27 de fevereiro de 2017
Censura e Empatia: Sobre Alertas de Gatilhos e Leitores de Sensibilidade
Faz bastante tempo que quero escrever sobre esse tema, desde que li pela primeira vez o prólogo de Gaiman para Trigger Warning - cá no Brasil traduzido como Alerta de Risco. Certa vez, entrei num debate com alguns amigos sobre o assunto, sobre como a ideia de ter livros trazendo na capa um disclaimer sobre o seu conteúdo parecia com algo saído de uma distopia, um claro primeiro passo rumo à censura. A conversa acabou sendo deixada de lado antes que pudéssemos refletir muito mais sobre o caso, até que, recentemente, ele me voltou à mente quando encontrei um artigo sobre “sensitivity readers” - algo que poderíamos traduzir como leitores de sensibilidade - artigo esse que acompanhava vários comentários exasperados sobre como o politicamente correto chegou “para estragar a festa também na literatura”.
Foi-me impossível não ligar a discussão aos resmungos de Ray Bradbury no posfácio de Fahrenheit 451, no qual ele reclama de cartas que recebia de leitores dizendo que ele deveria reescrever Crônicas Marcianas para incluir mais papéis femininos ou mudar a forma como retratava os negros na história - essa última sugestão partindo tanto de negros que achavam que seus personagens tinham sido muito submissos como de brancos que reclamavam que ele fora preconceituoso com os brancos:
Embora eu concorde em parte com ele sobre como você não pode simplesmente ditar a um autor como ele deve escrever isso e aquilo - você não pode censurar nem apagar o passado e é necessário compreender o contexto histórico em que uma obra foi escrita (vide a polêmica cá no Brasil acerca da obra de Monteiro Lobato, acusando-o de racista) - dizer que as minorias não se metam e escrevam suas próprias histórias em vez de dar opinião no que os outros escrevem é tapar os olhos para o fato de que essas mesmas minorias têm muito mais dificuldade em serem publicadas.“Pois este é um mundo louco e ficará mais louco se permitirmos que as minorias - sejam elas de anões ou gigantes, orangotangos ou golfinhos, adeptos de ogivas nucleares ou de conversações aquáticas, pró-computarologistas ou neo-ludditas, débeis mentais ou sábios - interfiram na estética. O mundo real é o terreno em que todo e qualquer grupo formula ou revoga leis como num grande jogo. Mas a ponta do nariz do meu livro ou dos meus contos ou poemas é onde seus direitos terminam e meus imperativos territoriais começam, mandam e comandam. Se os mórmons não gostam das minhas peças, eles que escrevam as deles. Se os irlandeses detestam meus contos passados em Dublin, eles que aluguem máquinas de escrever.”
A maior parte da literatura que consumimos é inglesa ou americana, escrita por homens brancos hetero - e nesse bolo temos autores muito bons, vários medianos e outros tantos medíocres. Já quando um autor negro ou asiático ou gay ou qualquer outra variante do tema consegue um grande contrato de publicação, costuma ser um escritor de talento tão excepcional que é impossível ignorá-lo; autores que, com suas palavras, ultrapassam todas as barreiras culturais para serem lidos na língua inglesa - e a partir daí, traduzidos para outros idiomas. Chimamanda Ngozi, Haruki Murakami e Salman Rushdie são os nomes que me vêm imediatamente à mente quando penso nisso, mas há vários outros que poderíamos citar.
Isso não é culpa do leitor; na verdade, o leitor na maior parte das vezes não está particularmente preocupado com a cara ou a história de vida do escritor, escolhendo livros pela capa ou pela sinopse ou por indicação de outras pessoas. Exceto, claro, quando eles evitam automaticamente livros com autoras mulheres por achar que é coisa de mulherzinha - motivo pelo qual muitas autoras usam pseudônimos ou iniciais quando não são do gênero romance - que é outro preconceito francamente cansativo, mas, enfim… O fato é que leitores não vão para a livraria buscando livros que entrem numa cota de diversidade, mas sim, histórias que lhes chamem atenção, que lhes digam algo.
