16 de julho de 2013
Quem Conta um Conto (Julho): O Conto da Lulu || Estática
Ela respirou fundo, fechando a porta do trailer atrás de si, observando o movimento ao seu redor, o mundo enfim parecendo voltar ao normal, depois de quase duas semanas de caos, angústia e desconfiança.
Agatha deu um meio sorriso consigo mesma ao perceber as duas figuras sentadas mais à frente, lado a lado junto às escadas que levavam a outro trailer. Quase dançando, ela se aproximou dos amigos, inclinando a cabeça para Arthur quando ele acenou para ela.
- Alguma novidade?
Ela parou diante dos dois, colocando as mãos na cintura do corpete que voltava a usar pela primeira vez desde que aquele pesadelo começara, pronta para jogar por cima o resto da fantasia e subir no trapézio.
Edgar levantou os olhos de sua pintura – o rosto e os braços estavam quase prontos, e ele apenas parecia aplicar alguns retoques, as figuras geométricas em seu corpo em contraste com as cicatrizes e tatuagens no torso de Arthur.
Ele deu um meio sorriso para ela, voltando o olhar para Arthur, que deu de ombros.
- Parece que a polícia está achando que foi... – ele coçou o nariz, cruzando os braços, as tatuagens remanescentes de sua época na marinha dilatando-se com a flexão dos músculos – Descobriram uma destilaria clandestina no trailer do Raymond. A polícia acha que pode ter sido algum rival que não gosta de competição.
Com cuidado, sem deixar de amparar a moça, ele se ergueu, observando o que o outro amigo fizera ao mágico. Segurando o rosto da trapezista contra seu pescoço para impedi-la de ver o espetáculo, ele tentou analisar a situação o mais racionalmente possível, ainda que seu próprio sangue ainda fervesse de raiva.
Ele não estava arrependido por não ter impedido o outro, por mais complicada que a situação pudesse ficar para eles. Não, ele não estava arrependido de ver o rosto do outro homem uma massa de sangue e hematomas, quase irreconhecível pela brutalidade dos punhos do domador.
- Eu tenho um plano.
- Você está querendo dizer que Raymond foi morto pela máfia? – Agatha retorquiu, inclinando ligeiramente a cabeça, deixando que alguns cachos dourados rolassem por seu rosto.
- É a hipótese com que eles estão trabalhando. – Arthur respondeu – Eu conversei com o detetive que está responsável pelo caso e ele não parece ter muitas dúvidas sobre o assunto... nem muita esperança de conseguir pegar o sujeito que fez aquilo com o Ray.
- Como você conseguiu falar com o cara? – Edgar questionou, brincando com o pincel por entre os dedos.
- Ele esteve na marinha antes. – Arthur retrucou sucintamente, desviando o olhar.
Agatha e Edgar se entreolharam, sem responder ao comentário do companheiro. Qualquer coisa que dissesse respeito aos anos de serviço de Arthur durante a guerra era sempre algo como um campo minado que eles preferiam não tocar se pudessem.
Ele sorriu quase ferozmente quando o outro finalmente deixou de se debater entre seus socos, satisfeito com o gosto de sangue do lábio cortado, a ardência dos nós dos dedos, a pele arranhada pela força e fricção, o latejar furioso em seus ouvidos, quase obliterando outros nos ao seu redor – lágrimas e gemidos baixinhos misturados com platitudes murmuradas numa tentativa de conforto.
Respirou fundo, tentando clarear a mente da cortina vermelha de fúria que tinha baixado desde que ouvira os primeiros pedidos desesperados de socorro da trapezista. Ele observou seu trabalho ao mesmo tempo em que se levantava. Teria algumas cicatrizes novas para se somar às muitas que já colecionara na guerra ou no picadeiro, domando feras.
- Ele está morto.
- Faz um certo sentido a ideia de que Ray fosse um contrabandista de álcool. – Edgar observou por fim, estendendo uma perna para frente, sua pose mais relaxada enquanto conjecturavam o que acontecera ao colega – Viajando com o circo, fora das estradas principais, apresentando-se em cidades pequenas ou subúrbios... é uma boa forma de encobrir esse tipo de atividade.
- Faria sentido se ele estivesse trabalhando para alguém. – Agatha retorquiu – Mas qualquer um que conhecesse a inteligência de Ray questionaria sua capacidade para montar uma destilaria... e mantê-la escondida de todo mundo por todo esse tempo.
- Não é preciso ser um gênio para saber como fermentar um caldo bruto de cevada ou coisa parecida. – Edgar deu um meio sorriso torto.
- Mas é preciso alguma inteligência para perceber que viajar com o circo é um bom disfarce para esse tipo de atividade. – Arthur finalmente voltou à conversa, fazendo um aceno com a cabeça para o amigo – De toda forma, não adianta muito ficarmos imaginando se Ray tinha ou não o cérebro para montar uma operação como essa. A polícia que decida e se eles conseguirem algum resultado com isso, bom para eles, melhor para todo mundo, que podemos voltar à vida normal e continuar com a turnê.
Agatha assentiu, distraída, massageando os pulsos, tomando cuidado em não borrar a maquiagem que tão meticulosamente aplicara durante quase toda a manhã.
Ela tentou desesperadamente se debater, o bafo de álcool em seu rosto enquanto ele tentava alcançar seus lábios, sentindo a pressão que ele fazia em seus pulsos já dormentes, imaginando quanto mais conseguiria resistir antes que fosse tarde demais, as lágrimas escorrendo por seu rosto. Sua garganta queimava de quando ele a enforcara para impedi-la de gritar e o ombro irradiava pontadas de dor de quando ele primeiro a segurara, dobrando o braço para trás com violência.
Repentinamente, o mundo tornou-se maior do que apenas o rosto vermelho e suado do maldito mágico e ela conseguiu respirar de verdade pela primeira vez desde que ele a encurralara junto ao rio em que o circo tinha decidido acampar aquela noite.
Alguém a ajudou a se sentar, embora ela não pudesse reconhecer o vulto a sua frente, borrado pelas lágrimas. Ela podia ouvir o praguejar do mágico, o som de socos furiosos conectando-se com pele, ossos e carne e o murmúrio reconfortante da pessoa que a amparava.
- Não é como se alguém fosse sentir falta do Ray também. – Arthur se levantou, espreguiçando-se, ao mesmo tempo em que seu olhar avaliava cuidadosamente a figura da trapezista – Não é verdade? – ele completou num quase murmúrio.
A moça piscou os olhos, assentindo quase imperceptivelmente.
- Não, não vai.
A Coruja
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