1 de abril de 2011

Na sua estante: primeiro de abril





#057: Primeiro de Abril
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Aquela era uma guerra que já durava quase uma década. Ele não tinha plena certeza de como havia começado, mas desconfiava que a culpa era dele mesmo – tinha vagas memórias de uma história que envolvia uma história de aranhas seguidas de crises de pânico e narizes beliscados.

Claro que ele jamais esperara que Beatriz fosse do tipo que guarda rancor... mas um ano depois, lá estava ele, às voltas com escorpiões de borracha dentro dos sapatos.

Desde então, era até com certa ansiedade que eles aguardavam pelo primeiro de abril, as peças pregadas um no outro tendo se tornado cada vez mais refinadas – afinal, dez anos é tempo suficiente para prepará-lo para o pior.

Por isso, quando Beatriz ligou para ele naquele final de manhã, nervosa e atropelando as palavras, ele já estava suficientemente preparado para saber o que fazer – ainda que um pouco surpreso de ela continuar a tradição, considerando que quase não falava com ele desde o episódio com Mariana.

Sendo sincero, ao ouvir a história totalmente sem pé nem cabeça da irmã, ele se sentiu até um pouco insultado. Ela realmente achava que ele cairia em um golpe tão ridiculamente simplório?

- Você quer dizer então que o pai fraturou a perna numa queda nas escavações, a mãe está no país desde ontem e a gente só veio ouvir essa história hoje? Exatamente hoje?

- A mãe disse que assim que ligaram para ela, teve de correr para conseguir resolver tudo e partir para lá. Ela estava tão aflita que não se lembrou de nos ligar e quando chegou nas escavações... bem, é meio óbvio que não pegava celular no meio da floresta, André. Mas agora eles estão a caminho e ela pediu que você fosse buscá-los no aeroporto agora de tarde. O vôo deles chega de...

- Não, obrigado. Eles podem chegar vir de táxi. Tô ocupado. – ele sentiu um prazer quase perverso em interromper a caçula e desligar o celular na cara dela.

Não demorou cinco segundos para que o aparelho tocasse de novo.

-ANDRÉ, SEU IDIOTA! O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO?

*botão desligar*

- ANDRÉEEEEEEEEEEEE!!!!

*botão desligar*

-EU JURO QUE VOU MA...

*botão desligar*

- André?

O rapaz piscou os olhos. Aquela não era Beatriz.

- Mãe?

- Então... você está muito ocupado para ir nos buscar no aeroporto?

- Hã... bem, mãe, assim...

- Existe algum motivo para sua irmã ter me ligado histérica dizendo que você não queria ouvi-la?

Ele engoliu em seco.

- Primeiro de abril? – André respondeu com a voz quase sumida.

Do outro lado da linha, ele ouviu um suspiro.

- Dê uma olhada no DDD dessa chamada, André. Você acha realmente que eu estaria de volta ao país, numa época em que o trabalho se acumula em minha mesa como se os papéis dessem cria de noite, enfiada no meio do mato apenas e unicamente com o intuito de pregar uma peça em você?

Mais uma vez, ele engoliu em seco. E não olhou para o identificador de chamadas. Ele não precisava de mais confirmações.

- O pai está bem?

- Ele vai sobreviver. – havia algo de eminentemente sarcástico na forma como sua mãe disse aquilo. Ele quase tinha pena do pai – É só uma perna quebrada. Mas a fundação decidiu por bem que ele deveria tirar uma licença de 30 dias e eu acabei tendo férias para poder servir de babá para ele.

André podia imaginar que seu pai também não estava muito satisfeito com o arranjo. Ele sentia calafrios apenas de imaginar a mãe como enfermeira, repetindo ‘bem feito, bem feito, você pediu por isso’ enquanto afofava os travesseiros.

Pelo menos, fora assim que ela o tratara quando ele quebrara o braço após ter inventado de andar de moto escondido. Se o acidente do pai fosse culpa dele mesmo, de alguma imprudência que o homem tivesse feito – o que acontecia com razoável freqüência quando seu pai se empolgava – então...

- Eu estou indo para o aeroporto.

- Ótimo! Nos vemos em breve então.

Desta feita, ele esperou a mãe desligar. Então respirou fundo e começou a arrumar os livros e cadernos em cima da mesa da biblioteca. Penélope estava de folga naquele dia, então ele apenas acenou para a outra bibliotecária que cuidava do lugar e seguiu direto para o carro.

Infelizmente, André esquecera de perguntar que horas os pais chegariam. Quando se lembrou desse pequeno detalhe, o celular da mãe já estava desligado e Beatriz não atendia ao telefone (de propósito, muito provavelmente).

Seis horas de castigo depois, a mãe surgia no portão de desembarque, empurrando o marido numa cadeira de rodas.

Seu pai parecia ter ido ao inferno e voltado. André tinha certeza que ele mesmo não estava muito diferente. A mãe, porém, sorriu brilhantemente ao para diante dele.

- Ótimo que você tenha arranjado tempo para vir nos buscar, André. Muito bom. Isso vai ser quase como férias. Um mês inteirinho juntos.

Ele pensou ter ouvido um grunhido vir das imediações do pai. A mulher voltou-se alegremente para ele.

- Você disse alguma coisa, querido?

- Não, não, de forma alguma.

- Ótimo. Muito bem. André, fique com seu pai enquanto vou buscar as malas.

- Sim, senhora.

Tão logo se virão a sós, o pai o puxou pela camisa, forçando-o a se abaixar para ficar no mesmo nível que ele.

- Não a deixe cozinhar. Ela jurou que vai me alimentar só de papa pelo mês inteiro. Ou cavar outro buraco onde eu possa alegremente quebrar a outra perna.

- Como foi, exatamente, que o senhor conseguiu quebrar a perna, pai? – ele perguntou finalmente – Você não estava fazendo nada que não devia fazer, não é mesmo?

- Bem... Eu tive de subir na árvore, entende... E daí...

André suspirou. Aquele seria um longo mês...

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A Coruja


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