7 de setembro de 2011

Desafio Literário 2011: Setembro - Autores regionais || Assombrações do Recife Velho



Quem se surpreender com um livro sobre assombrações, de escritor que tem na sociologia (como outros na medicina ou na engenharia) seu mais constante ponto de apoio — embora seja principalmente escritor e não sociólogo — que contenha sua surpresa ou modere seu espanto. Pois não há contradição radical entre sociologia e história, mesmo quando a história deixa de ser de revoluções para tornar-se de assombrações.

Já existe, aliás, uma
Sociology of the supernatural, trabalho de um mestre, Luigi Sturzo, aparecido em 1943. Admitido, como alguns hoje admitem em sociologia, que a convicção pode fazer sociologicamente as vezes da realidade, admite-se que possa haver associação por meios psíquicos, mesmo imaginários, de vivos com mortos. Formariam eles “sociedades” de que seria possível fazer-se o estudo sociológico, como já se faz (forçando um pouco o critério dominante na investigação dos fatos sociológicos, que é o antropocêntrico) o estudo de sociedades animais e até de vegetais em suas relações com as humanas.

Não é descabido, nem em sociologia nem em psicologia social, considerar-se o fato de que não há sociedade ou cultura humana da qual esteja ausente a preocupação dos vivos com os mortos. E essa preocupação, quase sempre, sob alguma forma de participação dos mortos nas atividades dos vivos. O próprio positivismo admite que “os vivos” sejam “governados pelos mortos”. A gente mais simples admite a participação dos mortos na sua vida sob a forma de “visagens” ou “assombrações” em que as supostas manifestações de espíritos de mortos às vezes se confundem com supostas aparições do próprio demônio. Ou de pequenos e médios demônios, desde que o mundo demoníaco tem também sua hierarquia. Demônios, no Brasil, disfarçados às vezes em bodes, cabras, cabriolas, mulas-sem-cabeça, lobisomens, boitatás, porcos, queixadas, cachorros, cães ou gatos de olhos de fogo, quibungos, papões, mãos-de-cabelo, cobras-norato, almas-de-gato, capelobos, papa-figos. Toda uma fauna infernal que se a sociologia do sobrenatural descesse do divino ou do angélico ao misticamente bestial, teria que considerar como “sociedade” a seu modo animal. O encontro dos dois extremos: o supra e o infra-humano. Em compensação, a tradição oral guarda a lembrança de aparições, no Recife ou nos seus arredores, de santos, da própria Virgem, do próprio Senhor Bom Jesus até a simples soldados, embora nenhum tenha se tornado arremedo sequer de Joana d’Arc: a não ser que se queira idealizar a este ponto o herói demasiadamente humano que foi Fernandes Vieira.

A princípio, fiquei meio sem saber como preencher o tema desse mês porque, sendo sincera, não conhecia tanto da produção regional exceto pelo que já tinha lido. Depois de me demorar um tanto pensando no assunto, o primeiro autor que meio veio à cabeça foi, claro, Ariano Suassuna e como eu já tinha mesmo colocado um monte de peças de teatro no meu rol de leituras, joguei Dias Gomes no meio. Faltava-me um nome que, depois de escolhido, era até bastante óbvio, porque faz muito tempo que estou querendo ler Gilberto Freyre.

Até pensei inicialmente em me aventurar por Casa Grande e Senzala, obra que se reputa fundamental para compreender a formação da sociedade brasileira e que estou devendo faz tempo, mas acabei desistindo porque sendo uma obra não apenas extensa, mas também complexa e a se considerar que eu estaria numa época de muito trabalho (mais tarde acabei trocando minhas férias para setembro; quando fiz a lista para o Desafio Literário 2011, não sabia ainda disso).

Pesquei então o Assombrações do Recife Velho.

Freyre foi uma completa e maravilhosa surpresa. Ele é culto sem ser pedante; consegue reproduzir a atmosfera de uma época sem datar seu texto e consegue passar suas histórias com a mesma pachorra das velhas bás contando história de trancoso sentadas na calçada.

O livro já interessante sem conhecer o Recife, que dirá tendo a oportunidade de percorrer as ruas e vielas, os campos e os sobrados descritos nele? Tirei um dia, logo após terminar o volume, para percorrer alguns dos locais de malassombros. Boa parte das ruas mudaram de nome, mas foi possível caminhar pelo bairro do São José e observar os sobrados antigos, visitar o Santa Isabel, com sua platéia invisível e o Palácio das Princesas, onde governadores antigos ainda tocam piano no salão nobre e visitam os governadores novos para anunciar desgraça.

O livro, que é uma coletânea de casos e ‘causos’, foi publicado por Freyre inicialmente como uma série de reportagens no jornal A Província, por volta da década de 30. Suas histórias foram colhidas a boca-miúda, com testemunhas e descendentes de pessoas que tinham vivido acontecimentos inexplicáveis, muitas vezes ligados a fatos históricos da cidade.

São contos como o da judia Branca Dias, a proteger sua prata escondida nos tempos do Santo Ofício; do Visconde Suassuna, senhor cruel de escravos, que após a morte aparecia pedindo missa; do lobisomem curado por fígado de menino, de onde se teria originado o Papa-Figo – vultos, barulhos e botijas enterradas em casas onde ocorrera mortes violentas.