O que eles encontram lá são as histórias filtradas pelas escolhas dos editores. E esses editores vão escolher histórias que apelam para os sentimentos da maioria e não para as experiências que eles acreditam ser próprias apenas das minorias. Eles querem que mais livros sejam vendidos, então vão ficar na zona de conforto do que sabem que dá certo. É lógica de mercado.
Se, por um lado, nada disso possa parecer importante quando estamos pensando na literatura como entretenimento, por outro nós muitas vezes conhecemos mais do mundo através dos livros. Se nossas leituras são repletas de estereótipos, acabamos levando essas opiniões para a vida real, especialmente quando não temos contato direto com a situação. Um exemplo claro (e talvez um tanto extremo, mas vá lá...): todo mundo tem uma opinião sobre a crise dos refugiados, ainda que esteja a um oceano de distância e nunca tenha visto de perto uma pessoa de ascendência árabe - e muitas vezes, essa opinião está fortemente ligada a um estereótipo de que todo mundo que vive no Oriente Médio é terrorista.
Lembro de ter conversado sobre o assunto com uma amiga americana que é professora aqui no Brasil e cuja família é de uma região ligada aos conservadores. Nas palavras dela, muitas das pessoas com quem ela convivia eram preconceituosas, e um preconceito que se fundamentava na ignorância: gente que nunca viajava, que nunca saía de sua zona de conforto para conhecer coisas diferentes, que não estava interessada em ouvir opiniões divergentes da sua. Elas nunca se preocupavam em tentar descobrir ou entender sobre o Outro, o Estrangeiro, o Estranho - e sem compreensão, é claro, nasce a intolerância e o medo.
Ora, uma das mais importantes funções da literatura é nos colocar no lugar do Outro: ela nos ensina empatia. Uma história bem contada ecoa, cria ondas, ideias; têm um impacto na vida das pessoas que as leem. E é por tudo isso que entendo a ideia de leitores de sensibilidade não como uma espécie de censura, mas como uma ferramenta valiosa. Um escritor não necessariamente precisa ter experiência direta sobre aquilo que está escrevendo (do contrário, provavelmente não existiriam gêneros como fantasia e ficção científica), mas o mínimo que se espera nesses casos é um pouco de pesquisa - e conversar, pedir a opinião de pessoas que têm esse conhecimento é simplesmente uma questão de lógica. Afinal, o escritor quer que seu leitor se envolva com a história, que ele se emocione, que se identifique, que torça por seus personagens e quanto mais verossímil nas emoções que escreve, mais ele conseguirá tal efeito.
Claro que esse tipo de auxílio deve ser uma escolha do autor e não uma imposição editorial, mas não vejo porque um escritor se furtaria a um feedback que só viria a somar em sua obra. Não é muito diferente do que se faz no cinema, com apresentação de cortes dos filmes a plateias teste antes da edição final. É claro que cada pessoa traz sua interpretação a uma história, dependendo de suas experiências pessoais; não existe realmente um leitor ideal absoluto - o próprio autor pode às vezes nem perceber conscientemente as ligações que faz em sua escrita -, mas isso não significa que você não possa ir do individual para o universal.
Dito tudo isso, gostaria de retornar à questão dos gatilhos, com que comecei esse artigo, e que talvez seja ainda mais controversa que os sensitivity readers.
A ideia de pegar um livro e encontrar na capa um alerta sobre seu conteúdo a princípio não parece apenas estranha: parece também um bom ponto de partida para explicar governos ditatoriais em romances distópicos. Uma tarja preta avisando “este livro contém cenas de sexo e violência” seria carta branca para associações de pais conservadores ou congregações religiosas exigirem a retirada dos títulos das bibliotecas escolares - uma ação que esvaziaria mais da metade das estantes, incluindo praticamente todos os cânones literários. Considerando, contudo, que mesmo sem qualquer alerta, esses grupos já fazem suas campanhas de queima de livros, ao ponto de termos uma campanha anual contra o banimento de livros em bibliotecas, a verdade é que não mudaria muita coisa.
Para além da questão da censura, há o fato de que esse tipo de aviso poderia servir como spoiler, quebrando uma surpresa necessária à leitura. Ou então afastar alguém que não deseja sair da sua zona de conforto - e que até poderia ter gostado do livro, se tivesse dado uma chance a ele, mas fugiu diante da possibilidade de um assunto que não lhe agradava.
