27 de outubro de 2015
Quem Conta um Conto (Setembro): O Conto da Ísis || Drama
Não era nada daquilo que ela tinha em mente quando propusera a brincadeira. Sonhara, aliás - tivera um sonho fantástico, e, assim que pôde, contara à loira sua visão. É claro que a amiga imediatamente embarcara na mesma, coisa que já se repetia ao longo dos vinte anos em que estavam juntas. Na verdade, Anna podia contar nos dedos de uma só mão as vezes quando Darlene não pulara de cabeça nas ideias da ruiva, ajudando a dar vida e corpo às mesmas.
Quando Anna dissera, aos seis anos, que queria um coelho de estimação, fora Darlene quem a apoiara e fora com ela em petshops. Procurara online sobre comportamentos, cuidados necessários e afins, acerca de diferentes raças, o que a ajudara a decidir qual escolher, e a montar o pedido aos pais, da forma com menor probabilidade de uma negativa. Uma vez conseguido o animalzinho, fora também Darlene quem ajudara a cuidar.
Quando, aos doze, ela resolveu fazer um banner para celebrar a volta de seu pai da guerra, fora Darlene quem dera ideias de tamanho, cores e como montar o conjunto das imagens e mensagens. Quando ele chegara em estado grave, fora Darlene quem a segurara e dera conforto, pois sua mãe mal podia se manter em pé, ou mesmo respirar. O coelhinho, sentado em seu colo, compartilhara de sua tristeza, mas não oferecera mais que isso.
Quando, aos catorze anos, resolvera pular do penhasco para o rio abaixo, achando que seria divertido, fora Darlene quem a segurara e não permitira que desse mais nem um passo à frente. Um rapaz tivera a mesma ideia, uma semana depois; esse pulara para sua morte. Anna apenas abraçara a amiga, confortada pelo silêncio e os afagos da mais nova.
Aos dezoito, tivera a brilhante ideia de se apaixonar pelo pior cara possível. Ainda assim, mesmo tendo Anna, por cegueira passional, declarada finda a amizade entre as duas, fora Darlene quem a defendera até os dentes, até que Anna enfim visse a besteira que estava cometendo.
Ainda se recuperando do coração partido, seu amado coelhinho lhe deu a última piscada, antes de deixá-la, carregando consigo os últimos resquícios de sua infância. No dia, Darlene sentou-se a seu lado, os ombros encostados, mas sem nada dizer. Nas semanas seguintes, a loira fez-se presente mais que o usual, de forma que Anna nunca estivesse completamente sozinha.
Seu aniversário de 19 anos passara sem muita comemoração. Poucas semanas depois, numa conversa banal, Anna mencionara como seria legal se houvesse uma pousada na cidadezinha, e, mais ainda, se elas pudessem administrar o negócio. Em menos de meio ano, Darlene juntara tudo o que era preciso e as duas abriram a pousada ‘Ene & Ana’.
E ela não percebera quando, mas toda a mágoa que sentira desaparecera nesse ínterim.
Aos vinte e dois, Anna dera a ideia de fazer uma espécie de creche anexa à pousada, pois os poucos hóspedes constantemente comentavam sobre a falta de uma área infantil. Poderiam chamar alguém para ficar com as crianças da cidade e as dos hóspedes, de forma que sempre houvesse um amiguinho(a). Darlene deu um jeito.
Assim, após mais de duas décadas juntas, quando Anna dissera que queria encenar uma peça, no meio do parque municipal, não deveria ter ficado surpresa quando Darlene aparecera no dia seguinte com o rascunho de um roteiro em mãos. Eventualmente decidiram a história, os personagens e seus potenciais atores, cenários e figurinos. Em menos de um mês haviam conseguido a participação de mais pessoas do que precisavam, tanto para atuar, quanto para produzir. Mais um mês, e estavam prontas para apresentar.
