7 de outubro de 2009
Bem-vindos à Roma: a política do pão e circo
Talvez alguns de vocês já tenham ouvido falar sobre a Lei 8.313 de 23 de dezembro de 1991... mais conhecida como Lei Rouanet. Esse diploma instituiu políticas públicas para a cultura nacional, tendo por base a promoção, proteção e valorização de suas diversas expressões.
Interessante é que seu destaque fica no campo tributário, já que traz em seu bojo uma política de incentivos fiscais que possibilita pessoas jurídica e física a aplicarem parte de seu imposto de renda em ações culturais.
Desnecessário dizer o que realmente acontece com essas deduções, certo? Até porque, não estou a fim de falar de lavagem de dinheiro, sonegação e coisas do tipo hoje. Deixo o resto para a imaginação de vocês.
O que quero falar é sobre as reformas que o Ministério da Cultura está querendo introduzir na lei... especificamente um ponto. Bem, em resumo, o projeto traz:
Alguém mais arregalou os olhos ao ver a descrição do “Vale Cultura”?
Vamos deixar uma coisa clara: sou totalmente a favor de tudo aquilo que signifique disseminação de cultura. Acredito que tenha ficado bem claro pelo meu artigo de ontem que torço pela facilitação do acesso à cultura.
O problema é como isso é feito.
Tem sido uma constante nesse governo a orientação de programas claramente, obviamente, ululantemente assistencialistas. Caso alguém aqui sofra de memória curta, permitam-me lembrá-los que nosso excelso Presidente da República observou um dia que não daria apenas o peixe, mas ensinaria a pescar.
No entanto, o que temos é o peixe dado na boca, pra não ter trabalho nem de cozinhar. Temos o bolsa família, o bolsa escola, o vale gás, o auxílio disso, daquilo e daquilo mais. Não é brincadeira ou invenção minha – quando saiu a história do “Fome Zero”, um funcionário na padaria do meu padrinho, no interior, pediu as contas porque, de acordo com ele, não precisava mais trabalhar, já que o presidente prometera que todo brasileiro comeria três vezes por dia.
“Do que mais eu preciso?” – foram as exatas palavras do indivíduo.
Na Roma Antiga, para manter as massas sobre controle – já que elas não tinham acesso às mesmas vantagens dos patrícios e dos militares que, indo para guerra, conquistavam poder e escravos – os imperadores distribuíam trigo de graça.
O pão, contudo, não era suficiente... assim, para que o povo não se preocupasse com as péssimas condições sociais, para que se distraísse e não ‘perdesse tempo’ teorizando ou debatendo e se organizando... os imperadores lhes davam o circo.
O Coliseu em Roma é fruto dessa política.
Agora... talvez eu seja paranóica. Talvez eu esteja vendo dois chifres em cabeça de unicórnio. Mas o que posso fazer se a história se repete?
Eu acredito que haja outras formas de garantir o acesso à cultura que não empurrando um vale no meio da cesta básica para que o trabalhador gaste como bem entender. Para não dizer que isso cheira a ‘mutreta’ (sério? Mais de sete bilhões por ano? E isso realmente vai chegar onde deve chegar?), não muda muita coisa da realidade cultural brasileira.
Exceto por um ou outro gato pingado, não acho que os contemplados por este vale visitarão os teatros municipais de suas cidades, ou museus, ou qualquer coisa nesse estilo. E isso não ocorre porque o brasileiro não tem “cultura” ou porque esse tipo de expressão é “da elite”. Essas duas vias discursais são simplistas demais para explicar a nossa realidade.
O que é preciso democratizar o acesso à cultura e isso não vai acontecer simplesmente se entregando um vale para o povão ir ver o que bem entender – ou sabe-se lá como vai ser o procedimento desse ‘vale cultura’.
Leve uma biblioteca para dentro de uma comunidade carente. Façam concertos ao ar livre, de graça. Organize grupos teatrais com os próprios membros da comunidade e os apresente não apenas a peças de óbvio conteúdo ideológico, mas também aos clássicos, adaptando-os ao seu cotidiano, integrando-os às histórias, fazendo com que eles se sintam curiosos para ver o que originou aquilo que estão trabalhando.
