16 de abril de 2013
Quem Conta um Conto (Abril): O Conto da Ísis || Já Disse
- Larga do meu pé, chulé! – gritou a linda dama. – Já disse que não tenho tempo a perder com vocês!
- Mas é só um pouquinho! Não precisa dessa grosseria toda! – respondeu o simples garoto.
- Não precisaria ser grossa se tivessem ouvido as outras quarenta e nove vezes que disse que não... E, sim, estou contando.
- Se estivesse, saberia que essa é a sexagésima-quarta, sua analfabeta matemática. – defendeu a mocinha. Ela podia até não ser feia, mas nem de longe podia ser comparada à dama de salto alto.
A referida senhora virou-se e encarou as duas crianças com uma expressão que não combinava com suas feições. Claramente tinha a intenção de responder, mas certamente preferiu não instigar ainda mais aqueles pirralhos. Recompondo-se , ela se virou e afastou-se.
Dessa vez, os dois não perturbaram mais.
Pelo menos, não naquele dia. Na manhã seguinte, acordaram cedo, ou possivelmente nem sequer haviam dormido. Num horário inumano, já estavam agachados embaixo dos arbustos de rosas, em frente à casa da bela dama.
Eles não aprendem mesmo, já disse. Sério, eles não aprendem mesmo. Podiam deixar a moça em paz... mas, nããão... precisam encher o saco da coitada... Qualquer dia desses vou lá retribuir o favor...
Mas é mais entretenimento para mim, pelo menos por enquanto, observá-los de longe. Isso porque nenhum dos dois tem coordenação motora muito boa, e se eles estão tentando fazer o que eu acho que eles estão tentando fazer, vou me divertir bastante hoje.
Pra começar essa budega, eles já estão agachados ali há umas duas horas; na mesma posição, joelhos dobrados, sem sentar ou levantar. Aposto que só não perderam as pernas porque estão grudadas no corpo. Só podem estar morrendo de medo, possivelmente ao ponto de liberação líquida.
Coitadas das rosas. Pensando bem, não posso deixar isso acontecer. A pobre dama ficaria muito triste se suas rosas morressem. Melhor eu tirar esses filhotes de demônios daqui.
OK, eu juro que os teria tirado de lá, se eles não tivessem saído sozinhos. Não foi minha culpa. Não há muito que eu possa fazer quando minhas vítimas resolvem que não são oponentes pra mim.
Odeio quando isso acontece. Poderia ter chamado a atenção da bela senhora agora, mas graças a esses pirralhos, terei de esperar outra oportunidade.
Como eu odeio essas pragas! Mas não tem jeito... Observarei mais um pouquinho, quem sabe eles não me fornecem mais outra chance?
E, pelo visto, não vou ter de esperar muito. Esses dois tontos passaram direto pela porta da frente, que eu sei que é deixada muitas vezes aberta, e estão tentando entrar pela janela, que ela nunca esquece de trancar.
Que bando de idiotas... Vou ter mais dificuldade em segurar minhas risadas do que em efetivamente tirá-los daqui.
Desistiram. E agora, seus imbecis? Vão tentar o quê?
Opa, falei cedo demais. Não são tão energúmenos quanto pensei; já voltaram pra porta da frente... e realmente estava aberta. Droga! Vou ter que dar um jeito nessa mulher. Ela nunca lembra, e isso já tá ficando sério. Já disse. Bem, a essa altura, não me restam alternativas senão os observar e, se necessário for, proteger a linda senhora. Eles não encostarão nela, no que depender de mim.
Melhor entrar logo antes que seja tarde. OK, e agora, cadê esses jumentos? Não é possível que já tenham sumido! Não demorei tanto pra entrar... Ah, lá estão. Minha nossa, como são desastrados, mesmo. Mal entraram e já derrubaram a caixa de pedras na mesa da frente... Ou melhor, quase derrubaram. A julgar pelo barulho que eu sei por experiência que isso teria provocado, parece que reagiram rápido o suficiente.
Devo tê-los subestimado. Vou tentar não fazer isso de novo. Mas eles mal se recompuseram e já estavam tropeçando no tapete.
- Ai! Sai de cima de mim! – sussurrou a garota, à beira de elevar sua voz, tentando empurrar o jovem.
- Ai, digo eu! – respondeu o outro, também contendo seu volume – Isso dói! Pára de pegar onde aquele maldito gato me arranhou! Você é sadista, por acaso?
A moça arqueou uma sobrancelha e respondeu – Como assim?
- Como assim, como assim? Você sabe que aquele gato louco já me mordeu e me arranhou em tudo que é canto! Você sabe inclusive ‘em que cantos’!
OK, por essa informação eu não esperava. Quer dizer que Milorde realmente machucou o pirralho? Logo o gato que nunca ataca ninguém? Esses dois devem ser bastante persistentes mesmo, o suficiente pra irritar o felino.
- Sei, e daí? – retrucou a jovem.