Mas aí temos de lembrar mais uma vez que a literatura mexe com emoção, com empatia - e isso vem tanto para o bem quanto para o mal. Não se trata simplesmente de evitar ofender alguém que é facilmente provocado. Não é difícil pensar em situações em que uma determinada história pode servir como gatilho para reviver uma situação traumática - como um soldado que volta de uma zona de guerra e tem uma crise de pânico ao ouvir fogos de artifício. Histórias têm o poder de nos transportar para o mundo que elas descrevem. O que acontece então quando uma pessoa que viveu uma violência se encontra, sem qualquer preparação ou aviso, jogado de volta numa experiência se se assemelha a seu próprio trauma?
Eu não tenho nenhum trauma pessoal, mas histórias que contém abuso sexual infantil costumam me embrulhar o estômago de forma literal e eu passo ao largo delas. Já abandonei livros ao encontrar cenas que pareciam ir nessa direção. Se sinto essa aversão sem ter experiência direta, não posso sequer imaginar o que é para alguém que de fato sofreu essa violência ser surpreendido num livro com uma cena que lhe traz de forma visceral a memória do trauma.
Acredito que confrontar seus medos seja importante para essas pessoas, mas isso deve ser escolha delas. Ter o poder de decisão, é algo essencial, considerando que o evento traumático é muitas vezes representado pela falta de controle sobre a situação. Não sou psicóloga, mas acho, de novo, que seja uma questão de lógica dar à pessoa vulnerável a escolha de se confrontar ou não com algo que pode lhe fazer reviver o choque. Sendo assim, quem somos nós para julgar se alguém precisa ser avisado da possibilidade de gatilhos, especialmente num produto que ela escolheu para seu prazer e entretenimento? No final das contas, não se trata de uma questão de censura, de politicamente correto, mas sim de respeito ao próximo e de saúde mental. Se você não faz questão desse aviso, ignore, pinte por cima, coloque um adesivo em cima. Mas não queira ditar os que outras pessoas precisam ou não precisam.
Filmes, séries de TV e novelas, têm classificação etária e costumam vir com um aviso sobre o conteúdo. Pode não ser um sistema perfeito, mas funciona. Porque não utilizar nos livros e outras publicações também? Não precisa ser o fim do mundo, não é necessário vir o livro fechado com uma tarja como se fosse uma revista pornô; uma frase na contracapa ou na folha de rosto é o suficiente.
Enfim, essas são questões fascinantes e controversas, que merecem reflexão. O que lemos tem impacto no que somos e na nossa forma de ver o mundo e isso cria uma responsabilidade para escritores e editores - a responsabilidade de nos dar diversidade, autenticidade, todos os lados possíveis de um argumento e não um único ponto de vista. Reduzir tudo isso a ‘ditadura do politicamente correto’ não é apenas tolice, mas egoísmo. Se usamos esse argumento para perpetuação de velhos preconceitos é porque não estamos lendo livros o suficiente. Mais livros, mais diversidade significa mais empatia. Significa entender que não estamos sozinhos no mundo e que outras pessoas têm suas próprias experiências e gatilhos.
No final, é tudo uma questão de lógica.
A Coruja
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Sobre
Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
É material para reflexão mesmo... Muito interessante seu artigo.
ResponderExcluirObrigada!
Excluirque artigo maravilhoso... me senti compreendida como leitora e, ao mesmo tempo, cutucada como escritora. excelentes reflexões.
ResponderExcluirQue bom que gostou, Bruna! São coisas para se pensar mesmo, para a gente sair do lugar comum de pensar que toda ação positiva de diversidade e criação de espaços seguros para pessoas vulneráveis imposições de politicamente correto... Enquanto ia escrevendo esse artigo, li várias outras opiniões, tentei ver todos os lados para só então formar minha opinião - motivo pelo qual passei muito tempo ruminando para conseguir escrever... e ainda acho que há muito sobre o que se pensar dentro do assunto é muito que se debater...
