi trazido com ele, tanto tempo atrás. Eles estavam treinando para que o alazão pulasse cercas em um percurso. Idiota, na opinião do burrico. Ele não via sentido naquilo tudo. Pra que pular cercas? Fizeram as porteiras pra isso, não é? Tudo que você precisa é esperar um humano abri-la.

                Eis que no meio do devaneio sobre cercas, o burrico vê o alazão escramuçar com a garotinha em cima. A coitada gritava e chorava, se agarrando ao pescoço do alazão com toda a força. O burrico não soube como, mas em pouco tempo estava em frente ao alazão, erguendo-se nas patas traseiras e gritou:

                - Ocê tá doido?! Qué derrubá a minina?! Para agora!!!

                Alguma coisa na voz do burrico fez o alazão parar na mesma hora, bestificado. Na certa, ninguém nunca havia falado com ele daquela maneira, quanto mais gritar com ele. Foi o momento que o burrico precisou para tirar a garotinha da sela, segurando-a cuidadosamente com os dentes pelo cinto. Na mesma hora ela se agarrou em seu pescoço, chorando copiosamente.

                - Tá tudo bem agora... Pode ficá tranquila, minina. Eu vô protegê ocê...

                E foi assim que ambos tornaram-se inseparáveis. O burrico passou a dormir na porta da casa da garotinha, independente de chuva ou qualquer tempo ruim. No momento que ela saia de casa, lá estava ele. Quando voltava para casa, ele que a levava. Nunca mais nenhum cavalo se comportou mal sob o olhar atento do burrico. Apenas quando ela ia para a escola que se separavam, mas lá estava ele, esperando pacientemente próximo ao portão.

                Não deixou transparecer nem mesmo quando ficou doente. Talvez por conta das chuvas que tomou durante o verão, talvez por conta de todos os mosquitos que o picavam durante a noite por dormir ao relento. De qualquer forma, estava doente, mas não seria isso que iria afastá-lo da garotinha. Nem mesmo quando piorou deixou de brincar com ela como se nada tivesse acontecido. Eis que um dia foi dormir, pensando em como a garotinha iria se sentir pela manhã, quando ele não acordasse para brincar com ela...

                A garotinha chorou por dias, depois da morte do burrico. Não comia, não saia do quarto. O burrico foi enterrado no jardim, no mesmo dia que morreu. Mas, de alguma forma, ele sabia o que iria acontecer e ainda assim queria estar com a garotinha que o havia tirado de uma vida sofrida e lhe fez feliz.

E ninguém soube explicar, nem mesmo a garotinha, como a pele do burrico apareceu no quarto dela uma manhã, cobrindo-a. Protegendo-a.

A Garotinha amarrou mais firmemente a pele do burrico ao redor dos ombros, procurando proteção do frio do vento noturno. Bocejou, finalmente cedendo ao sono que se instalara desde o meio da história.

                - E assim terminamos por hoje, crianças. – E passou a distribuir as frutinhas colhidas dos chifres para os presentes. – Comam, comam.

                Aquele ritual já fazia parte da leitura de histórias, e sabiam que as frutinhas trariam bons sonhos. Comeram, e pouco a pouco, um sono reconfortante chegava para todos. A Leitora sorriu e fechou o livro, vendo cada uma de suas crianças se recolher para a noite.

                - Boa noite, crianças. Durmam bem, e até amanhã...

O Bode


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