Clássicos não são clássicos porque são muito velhos e acumulam poeira, mas porque são obras atemporais, capazes de falar a todos os níveis sociais, à todas as eras humanas. Clássicos não são “elementos de dominação da elite” versus a cultura de massas – há cordéis que são verdadeiros clássicos, a ‘sub-cultura’, os regionalismos todos os dias inspiram novos clássicos.
Estou cansada de ler artigos sobre a massificação da indústria cultural e a contraposição de uma cultura elitizada supostamente pensada para que a burguesia implante um reino de escravidão sobre os pobres proletários.
Acesso e democratização da cultura não significam simplesmente dar dinheiro para que o ‘povão’ escolha com que quer se divertir (o circo, mas sem gladiadores dessa vez); mas também abrir espaço para uma discussão envolvendo educação e formas de integrar a cultura no cotidiano das pessoas.
Não é apenas de cifras e números que construímos uma bagagem cultural. E, até que isso seja feito...
Bem-vindo à Roma.
Interessante é que seu destaque fica no campo tributário, já que traz em seu bojo uma política de incentivos fiscais que possibilita pessoas jurídica e física a aplicarem parte de seu imposto de renda em ações culturais.
Desnecessário dizer o que realmente acontece com essas deduções, certo? Até porque, não estou a fim de falar de lavagem de dinheiro, sonegação e coisas do tipo hoje. Deixo o resto para a imaginação de vocês.
O que quero falar é sobre as reformas que o Ministério da Cultura está querendo introduzir na lei... especificamente um ponto. Bem, em resumo, o projeto traz:
* Renúncia fiscal - continua existindo, assim como a CNIC, que analisa os projetos. A única mudança é que, em vez de apenas ter duas faixas -de 30% e 100%- passa a ter mais quatro: 60%, 70%, 80% e 90%. A lei vai definir quais critérios serão usados pela CNIC, que, além de analisar aspectos orçamentários do projeto, vai analisar em qual faixa ele se encaixa. O objetivo da mudança é permitir maior contribuição das empresas - hoje, de cada 10 reais investidos pela Rouanet, 9 reais são públicos - e possibilitar que projetos com menor atratividade de investimento tenham faixa de renúncia maior.
* FNC - o Fundo Nacional de cultura já existe na atual Rouanet, mas permite apenas doação de 80% do valor do projeto, com 20% de contrapartida. Com a nova Lei Rouanet, o FNC poderá fazer empréstimos, associar-se a projetos culturais e fazer repasse a fundos municipais e estaduais. Isso permitirá que o Fundo Nacional de Cultura se torne mais atrativo para produtores culturais e se transforme, verdadeiramente, numa alternativa para aqueles que não conseguem captar financiamento via renúncia.
* Ficart - o Fundo de investimento Cultural e Artístico também já existe, no entanto, nunca saiu do papel por falta de interesse das empresas. A Nova Rouanet vai aumentar a atratividade, com maior dedução fiscal, para que seja uma alternativa atrativa para projetos com grandes chances de retorno financeiro.
* Vale Cultura - a grande novidade do projeto, o vale de 50 reais para trabalhadores, vai, além de facilitar o consumo de bens culturais para 12 milhões de trabalhadores, injetar pelo menos R$ 7,2 bilhões por ano, o que é mais de seis vezes o montante atual da Rouanet.
Alguém mais arregalou os olhos ao ver a descrição do “Vale Cultura”?
Vamos deixar uma coisa clara: sou totalmente a favor de tudo aquilo que signifique disseminação de cultura. Acredito que tenha ficado bem claro pelo meu artigo de ontem que torço pela facilitação do acesso à cultura.
O problema é como isso é feito.
Tem sido uma constante nesse governo a orientação de programas claramente, obviamente, ululantemente assistencialistas. Caso alguém aqui sofra de memória curta, permitam-me lembrá-los que nosso excelso Presidente da República observou um dia que não daria apenas o peixe, mas ensinaria a pescar.