A estreia ocorreu num domingo à noite, e teve bem mais atenção do que era esperado, especialmente no fim do primeiro ato, quando o “ex” de Anna aparecera no papel de par da personagem da mesma. Ela não queria, mas não pôde evitar que seu coração batesse mais forte quando o viu. No palco, ele cumprira o papel e recitara todas as falas, com particular impacto na declaração de amor.
Nos bastidores, entre os dois atos, ele prendeu as mãos da ruiva entre as suas, e não mais as largou, anunciando que só seriam separados se lhes cortassem as mãos – ao que Anna quase gritou.
Quase, porque no instante seguinte ele a havia soltado... ou melhor, o rapaz havia caído completamente inerte no chão.
E Darlene estava em pé à sua frente com uma panela de adereço, na qual havia uma endentação bastante suspeita. E quando Anna olhou melhor aos seus pés, o formato da cabeça de Michael também parecia haver mudado.
Ela quase gritou de novo.
Quase, porque Darlene antecipara a reação da amiga e erguera a mão à boca desta antes que algum barulho pudesse escapar.
- Sssshhhhh! – a loira sussurrou – Não chame atenção!
Anna, sem palavras ou outra reação, apenas assentiu com a cabeça, mas Darlene apenas a soltou minutos depois, ciente de que a ruiva precisava desse tempo para se acalmar.
- E agora? – a jovem sussurrou, nervosa – E se ele estiver morto?! O que a gente faz?
Naquele momento, Darlene respirou fundo, e Anna teve a impressão de que, mesmo numa situação como aquela, a outra estava, na verdade, entediada.
- Aí a gente enterra... – foi a resposta dada numa foz firme, ao que a ruiva encarou a amiga, incrédula. A mais nova continuou: – O primeiro ato acabou, temos que nos preparar para o segundo. Vamos enrolá-lo num tapete, ou o que estiver mais próximo, e colocá-lo como parte da cena do velório da Minerva. Precisávamos mesmo incrementar aquela cena. Ficará perfeita agora!
- Você tá doida? A gente tem é que sumir com ele, não colocar na cara de todo mundo!
- Se ele tiver morrido mesmo, é impossível a gente se livrar da prova com tanta gente ao redor. O melhor esconderijo às vezes é aquele que é tão óbvio que ninguém pensa em procurar. – a loira retrucou. Diante daquilo, Anna não tinha palavras, e, portanto, preferiu ficar quieta. Darlene sempre tivera uma boa noção da realidade e das impossibilidades. Restava-lhe apenas confiar na mais nova.
Entretanto, no fundo de seu coração, uma pequena dúvida começou a brotar sobre sua companheira.
Afinal, que tipo de pessoa quase arranca a cabeça de outra, e fica totalmente tranquila, mesmo com a possibilidade de ter morto a vítima?
Entretanto, a ruiva decidiu por acreditar em Darlene, afinal, sua amiga de infância nunca a havia decepcionado. Assim, o mais discreto que puderam, pegaram algumas faixas e embalaram parte do corpo de Michael. Em seguida, colocaram-no no palco, naquele instante obscuro pelas cortinas fechadas.
- Certo. – começou Darlene – A primeira cena depois do segundo ato é o velório, que é quando a Cecília e Marília descobrem o corpo enquanto conversam do lado de fora da casa. Depois dessa cena, as duas só aparecem próximo do fim. Podemos esconder isso aqui num baú de depois jogar rio abaixo.
- Você fala como se fizesse isso todo dia... – sussurrou Anna, cada vez mais nervosa.
Darlene ofereceu-lhe um sorriso antes de responder. – Só algumas vezes. – ao que Anna engoliu seco. Se continuasse assim, ela acabaria cúmplice de um crime.
Pouco tempo depois, recitavam suas respectivas falas, as armas das personagens em mãos, e o corpo de Michael aos seus pés. O que elas não anteciparam eram os corvos, os quais, embora já estivessem presentes desde o início do dia no parque, pareciam escolher aquele momento para se espalharem pelo palco, como se dissessem: “Eu sei o que vocês estão fazendo.”