- E daí, que você continua arranjando desculpa pra golpeá-los! – o menino respondeu, incrédulo – Tenko, você é sadista! Só pode!!!! Que outro motivo teria para ficar querendo me provocar dor o tempo todo?!
Ela contorceu o rosto numa careta.
- Experimenta ter um doido pesado em cima de você e aí você vai entender! Agora sai de cima!
- Certo, mas pára de fazer barulho. Ou o ‘Lorde das Trevas’ vai ouvir a gente! – o rapaz disse antes de rolar de cima da outra.
Lentamente, ambos tatearam o chão e se levantaram. Dessa vez, resolveram andar um pouco mais lentamente, evitando esbarrar em outro objeto ou mesmo tropeçar.
Eles obviamente não lembraram que casas têm paredes, porque estavam simplesmente pondo a mão para frente, sem mexê-la muito para sentir o que estava ao seu redor. Dessa feita, a menina falhou em detectar uma e foi de fuça e tudo de encontro à parede divisória da sala de estar e a cozinha, ricocheteando violentamente para trás.
Pena que atrás dela também estava o outro demoniozinho. Os dois caíram esplendorosamente, como duas baleias de pára-quedas da lua ao centro da Terra.
Uma comparação não muito boa já que nenhum dos dois pegou fogo ou congelou, ou morreu pela diferença de pressão, mas prefiro ignorar esses detalhes sem importância.
Dessa vez, o rapaz não conseguiu conter um grito de dor. Admitidamente, não foi tão alto, pois ele ainda tentava se conter, mas foi mais alto do que os dois gostariam. Ambos paralisaram no chão, temerosos.
Se Milorde não tivesse acordado até então, com certeza agora estava.
Como se estivesse lendo meus pensamentos, a menina resmungou.
- Se o cão não estivesse acordado até agora, você resolveu o problema, Akurou. – sussurrou ela. Não sei por que continuava com a voz baixa, afinal, como ela mesma dissera, com certeza todo mundo nessa casa já tava acordado.
- Quem está aí?
Inclusive a bela dama. Quero só ver agora o que essas duas antas vão fazer.
Claro, a melhor ideia é imitar um gato... e muito mal, por sinal. Como se alguém que tem um gato não saberia a diferença entre...
- Ah, é você, Milo? Seja um bom garoto e comporte-se, viu? – a melodiosa voz logo soou.
Francamente... Coitado desse gato.
- Vamos logo, – sussurrou a menina – Antes que ela acorde de vez.
- Então sai de cima de mim... e, por sinal, pára de fazer a gente cair! – retrucou o miador.
- Não tenho culpa! Não enxergo nada nessa escuridão!! – devolveu ela, enquanto tentava não fazer barulho para se levantar.
O rapaz a seguiu rapidamente, mas não conteve mais um comentário.
- Vê se dessa vez não cai de novo.
- Vou deixar essa passar só por causa da sua brilhante ideia de imitar o gato dela.
Brilhante, meu rim! Mas vou ficar quieto, melhor não ofender a senhora, nem em pensamento.
Assim, observei a dupla de trapalhões, aos trancos e barrancos, chegarem ao quarto da bela. Para ser mais preciso, observei-os acharem a porta aberta do quarto, porque, ao alcançarem aquele ponto, eles ficaram imóveis por algum tempo, olhando, esperando.
Mas não se mexiam.
Esquisito... Mas esses dois nunca foram normais aos meus olhos mesmo. Acho que é uma boa hora de chutá-los daqui. Se eles estão entrando tão cautelosamente no quarto de uma senhora, e de uma linda senhora, então não deve ser pra boa coisa.
- O Satanás não tá aqui. Vambora... – sussurrou o garoto antes de dar o primeiro passo para dentro do cômodo.
- Você e esse seu trauma. – resmungou a mocinha.
- Tomara que dessa vez ele ataque você. Aí você vai entender... – disse o menino.
- Perdõe-me se eu fizer um desejo contrário. Esqueceu que não queremos brigar com o gato? Não foi pra isso que viemos aqui.
- Tenko, se eu tivesse esquecido isso, a situação estaria bem pior.
Ela bufou um pouco, mas desta vez não respondeu. O mais silencioso que podiam, e eles eram surpreendentemente silenciosos quando havia um pouco de luz para guiar seus movimentos, dispersaram-se pelo quarto.
Pareciam procurar algo, mas, ao mesmo tempo, sem querer dar indícios de que estiveram ali, faziam um esforço imenso para não alterar o lugar das coisas, nem mesmo por meio milímetro.
Não fossem as mancadas anteriores, seria capaz de jurar que esses dois éguas eram ladrões profissionais. Já disse. A forma quase muda com que realizavam aquela tarefa chegava a assustar. Todavia, não era nada efetiva, vez que, tempos depois, ainda não haviam encontrado o que queriam.
