13 de maio de 2014

O Mundo Inteiro é um Palco – Parte II: “Somos feitos da mesma substância dos sonhos...”


"Somos feitos da mesma substância dos sonhos
e entre um sono e outro decorre a nossa curta existência."


- A Tempestade

Se me pedissem para apontar o dedo para o criador das comédias românticas com que hoje somos continuamente assaltados no cinema e sessões da tarde, eu não teria dúvidas em apontá-lo para o busto de Shakespeare. É óbvio que vieram outros antes dele, vez que seus plots normalmente se baseavam em histórias já existentes, mas o formato de uma boa comédia romântica pode ser encontrado integralmente nas comédias shakesperianas.

São histórias de encontros e desencontros, de falta de comunicação que acaba por criar situações tragicômicas, de amores que se escondem por trás de línguas ferinas, de troças (Ísis: Conhecia essa palavra, não...) e trocas de identidade.

Embora haja críticos que acreditem que Shakespeare começou sua carreira com a tragédia Tito Andrônico ou o drama histórico Vida e Morte do Rei João, a maioria concorda que sua primeira peça tenha sido uma comédia – talvez A Comédia dos Erros, A Megera Domada ou Os Dois Cavalheiros de Verona.

Ísis: Os dois cavaleiros de Verona tem relação com Romeu e Julieta? E, aliás, você mencionou antes que Romeu e Julieta foi uma das peças que se inspirou em fatos reais. Eu não duvido nada que essa história possa ter acontecido, porque não parece tão improvável (mesmo hoje), mas até que parte é verdadeira?

Lulu: Não, Os Dois Cavalheiros de Verona não tem nada a ver com Romeu e Julieta. Nada mesmo. E Romeu e Julieta não foi uma das peças inspiradas em fatos reais, mas num conto italiano escrito por Matteo Bandello.

Numa primeira fase, suas históricas cômicas convergem para o humor através do absurdo, e em especial, da absoluta irracionalidade do amor – e bons exemplos dessas duas vertentes são o Dogberry de Muito Barulho por Nada e Bottom de Sonho de Uma Noite de Verão.

O absurdo aqui aparece principalmente através de discursos repletos de neologismos – Shakespeare era famoso por inventar palavras quando não existiam vocábulos que representassem aquilo que ele queria e, sozinho, adicionou milhares de palavras novas à língua inglesa.

Ísis: Seriously?

Lulu: Sim, é sério. Quando ele queria dizer alguma coisa e não existia uma palavra para o conceito que ele queria trabalhar, ele simplesmente inventava a palavra.

Ísis: Isso eu não duvido. Eu não sou nenhum gênio e vivo fazendo isso... Fiquei surpresa pelo “milhares”...

O contraditório Dogberry, que se propõe o trabalho de guarda e por pura sorte acaba deitando as mãos sobre os cafajestes responsáveis pela ruína de Hero, é de uma servilitude arrogante e tão tolo que seus próprios cativos imploram para serem levados para a prisão real para não continuarem a ouvir seus discursos.

Já Bottom é um tolo cheio de si que revela em alguns momentos um profundo bom senso. Ele é tão filosófico que o fato de ter sua cabeça humana trocada por a de um burro não lhe provoca muito mais que algumas divagações. Sua figura grotesca ao lado da Rainha Titânia é quase tão absurda quanto seus próprios discursos e a visão que tem de si.

Não há nada mais confuso que o quadrilátero amoroso entre Helena, Demétrio, Lisandro e Hérmia, e eles são o exato retrato de como o amor/paixão é representado não apenas nas comédias, mas em praticamente todas as peças do bardo. Não existem regras por trás das escolhas amorosas – às vezes elas são simplesmente a admiração por uma figura de formas sedutoras; outras elas são o resultado de um filtro amoroso ou de cartas trocadas, da manipulação de príncipes ou fadas. De um momento para outro a mais intensa das paixões pode se transferir de um objeto para o outro sem quase dar tempo para a plateia respirar ou ainda, surgir entre personagens que até então se diziam odiar.

Isso quando o amor não é o amor à própria imagem, amor pelo amor ao amor, à idéia de amar, como a figura do Duque de Ilíria em Noite de Reis.

Se não bastassem as confusões criadas por essas trocas de amores, existem também as trocas de sexo.

Por lei, todas as partes femininas tinham de ser representadas por rapazes – o que gerava desconfiança dos puritanos, que por esse motivo acusavam o teatro, entre outros crimes, de ser um antro de sodomia. Shakespeare usou e abusou do efeito da confusão de gêneros fazendo suas personagens femininas disfarçarem-se constantemente de rapazes – Viola, na já citada Noite de Reis, Portia de O Mercador de Veneza, Celia e Rosalinda em Como Gostais entre tantas outras – criando a atordoante situação de um garoto que representa uma moça interpretando um garoto.

