10 de fevereiro de 2012

Na sua estante: trilha de fundo, Bach





#106: Trilha de Fundo, Bach
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Primeira semana de aulas. Novo período, novas cadeiras, mais carga horária e o triplo de trabalho. Ela estava empolgada com o potencial daquele semestre – mas, bem, era apenas a primeira semana, tinham visto só teoria até agora e seus dedos quase coçavam, pedindo para deslizar sobre as teclas do piano.

Primeiro final de semana após o começo das aulas. Ela estava grata por aquilo. Passaria os próximos dois dias em cima da banqueta, tocando, tocando, tocando...

Sofia entrecerrou os olhos enquanto se deixava perder por um momento na canção que quase ribombava nos fones, o solo do cello num crescendo pouco antes da orquestra entrar. A cada nota, ela inspirava fundo, expirando pela boca, sentindo o coração acelerar, pulsando em seus ouvidos quase que no mesmo ritmo da música.

Ao seu redor, outros alunos passavam apressados, bolinhas de papel voavam, ombros colidiam apressados. Em sua cabeça, contudo, ela estava só, alheia a todo aquele caos, imersa em sua melodia.

Ela não se deu conta de quando ele começou a segui-la, repetindo seu nome duas, três quatro vezes, nervoso demais para aumentar a voz e chamar a atenção das pessoas em torno deles, ao mesmo tempo em que se perguntava como ela podia estar tão absolutamente longe numa situação como aquela: um corredor lotado, na primeira sexta-feira do ano letivo.

Foi já quase no estacionamento, fora da confusão da saída das aulas que ele tomou coragem suficiente para se adiantar e puxar o fio esquerdo do fone de ouvido, a música explodindo suficientemente alta para ser escutada agora que estavam sozinhos.

Sofia se voltou surpresa, franzindo o cenho, pronta para passar uma descompostura em quem quer que fosse o idiota que interrompera seu deleite – para então empalidecer visivelmente ao reconhecê-lo.

- O que você está fazendo aqui? – ela perguntou de forma abrupta.

Luís soltou algo como um suspiro.

- Eu segui você.

Sofia arqueou a sobrancelha.

- Você me seguiu. – ela repetiu, cruzando os braços, adotando, inconscientemente, uma atitude defensiva – Eu não tenho muita certeza como devo me sentir sobre isso, exceto pela parte em que acho que eu deveria começar a gritar.

Luís arregalou os olhos.

- Por que você deveria começar a gritar?

- Você está de brincadeira comigo! – Sofia ergueu os olhos para o céu – E estava sendo um dia tão bom também...

- Sofia, o quê... – ele começou, estendendo uma mão na direção dela.

- Não-me-to-que. – ela ordenou, enunciando cada sílaba por entre dentes, dando um passo para trás – Eu não gosto de você, eu não confio em você, eu não vou com a sua cara e eu definitivamente não quero ter nada a ver contigo. Passar bem.

Ela girou nos calcanhares, mas ele foi mais rápido, pondo-se à frente dela e erguendo os braços.

- Olha, calma, ok? Eu não vou morder você se você só... – ele revirou os olhos para si mesmo quando ela praticamente pulou pra trás – Certo, péssima analogia. Mas se você me escutar só por alguns minutos, eu só queria, eu só quero... ah, meu deus, eu só quero pedirdesculpasporaquelanoite. – Luís terminou num fôlego só

Sofia abriu e fechou a boca duas vezes, tentando fazer sentido do que acabara de escutar.

- Você... você está pedindo desculpas?

- Sim! – ele respirou aliviado – Eu estava fora de mim àquela noite, o que você tinha me dito antes...

- AGORA A CULPA É MINHA? – Sofia estava para perder o controle.

- NÃO! Não foi isso que eu quis dizer! Eu só... Deus... – Luís fechou os olhos por um instante – Eu não fiz por querer, certo? Eu tinha bebido e não tinha plena consciência do que estava fazendo e estava escuro e você... você estava com a fantasia da Beatriz! Eu achei que você fosse ela! Não que... não que você não seja adorável por si mesma, mas eu não estava... eu não sabia... eu apenas não...

Sofia se forçou a prestar atenção no que estava escutando, tentando ignorar a forma obviamente convoluta com que Luís tentava se explicar. Ela o observou abaixar a cabeça, chutando uma pedrinha aos seus pés.

- Eu só... eu sinto muito. – ele terminou, desanimado.

A musicista respirou fundo, percebendo a trilha sonora de fundo cortesia de seus fones: Cello Suite No. 1 de Bach.

Como, exatamente, ela tinha ido parar naquela posição? Uma semana antes estivera ameaçando o primo, agora tinha de consolar um muito obviamente arrasado Luís (embora ele ainda nem soubesse da parte em que Bia estava gostando de outro...) porque ele a beijara por engano (ela decidiria se sentia-se grata ou insultada por aquele detalhe). Ela tinha alguma espécie de vocação para mártir ou conselheira amorosa ou ainda protetora de Beatriz. Ou, pelo menos, dos corações partidos que a amiga deixava para trás sem sequer se tocar do que tinha acontecido.

- Vamos para a biblioteca. – ela respondeu por fim – Acho que precisamos conversar no final das contas...




A Coruja


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