27 de junho de 2011
Clube do Livro: História Universal da Infâmia
Esse mês no Clube do Livro, continuando com nossa viagem de volta ao mundo, paramos na América Latina, mas especificamente na Argentina do incomparável Jorge Luís Borges.Os cavalos roubados em um Estado e vendidos em outro foram apenas uma digressão na carreira delinqüente de Morell, porém prefiguraram o método que agora lhe assegura seu lugar privilegiado em uma História Universal da Infâmia. Esse método é único, não só pelas circunstâncias sui generis que o determinaram, como também pela abjeção que requer, pelo fatal manejo da esperança e pelo desenvolvimento gradual, semelhante à atroz evolução de um pesadelo.
A1 Capone e Bugs Moran operam com ilustres capitais e com metralhadoras servis numa grande cidade, porém seu negócio é vulgar. Disputam-se um monopólio, e isso é tudo... Quanto a número de homens, Morell chegou a comandar uns mil, todos juramentados. Duzentos integravam o Alto Conselho, e este promulgava as ordens que os restantes oitocentos cumpriam. O risco recaía nos subalternos. Em caso de rebelião, eram entregues à Justiça ou arrojados à correnteza do rio de águas pesadas, com uma pedra presa nos pés. Eram, com freqüência, mulatos. Sua facinorosa missão era a seguinte:
Percorriam – com algum momentâneo luxo de anéis, para inspirar respeito – as vastas plantações do Sul. Escolhiam um negro infeliz e propunham-lhe a liberdade. Diziam-lhe que fugisse de seu senhor, para ser vendido por eles uma segunda vez, em alguma propriedade distante. Dar-lhe-iam então uma percentagem do preço de sua venda e lhe facultariam a próxima evasão. Iriam conduzi-lo, afinal, a um Estado abolicionista. Dinheiro e liberdade, dólares de prata bem sonantes e liberdade, que maior tentação podiam oferecer-lhes? O escravo atrevia-se a sua primeira fuga.
O caminho natural era o rio. Uma canoa, o porão de um vapor, uma barcaça, uma balsa grande como o céu, tendo na extremidade uma cabana ou tendas de lona muito altas; o lugar não importava, importava apenas saber-se em movimento e seguro sobre o infatigável rio... Vendiam-no em outra plantação. Fugia outra vez para os canaviais ou barrancos. Então, os terríveis benfeitores (dos quais já começava a desconfiar) aduziam gastos obscuros e declaravam que tinham de vendê-lo uma última vez. Ao regressar dariam a ele a percentagem das duas vendas e a liberdade. O homem deixava-se vender, trabalhava algum tempo e desafiava na última fuga o risco dos cães de caça e dos açoites. Regressava com sangue, com suor, com desespero e com sono.
Jorge Luís Borges – História Universal da Infâmia
Adoro Borges. Dos contistas, ele é um dos meus favoritos – Borges consegue conjugar cotidiano e absurdo e fazer daquilo que temos no dia-a-dia algo a ser visto sempre com novos olhos. É também um autor estilo Barsa, que nos espanta com sua cultura e nos deixa curiosos em buscar suas fontes – o que me faz pensar em Eco e Manguel, dois outros autores que sempre me dão enorme prazer e me forçam a estudar e pesquisar.
O História Universal da Infâmia segue essa tradição – embora esteja aquém das obras mais consistentes de Borges. Não é, exatamente, um livro de contos, mas uma coletânea de perfis curiosos e me fez pensar constantemente em um álbum de figurinhas.
Meus infames favoritos: Lazarus Morell, que aparece em Life on the Mississippi (que ganhei do Dé no amigo secreto do ano passado), Bogle e o mestre-de-cerimônias Kotsuké no Suké.
Lazarus Morell era um empresário de visão. Nos tempos da escravidão nos Estados Unidos, ele e seu bando prometiam liberdade e dinheiro para os escravos dentro de um esquema muito simples: os escravos fugiam de sua fazenda original, se deixavam vender pelo bando de Lazarus que, posteriormente, entregaria o dinheiro dessa venda ao escravo uma vez que ele voltasse a fugir.
O mesmo escravo poderia ser vendido e revendido várias vezes até pensar com seus botões que já tinha feito um bom dinheiro, ir atrás de Lazarus para acertar as contas e amanhecer no fundo do rio – o que proporcionava uma excelente campanha de marketing já que vendo que seus companheiros fugidos não voltavam, outros escravos acreditariam na farsa e também se deixariam vender após fugir.
Bogle, o companheiro de Tom Castro, é, para mim, o verdadeiro infame do segundo conto, uma vez que grande mentor da troca de identidades. Tom Castro, contudo, merece o prêmio óleo de peroba, porque, vou te contar, pense numa cara de pau você sair por aí depois de preso por identidade falsa a contar todo o esquema, mudando o final a cada vez...
A história do mestre-de-cerimônias, por sua vez, é bem pitoresca: por uma falha de protocolo, um grande senhor é morto e seus samurais a princípio, comportam-se como se não se importassem, atraindo assim a desonra. Na verdade, tudo não passava de um estratagema para fazer com que o tal mestre-de-cerimônias culpado baixasse a guarda, de forma que os samurais podem vingar seu senhor e em seguida cometer suicídio ritual para poder segui-lo.
Borges viaja por todo o mundo com sua galeria de infames – dos rincões da América Latina aos mares da China, colorindo cada uma dessas passagens com tintas tão fortes que nos sentimos também transportados a cada virada de página.
E pensar que está é considerada uma obra menor do gênio argentino... aí você imagina o que é ler uma de suas obras-primas...
A Coruja
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