Aquele pensamento provocou um calafrio que lhe percorreu a espinha, e ela largou a arma no chão, envolvendo o torso pelos próprios braços cruzados. A sensação, porém, apenas piorou, vez que uma das aves pousou no chapéu da jovem, ao passo que outras se aglomeraram em volta e sobre o corpo no chão. Pensando que talvez os animais estivessem tentando chamar atenção e entregá-las, Anna tentou seguir com seu papel, mas sabia que não estava nem de longe em sua melhor performance. Com certeza os outros participantes da peça notariam que havia algo errado.
E se olhassem para o chão e percebessem? Quanto tempo elas teriam entre o momento em que alguém avistasse aquele corpo embrulhado, até o instante no qual entenderiam o que estava acontecendo? Não muito, provavelmente, mas ela rezou silenciosamente para que fosse o suficiente para poderem fugir, de preferência após a peça terminar.
Esforçando-se para desempenhar seu papel, a ruiva não pôde deixar de observar Darlene, e se surpreendeu com a frieza da amiga. A loira não demonstrava qualquer emoção que não fosse ligada ao seu personagem e àquela cena. Ninguém poderia desconfiar que a outra havia derrubado um homem grande – e bem maior que ela – com uma panelada apenas, e que a vítima estava ali, em cena...
Enquanto essas noções passavam pela cabeça de Anna, ambas as moças contracenavam, seus papéis dando vida ao momento mais triste de toda a obra. Ainda que não tivesse naquele momento a capacidade de se colocar na pele de sua personagem, tentou ao máximo canalizar todo o desespero que sentia diante de sua própria situação. Não podia dizer que foi sua melhor atuação, mas foi o suficiente para arrancar choros da plateia.
Pouco depois, no instante em que saíram de cena, o corpo de Michael carregado pelas duas para a troca de cenário, um dos atores se aproximou e ofereceu ajuda.
- Não! – gritou Anna, assustada. No segundo seguinte, percebeu seu erro, ao sentir alguns olhares direcionados ao trio...
- Ou seria quarteto? Será que um cadáver conta na contagem? – ela pensou – É agora que eles descobrem! Estamos perdidas!
Mas Darlene respondeu em seguida, como se estivessem apenas passeando por campos de arco-íris, ou como se estivessem cozinhando um bolo para o lanche das quatro.
- Não precisa, Carlos, mas obrigada. Vamos deixar aqui de qualquer forma. – a loira disse. Com um meio sorriso maroto, ela acrescentou: – Mas se quiser desovar esse cadáver depois da peça terminar, tem meu selo de aprovação.
Anna quase teve uma síncope. Seu susto foi tamanho que largou os ombros enfaixados de Michael, os quais estavam sob sua responsabilidade naquela divisão de peso. Mesmo que não estivesse apelando por discrição, transportando baixo e de forma menos visível possível, ela não tinha forças para levantar aquele corpo, e, por isso, o rapaz não caiu de muito alto. Ainda assim, foi o suficiente para que quicasse, provocando uma dupla pancada na cabeça, e desenrolando parcialmente a metade que estava enfaixada.
Não desenrolou muito, mas foi o suficiente para que se pudesse ver o rosto.
E todos os outros atores que não estavam em cena viram aquele rosto...
A loira não sabia o que a sufocava mais, se a falta de ar, ou se os olhares inquisidores em sua direção. Contudo, não pôde descobrir, porque, logo em seguida, sua visão enegreceu.
Primeiro, foi o cheiro terrível que invadia suas narinas e o qual parecia capturar o cérebro para espremer da forma mais dolorida possível. Depois, aos poucos, alguns sons registraram, dentre eles o tom grave e inconfundível da voz de Darlene. Tentou abrir os olhos, mas não o pôde fazer, embora soubesse de alguma forma que não havia luz forte em qualquer que fosse o local que estivessem. Em vez disso, concentrou-se na voz da amiga, que parecia recitar um mantra...