Os dois se encontravam de quatro, no chão, procurando por entre sutiãs tamanho família, brincos de muitas cores e formas, bolsas, lenços, roupas, sapatos e diversas bugigangas espalhadas ao chão. Pra falar a verdade, era muito difícil dizer que havia chão ali, já que quase não se viam as tábuas de madeira, nem mesmo quando o quarto estava encoberto pela escuridão completa.
O que não ocorria naquele momento, pois o sol já começara a subir e havia algum tempo que os primeiros raios solares do dia haviam penetrado as finas cortinas. Mas foi naquele instante, contudo que a linda senhora virou-se em sua cama, possivelmente afetada pela luz em seu rosto.
Os dois doentes paralisaram novamente, mas não porque ouviram a dama mostrar potenciais sinais de que estavam acordando, mas porque foi naquele momento que o viram.
À porta do quarto, sentado como um rei, estava um gato de pelugem cinza. O felino olhava fixamente para eles, claramente ciente de que havia intrusos no quarto de sua dama.
Mas não se movia. Diferentemente de todos os encontros anteriores, o gato não os atacou. Alguns minutos de puro medo depois, contudo, ele fez algo possivelmente pior.
- Miaaaaaaaaau! – miou alto e duradouro. Se possível, os dois débeis mentais congelaram ainda mais, mas assim que a senhora respondeu ao chamado felino, imediatamente esconderam-se no lugar mais próximo que podiam arranjar: embaixo da cama.
Clássico. São dois estúpidos mesmo. Cavalos.
- Já ouvi, Milo, já ouvi. Já tô indo... – a jovem senhora respondeu, sonolentamente retirando-se do conforto de suas cobertas. – Espere aí, vou tomar meu banho e ponho já seu café, tá?
- Miau! – respondeu o gato cinza, sem em nenhum momento deixar de olhar para os dois elementos embaixo da cama.
Aqueles dois estavam ferrados. Pelo que conheço e ouvi desse gato, um deles vai ter que usar bandagens por algum tempo. Quem manda quererem ser caçador de tesouros? Vão ficar agora que nem “A Múmia”. Bem feito! É nisso que dá perseguir a bela dama!
Alguns minutos depois, a dama saiu do banheiro, usando um vestido florido, quase na mesma estampa que os lençóis de sua própria cama. Talvez deva informá-la que um pouco de variação faz bem ao espírito. Tenho certeza, contudo, que ela simplesmente riria da minha cara lavada.
- Onde estão aqueles sapatos? – a voz da linda mulher fez-se ouvir, e logo em seguida ela sentou em sua cama. – Milo, alguma ideia? Os saltos “montanha de joias”?
Os dois – a essa altura – picolés olharam intensamente para o gato, como se esperassem que este respondesse.
Claro que ele iria responder, óbvio! Bando de burros, é o que eles são. Já disse.
O felino não respondeu, mas, preguiçosamente, caminhou até a cama, roçando as pernas da mulher, antes de desaparecer embaixo da cama. Os pinguins desmiolados já não tinham mais batimento cardíaco, pois, ainda que por algum motivo o gato não os atacasse, a bela senhora certamente olharia embaixo da cama para saber o que o gato fazia ali.
Milagrosamente, porém, nenhuma das duas coisas ocorreu. Poucos segundos depois de entrar naquele espaço, o felino ressurgiu com um par de sandálias na boca. Depositando-as aos pés da jovem bela, miou satisfatoriamente.
E ainda assim não retirara os olhos dos invasores.
A dama curvou-se para afagar a cabeça cinza carinhosamente.
- Muito bem, lindo. – ela elogiou, ao que o gato apenas pressionou a própria cabeça na mão dela, um claro gesto de que estava gostando daquela atenção.
A dama continuou por mais um tempo, e, então, depositando um beijo no topo da cabeça do felino, e depois outro no nariz rosado, ela sussurrou três palavras antes de redirecionar sua atenção aos calçados.
- Eu te amo.
As duas capivaras se entreolharam, mas permaneceram ali como duas avestruzes. Já disse, são dois animais, esses dois.
A jovem senhora levantou-se e dirigiu-se para fora do quarto, e os dois não perderam tempo em pular pela janela logo em seguida. Tenho certeza que devem ter corrido até o próximo zoológico mais próximo.
- O que eles faziam aqui? – a dama perguntou da cozinha.
- O mesmo de sempre. – respondi. – Mas precisamos conversar sobre aquela porta da frente... Já disse...
A Elefanta
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Passei um tempo sem passar por aqui, e levei um susto quando li o conto de hj...Achei a escrita e o estilo completamente diferentes da Lulu e fiquei confusa até perceber q era outra pessoa escrevendo... hehehe Já vi que tem muita coisa nova rolando, vou ter que me atualizar rapidinho pra voltar a entender o que acontece debaixo desse teto de zinco quente!
ResponderExcluirPrazer! :D
ExcluirEu perturbo a Lu há anos offline, então resolvemos levar nosso caso pro mundo virtual tb. XP
Sério que é tão diferente assim? Importa se eu perguntar que pontos na nossa escrita vc identificou como diferentes? Fiquei curiosa agora...