Histórias que entraram para o imaginário popular e sobreviveram ao tempo, à luz elétrica e mesmo à demolição de muitas dessas casas históricas, abandonadas por seus sinhozinhos e suas iaiás.

Não li o livro de uma sentada só porque achei de começá-lo justo à noite – e a determinada altura comecei a me assustar com o barulho violento do vento na janela e os barulhos normais de uma casa à noite. Antes que um vulto me surgisse do nada, troquei Freyre por um romance água-com-açúcar e só fui dormir quando estava exausta demais para sonhar com alguma coisa.

Claro que, no dia seguinte, antes mesmo do café da manhã, eu já estava de volta à ele, sem me decidir se queria ou não chegar ao final e lamentando que não existisse um volume dois e três de assombrações.

Para completar o prazer da prosa de Gilberto Freyre - que aconselho ser melhor apreciada deitado numa rede, bebendo água de coco (ou cerveja, a depender da preferência do leitor...) - o livro tem ilustrações fantásticas de Lula Cardoso Ayres.



Hesito em começar esta relação de casos de visagens recifenses com a história do Boca-de-Ouro por saber que noutras cidades do Brasil também tem aparecido essa figura meio de diabo, meio de gente, pavor dos tresnoitados. Um amigo, porém, me adverte de que parece haver uma migração de fantasmas do Norte para o Sul do país como houve outrora de bacharéis e de negros escravos, e há, hoje, de trabalhadores. Boca-de-Ouro talvez seja um desses duendes ou fantasmas aciganados: espécie de cearense que quando menos se espera surge numa cidade do interior de Goiás ou do Rio Grande do Sul. O contrário do fantasma inglês, tão preso à sua casa ou ao seu castelo que quando os reconstrutores de casas velhas alteram o piso, elevando-o, o fantasma tipicamente inglês só se deixa ver pela metade: não toma conhecimento da reforma da casa.

Acontece que um pacato recifense dos princípios deste século decidiu uma noite, talvez sob a influência das trovas, então na moda e, na verdade, encantadoras, de Adelmar Tavares, ser um tanto boêmio e até byroniano; e sair liricamente ruas afora, e pela beira dos cais do Capibaribe, ora recitando baixinho versos à “vovó Lua” ou à “dona Lua”, ora assobiando alto trechos da Viúva Alegre, ouvida cantar por italiana opulentamente gorda no Santa Isabel; e sempre gozando o silêncio da meia-noite recifense, o ar bom da madrugada que dá, na verdade, ao Recife seu melhor encanto. Quem sabe se não encontraria alguma mulher bonita? Alguma pálida iaiá de cabelos e desejos soltos? Ou mesmo alguma moura, encantada na figura de uma encantadora mulata de rosa ou flor cheirosa no cabelo?

Mas quem de repente encontrou foi um tipo acapadoçado, chapéu caído sobre os olhos, panamá desabado sobre o rosto e que lhe foi logo pedindo fogo. O aprendiz de boêmio não gostou da figura do malandro. Nem de sua cor que à luz de um lampião distante parecia roxa: um roxo de pessoa inchada. Atrapalhou-se. Não tinha ponta de cigarro ou charuto aceso a oferecer ao estranho. Talvez tivesse fósforo. Procurou em vão uma caixa nos bolsos das calças cheios de papéis amarfanhados: rascunhos de trovas e sonetos. E ia remexer outros bolsos quando o tipo acapadoçado encheu de repente, e sem quê nem para quê, o silêncio da noite alta, o ar puro da madrugada recifense, de uma medonha gargalhada; e deixou ver um rosto de defunto já meio podre e comido de bicho, abrilhantado por uma dentadura toda de ouro, encravada em bocaça que fedia como latrina de cortiço. Era o Boca-de-Ouro.

Correu o infeliz aprendiz de boêmio com toda a força de suas pernas azeitadas pelo suor do medo. Correu como um desesperado. Seus passos pareciam de ladrão. Ou de assassino que tivesse acabado de matar a noiva. Até que, cansado, foi afrouxando a carreira. Afrouxou-a até parar. Mas quando ia parando, quem havia de lhe surgir de novo com nova gargalhada de demônio zombeteiro a escancarar o rosto inchado de defunto e a deixar ver dentes escandalosamente de ouro? Boca-de-Ouro. O fantasma roxo e amarelo.

O pacato recifense então não resistiu. Espapaçou-se no chão como se tivesse dado nele o tangolomango. Caiu zonzo, desmaiado na calçada. E ali ficou como um trapo, até ser socorrido pelo preto do leite que, madrugador, foi o primeiro a ouvir a história: e, falador como ninguém, o primeiro a espalhá-la.
Nota: 5
(de 1 a 5, sendo: 1 – Péssimo; 2 – Ruim; 3 – Regular; 4 – Bom; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Assombrações do Recife Velho
Autor: Gilberto Freyre
Ilustrações: Lula Cardoso Ayres
Editora: Global
Ano: 2008
Número de páginas: 232



A Coruja


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2 comentários:

  1. Ah eu também devo a leitura de Casa Grande e Senzala, comecei e não terminei, pelo que li é mesmo uma obra monumental, fiquei com vontade de percorrer o Recife pelos olhos de Freire, vou inlcuir na minha sempre crescente lista de leituras hehehehe...
    estrelinhas coloridas...

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  2. Nossa, que legal! A leitura rendeu uma expedição in loco...maravilha!

    Beijos

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