No entanto, o que temos é o peixe dado na boca, pra não ter trabalho nem de cozinhar. Temos o bolsa família, o bolsa escola, o vale gás, o auxílio disso, daquilo e daquilo mais. Não é brincadeira ou invenção minha – quando saiu a história do “Fome Zero”, um funcionário na padaria do meu padrinho, no interior, pediu as contas porque, de acordo com ele, não precisava mais trabalhar, já que o presidente prometera que todo brasileiro comeria três vezes por dia.
“Do que mais eu preciso?” – foram as exatas palavras do indivíduo.
Na Roma Antiga, para manter as massas sobre controle – já que elas não tinham acesso às mesmas vantagens dos patrícios e dos militares que, indo para guerra, conquistavam poder e escravos – os imperadores distribuíam trigo de graça.
O pão, contudo, não era suficiente... assim, para que o povo não se preocupasse com as péssimas condições sociais, para que se distraísse e não ‘perdesse tempo’ teorizando ou debatendo e se organizando... os imperadores lhes davam o circo.
O Coliseu em Roma é fruto dessa política.
Agora... talvez eu seja paranóica. Talvez eu esteja vendo dois chifres em cabeça de unicórnio. Mas o que posso fazer se a história se repete?
Eu acredito que haja outras formas de garantir o acesso à cultura que não empurrando um vale no meio da cesta básica para que o trabalhador gaste como bem entender. Para não dizer que isso cheira a ‘mutreta’ (sério? Mais de sete bilhões por ano? E isso realmente vai chegar onde deve chegar?), não muda muita coisa da realidade cultural brasileira.
Exceto por um ou outro gato pingado, não acho que os contemplados por este vale visitarão os teatros municipais de suas cidades, ou museus, ou qualquer coisa nesse estilo. E isso não ocorre porque o brasileiro não tem “cultura” ou porque esse tipo de expressão é “da elite”. Essas duas vias discursais são simplistas demais para explicar a nossa realidade.
O que é preciso democratizar o acesso à cultura e isso não vai acontecer simplesmente se entregando um vale para o povão ir ver o que bem entender – ou sabe-se lá como vai ser o procedimento desse ‘vale cultura’.
Leve uma biblioteca para dentro de uma comunidade carente. Façam concertos ao ar livre, de graça. Organize grupos teatrais com os próprios membros da comunidade e os apresente não apenas a peças de óbvio conteúdo ideológico, mas também aos clássicos, adaptando-os ao seu cotidiano, integrando-os às histórias, fazendo com que eles se sintam curiosos para ver o que originou aquilo que estão trabalhando.
Clássicos não são clássicos porque são muito velhos e acumulam poeira, mas porque são obras atemporais, capazes de falar a todos os níveis sociais, à todas as eras humanas. Clássicos não são “elementos de dominação da elite” versus a cultura de massas – há cordéis que são verdadeiros clássicos, a ‘sub-cultura’, os regionalismos todos os dias inspiram novos clássicos.
Estou cansada de ler artigos sobre a massificação da indústria cultural e a contraposição de uma cultura elitizada supostamente pensada para que a burguesia implante um reino de escravidão sobre os pobres proletários.
Acesso e democratização da cultura não significam simplesmente dar dinheiro para que o ‘povão’ escolha com que quer se divertir (o circo, mas sem gladiadores dessa vez); mas também abrir espaço para uma discussão envolvendo educação e formas de integrar a cultura no cotidiano das pessoas.
Não é apenas de cifras e números que construímos uma bagagem cultural. E, até que isso seja feito...
Bem-vindo à Roma.
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
É inacreditavel! A única coisa que me parece que esse gorverno faz é dar vales e piorar a situação do país. É provavavel que não seja só isso, mas também o outro lado está bem fora de foco. Esses políticos sabem muito bem fazer propaganda e garantir eleitorado. Deixe o povo burro e ludibriado. Pronto, essa é a receita para ganhar eleições e ir assaltar cofres públicos com seus sálarios exorbitantes e seus 'ajuda casa, comida, transporte' e oque mais for.
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