ExcluirLulu, atualmente vejo a classificação indicativa listando os assuntos que serão tocados nas obras da TV aberta, não entendo como isso poderia ser diferente dos TW - Trigger Warnings que avisam antes de tudo que um texto pode conter algum assunto mais delicado.
ResponderExcluirComo você mesma citou, isso pode vir a ser relevante quando algum assunto como pedofilia ou até racismo é tratado numa obra.
A pura classificação etária não seria um spoiler como a classificação indicativa que descrevesse o tema, mas também poderia trazer algumas situações no mínimo curiosas, como se ver contos de fadas indicados para maiores de 10 anos ou mais ou ver livros - em teoria - livres e indicados para diversos públicos, como os textos de Shakespeare ou a própria Bíblia virem com avisos de +18 nas capas.
Acabou que fiquei curioso sobre o assunto e resolvi pesquisar direto da fonte quais os temas abordados em cada classificação, recomendo a todos que quiserem saber que também vejam no PDF publicado pelo próprio ministério da justiça, disponível aqui: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/classificacao/guia-pratico
Acho que tanto a classificação etária quanto os alertas de gatilho servem mais como uma recomendação/aviso que como obrigação. Para livros, creio que classificação etária não funcionaria tão bem, seria mais fácil simplesmente dizer que o livro possui conteúdo sensível. Mais até que programas de TV ou cinema, os livros são uma escolha do leitor - você não tem como 'passar' um livro num horário mais tardio ou solicitar que a pessoa apresente carteira para ver a idade antes de deixar o pirralho sair passeando pela biblioteca. Os alertas não funcionariam (num mundo perfeito, pelo menos) como censura, mas sim como liberdade de escolha do leitor para saber se está ou não pronto para lidar com aquele conteúdo.
ExcluirUm artigo incômodo, mas muito necessário. Eu também acredito no poder a literatura e dos livros para, a partir de uma imersão, ampliar nossa visão de mundo e nos tornar mais empáticos. Também acho que a sinalização na capa pode ser boa ou ruim, dependendo do que a obra reserva para nós, leitores.
ResponderExcluirComo mediador de leitura e escritor, sou a favor da liberdade da escrita e da leitura. Porém, o argumento de não expor a pessoa ao trauma é contundente. Então, de fato essa é uma premissa válida.
Já como leitor, eu gosto de ser surpreendido. Procuro não saber sobre o conteúdo do livro antes de lê-lo, pois acredito que as surpresas e reviravoltas fazem parte da experiência estética de fruição. Porém, sou inclinado a concordar contigo sobre a questão da classificação dos livros. Falo de uma inclinação e não uma certeza. Caramba, como é uma questão complicada!
Das experiências mais ricas que tive na infância foi justamente ter contato com livros adultos, que não seriam indicados para mim. Foi algo que expandiu meus horizontes e me fez mais crítico. Porém, a questão da preservação da pessoa contra gatilhos continua batendo bem forte em mim.
Enfim, não tenho ainda uma opinião formada quanto à classificação etária dos livros...
São questões realmente difíceis de fechar opinião, porque existe todo um contexto sobre elas e, para algumas, a minha experiência é de alguém que não é pessoalmente afetada pelo problema (por mais empatia que possamos ter, alguns traumas estão muito distantes da nossa compreensão e no cotidiano, deixamos passar batido).
ExcluirMas eu provavelmente teria escrito um ensaio muito diferente hoje, considerando as várias notícias sobre censura que têm aparecido (eu falei especificamente de Maus na newsletter do blog, porque fiquei muito puta da vida com aquela situação. Tem ele aqui: https://tinyletter.com/Coruja/letters/conversas-sobre-o-tempo-10-aquele-em-que-fazemos-muito-barulho-por-alguma-coisa)
Ah, sim, como você trabalha em biblioteca, com literatura infantil e tem a experiência de ler independente de classificações... acho que vais gostar desse ensaio aqui: https://owlsroof.blogspot.com/2020/06/dez-anos-em-dez-ensaios-segunda-estrela.html
Acabei de ler a newsletter e logo lerei o ensaio. Puxa, inclusive fui atrás do fio no Twitter e achei a questão muito enriquecedora.
Excluir