Ísis: Tente dizer isso rapidamente três vezes seguidas... e depois tente fazer esse papel... >.< 

Em alguns casos, como no de Viola, há até que se questionar se existe realmente necessidade da moça trocar as calças pelo vestido e se revelar uma moça para assim conquistar as atenções do maluco do Duque... Já Como Gostais marca o início de uma mudança no estilo de Shakespeare... ou melhor seria dizer que ela é uma peça sui generis entre dois extremos. É um romance pastoril em que quase não existe ação, e ao mesmo tempo é considerada a mais inspirada de todas as grandes comédias do dramaturgo.

Minha primeira leitura de Como Gostais foi bem morna, e eu tinha a impressão de que Orlando era um tolinho bem intencionado que não estava nem de longe à altura de Rosalinda. Aí eu folheei uma edição em inglês da peça, com marcações para a interpretação dos atores (coisas que às vezes é ignorada em traduções) e descobri que de forma bastante sutil, Orlando demonstra para a plateia que ele sabe, sim, que Ganimedes é sua Rosalinda e por isso ele entra no esquema da moça que pretende ‘curá-lo’ de sua paixão.

Aqui talvez seja bom explicar o que está acontecendo na história para que se compreenda porque essa peça é tão elogiada.

O jovem Orlando se apaixona perdidamente à primeira vista por Rosalinda. Exilado na Floresta de Arden, ele passa os dias como Romeu, a multiplicar lágrimas e orvalho, declamando poemas muito ruins e arruinando os troncos das árvores com suas cópias do nome amado.

Rosalinda, por sua vez, para se salvar da perseguição de um tio usurpador, foge também para Arden, surgindo disfarçada como um rapaz, Ganimedes. Ela também ama Orlando, mas não se sente tão particularmente lisonjeada pelo romancear do rapaz – como já dito antes, Orlando é um poeta terrível, de rimas bem pobres, ridicularizado até pelo bobo, Touchstone.

Rosalinda, como Ganimedes, encontra Orlando na floresta e propõe a ele curá-lo de seu amor um tanto quanto ridículo pela própria Rosalinda e assim colocá-lo no caminho certo para que a moça possa vir a amá-lo. Tal esquema prevê que Orlando visite Ganimedes todos os dias e o corteje, como se ele fosse Rosalinda. Ganimedes agirá de forma arbitrária, uns dias afável, outras colérico até que Orlando compreenda realmente o que significa amar a moça que ama.

Orlando concorda com o esquema – e se fosse só por isso, como dito, ele seria apenas um bobo inocente. Só que quando Orlando sorri e pisca para a plateia sua cúmplice, ele demonstra saber que Ganimedes é mais do que aparenta ser. Isso se prova pela cena do casamento, quando Ganimedes chama Célia para oficiar a sua união com Orlando, que primeiro responde no futuro “eu o farei” e depois, sob instigação de Ganimedes, reconhece que o recebe como esposa naquele momento.

Essa sutileza se perde para o público moderno, mas à época de Shakespeare, o contrato de casamento era bem menos formal e existia uma diferença importante entre Orlando responder com o verbo no futuro – a promessa de casamento – e no presente. Ao aceitar Ganimedes como esposa nessa cena, Orlando não participou simplesmente de um simulacro da cerimônia matrimonial: pelas leis civis inglesas, ele de fato casou-se com o rapaz que ele sabe não ser um rapaz, mas sim a moça que ele ama.

Rosalinda, por sua vez, é inteligente demais para deixar de perceber que Orlando compreende seu disfarce. Sua insistência para que ele não apenas faça uma promessa de casamento futuro demonstra bem isso. Ele mente para ela, como ela mente para ele, mas essas mentiras fazem parte do jogo do amor, necessárias para que eles se conheçam e entendam o que significa amar um ao outro.

Orlando deixa de lado, sob a tutela de Rosalinda/Ganimedes, o suspirar e os maus poemas, a paixão intensa e sem freios, por um sentimento mais calmo e natural. De certa forma, o amor de Rosalinda e Orlando é uma resposta ao conflito de paixões que termina em tragédia entre Romeu e Julieta.

Esse é apenas um dos níveis em que a história se desenrola. A maioria das comédias de Shakespeare têm várias histórias acontecendo ao mesmo tempo, diferentes núcleos de atores e variações de interpretação em muitas escalas.

Ísis: Esse estilo (de vários núcleos de personagens etc, tipo as nossas novelas) foi criado por ele?

Lulu: Eu acredito que sim, Ísis. Do que eu conheço de teatro antes de Shakespeare, a ação sempre fica centrada no protagonista, sem outros núcleos com histórias próprias. Mesmo no teatro grego, cujas histórias se centram bastante nos conflitos humanos – embora quase sempre em contraste com desígnios divinos – não costuma existir essa dualidade.