- Respira, Anna, vamos. Pra dentro, devagar, e pra fora. Pra dentro, devagar, e pra fora. Isso! – ela dizia, e a ruiva percebeu que, mesmo inconscientemente, sua respiração estava, de fato, acompanhando as instruções da outra. Enquanto focava em capturar ar para dentro de si, e depois soltar, a jovem ia recobrando algumas sensações. O movimento das pontas dos dedos foi um dos primeiros, mas demorou para que pudesse fazer mais que isso. Aos poucos, porém, ela percebeu que estava deitada em algo que não era o chão, mas definitivamente não era sua confortável cama.
Após muito tempo, a voz de Darlene sempre a guiando, os orbes claros enfim foram descortinados para o mundo... e não revelavam uma visão muito aconchegante. Não reconhecia o lugar; as paredes de tijolos pareciam velhas e desoladoras. Anna precisou fixar firme nas palavras da mais nova para não ter uma crise respiratória, tamanha a invasão de sentidos que lhe parecia afogar, voltando todos abruptamente, como se fossem pingos de água em uma cachoeira. A ruiva sentiu-se imediatamente como se estivesse presa em um minúsculo cômodo, sem janela, sem portas, sem luz e sem ar. Era como se...
- Anna! – gritou a loira – Acorda!
A essas alturas, Darlene já a sacudia, e sem muita delicadeza. Todavia, poucos minutos depois, a mais velha enfim conseguiu abrir os olhos de vez, e se sentar.
- Onde estamos? – perguntou, ainda desorientada quanto ao porquê e o como de estarem seja lá onde estivessem. – Não sei que lugar é esse. – explicou.
- É porque você nunca passou por aqui. A gente sempre escondeu isso de você. – sussurrou a loira, mas Anna a ouviu perfeitamente bem.
- ‘A gente’? ‘A gente’, quem? – perguntou.
- Darlene e eu. – respondeu uma terceira voz, que parecia ecoar pelas paredes.
Mas ela reconheceria essa voz em qualquer lugar.
- Michael? – o nome lhe escapou automaticamente, mas, no mesmo instante, a ruiva se lembrou do que acontecera. – Estamos presas?!
Ao ouvir essas palavras, a outra olhou de forma estranha pra ela, o que não tranquilizou Anna em nada.
- Depende do ponto de vista. Admitidamente, essa porta está trancada, mas é pra evitar que ele entre. – respondeu a mais nova, acenando com a cabeça na direção de uma janelinha, por onde se podia ver a cabeça de Michael.
Só a cabeça.
Anna gritou. Esperneou. Chorou. Darlene tentou segurá-la, mas foi preciso muito empenho até que a ruiva pudesse formar palavras coerentes de novo.
– Você tinha morrido! – ela gritava, entre lágrimas e soluços – Você está ‘morrido’! Darlene! Darlene, por que tem uma cabeça falando comigo, Darlene? E por que vocês estariam me escondendo alguma coisa? Por quê?
Foi quando a loira congelou, e olhou fixamente para a mais velha em seus braços.
- Você achou que ele tivesse morrido mesmo? – perguntou, de forma devagar. Anna podia ouvir os intervalos entre cada palavra, e reagiu mais a isso, do que à pergunta da amiga. Ainda assim, sua resposta foi um pequeno aceno com a cabeça, assentindo.
Darlene respirou fundo, para não esbofetear a outra. – Só você mesmo pra imaginar esse tipo de coisa! Deixa de drama! Isso aqui não morre nem que eu mate! E, vai por mim, eu já tentei.
Diante dessas palavras, Anna pôde apenas olhar incrédula para a outra. – Você o quê?!
Mas a loira não respondeu, ao menos não verbalmente. Apenas pegou a arma que estava amarrada à sua perna – Por que raios ela tinha uma arma presa na perna?! – e atirou na direção de Michael. Antes que a ruiva pudesse gritar outra vez, Darlene fixou-lhe um olhar frio, e sério.
- Melhor não fazer drama.
A Elefanta
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