Mas, considerando que muito pouco sobreviveu das peças escritas no período de Shakespeare – e a maior parte do que sobreviveu foi do próprio Shakespeare – não temos como compará-lo e saber se um outro autor pensou no mesmo mecanismo de narração.


Após Como Gostais, entramos numa segunda fase das peças cômicas, representadas por trabalhos como Bem Está o que Bem Acaba, Medida por Medida e O Mercador de Veneza. Essas histórias são caracterizadas também como peças-problema em termos de classificação.

São histórias mais pesadas, mais cínicas e amargas em sua análise do comportamento humano. Provocam ainda o riso, mas um riso mais constrangido. Alguns críticos as chamam de tragicomédias – afinal, elas se enquadram nas comédias apenas por terem (supostos) finais felizes.

Não existem heróis nessas histórias. Em vez disso há canalhas como Bertram (Ísis: And here we go again...), tolos como Bassanio, maridos dominados por ciúmes irracionais como o Rei Leontes. São histórias em que o final feliz é apenas uma ilusão – quando se pode falar em finais felizes quando tais peças terminam em tensão e recriminações. Difícil encontrar nelas um personagem com que você consiga de fato simpatizar.

Da minha parte, O Mercador de Veneza é a favorita das peças dessa fase. Portia me impressiona, embora eu seja de opinião que ela foi desnecessariamente cruel. Bassanio me é indiferente. Tenho uma certa pena de Antonio, o mercador do título, embora acredite que de certa forma ele merecia o que lhe aconteceu. Curiosamente, o vilão da peça, o personagem sobre o qual deveria cair o ridículo e o desprezo é meu personagem favorito, o mais intenso e mais trágico: Shylock, o judeu.

Não existiam judeus na Inglaterra à época de Shakespeare – eles tinham sido completamente expurgados em reformas religiosas anteriores. De certa forma, sua figura funcionava como a de um bicho-papão e daí se compreende o porquê de para o público elizabetano ser ele um personagem cômico.

Ísis: Hein? Então, por não existirem, as pessoas não sabiam como era um judeu e por isso tinham medo deles (tipo o que hoje muita gente erroneamente pensa dos árabes)? É isso? oO

Lulu: Exatamente.

Contudo, ao mesmo tempo em que a história de O Mercador de Veneza pode ser lida como uma peça de propaganda antissemita, Shakespeare coloca na voz de Shylock um de seus solilóquios mais poderosos, um libelo pela vingança, sim, mas também um lembrete do fato de que, independente das crenças religiosas, somos todos humanos.

Como já disse antes, sou uma assumida bardólatra. Mas, entre todas as grandes peças de Shakespeare, se eu tivesse de escolher uma parte favorita, seria esse solilóquio, em uma de suas peças consideradas menores, que eu indicaria. Das comédias, amo o relacionamento de Beatrice e Benedict – ‘inteligentes demais para se cortejarem em paz’, choro de rir com a confusão que o pobre Cesario/Viola se encontra entre os amores do Duque e de Olivia e delicio-me com a complexidade do jogo entre Rosalinda e Orlando, mas ainda é Shylock que mais me emociona.

E vocês? Qual sua comédia shakesperiana favorita?

Ísis: Arranje-me essa versão anotada por alguns meses, que eu te respondo...

Lulu: Qual versão anotada? A que eu anotei? A de Oxford? Do Bloom? Qual tu preferes?

Ísis: A que você disse que tinha anotações do próprio Shakespeare, para poder entender melhor. (Mas se também tiver anotações contemporâneas para me situar... e para traduzir, agradeço pencas! ^^)

Lulu: De onde tu tirasse que tem uma versão anotada pelo próprio Shakespeare? As 'anotações' são dos próprios atores e diretores ao longo do tempo, marcações para que se saiba como fazer e como interpretar uma determinada cena. A única versão anotada que eu conheço são as dos críticos (e as minhas... com as minhas anotações, digo...).

Para ler mais...

Os Dois Cavalheiros de Verona
A Megera Domada
A Comédia dos Erros
Trabalhos de Amor Perdidos
Sonho de uma Noite de Verão
O Mercador de Veneza
As Alegres Matronas de Windsor
Muito Barulho por Nada
Como Gostais
Noite de Reis
Troilus e Cressida
Medida por Medida
Bem Está o que Bem Acaba
Péricles
Conto de Inverno
Cymbeline
A Tempestade

(Continua com as Tragédias...)


A Coruja


____________________________________

 

2 comentários:

  1. Oie. Deixei um recado pra vc no skoob, mas como não sei com q frequencia vc vai lá, então vou dizer aqui tbm.
    Me interessei pelos seus livros Jane Austen's Pride and prejudice Bloom's notes e Explicando Tolkien. Me diz se troco algum que vc queira, e o estado dos seus.

    ResponderExcluir

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog