1 de julho de 2010
Doando esperança
Oh! Deus, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar
Oh! Deus, será que o Senhor se zangou
E só por isso o sol se arretirou
Fazendo cair toda chuva que há
Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho
Pedi pra chover, mas chover de mansinho
Pra ver se nascia uma planta no chão
Meu Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe,
Eu acho que a culpa foi
Desse pobre que nem sabe fazer oração
Meu Deus, perdoe eu encher os meus olhos de água
E ter-lhe pedido cheinho de mágoa
Pro sol inclemente se arretirar
Desculpe eu pedi a toda hora pra chegar o inverno
Desculpe eu pedir para acabar com o inferno
Que sempre queimou o meu Ceará
Como alguns de vocês já devem saber a essa altura, eu estive por esses dias pelo interior. Estive em Garanhuns, para o jubileu de ouro de tia Dayse, cinqüenta anos desde que ela decidiu entrar no convento.
Esta viagem estava prevista há um bom tempo... quando começou o dilúvio.
Tenho certeza que vocês sabem do que estou falando – a não ser, claro, que estejam vivendo em completo retiro do resto do mundo, exceto pelo Coruja, no último mês (quando então vocês só saberão sobre histórias de Jane Austen).
Como não acredito que exista qualquer tipo de eremita desse tipo, vou presumir que todo mundo sabe que Pernambuco e Alagoas foram castigados essas últimas semanas com chuvas e enchentes.
Na verdade, ainda estão sendo, porque essa semana deu outra chuva para o lado de lá que já encheu tudo de novo.
Confesso, contudo, que eu não tinha real dimensão do que estava acontecendo até pisar o pé em Correntes. Na verdade, a gente nunca pode ter real dimensão de algo que não conhecemos, pelo que nunca passamos antes. Não importa quantas vezes vejamos na televisão, no jornal ou escutemos no rádio...
Nós dizemos “meu Deus, o que deve ser o desespero dessa gente” enquanto passam fotos e vídeos, bem seguros em nossas casas. Dizemos “isso é muito triste” e “é culpa do governo” (uma frase favorita, especialmente em tempos de eleição, ainda que não faça às vezes o menor sentido).
Às vezes nem dizemos nada, porque, sério, quando não é seca é enchente e “esse pessoal do nordeste só sabe reclamar?”.
Quando primeiro tivemos a notícia da enchente aqui em casa, meu pai ficou preocupado, claro. Correntes tinha sido uma das cidades atingidas. Não tínhamos ouvido falar do assunto pela parentela que lá vive, foi uma menção rápida no jornal local. Assim, pensamos que não era nada tão preocupante assim – afinal, ninguém tinha ligado para avisar.
Por dois dias, meu pai tentou falar com meu tio que mora lá, enquanto as notícias iam chegando. Ouvíamos que tinha gente que perdera tudo. Que a água levara a casa e deixara só o chão. A velha usina desabou, assim como a ponte que liga o centro ao bairro da Bahia (que desapareceu debaixo d’água), sobre o rio Mundaú.
O rio subira quase quinze metros, que é mais ou menos o equivalente a um edifício de cinco andares.
O plano inicial tinha sido ir para Garanhuns, assistir a missa de ação de graças por Tia Dayse e voltar para casa. Diante do que tinha acontecido, contudo, começamos a falar com conhecidos; meu irmão colocou um comunicado no elevador, a mãe deixou uma caixa na portaria e começaram a chegar doações.
A criançada do prédio, de férias, decidiu colaborar, e acabaram arrastando a caixa andar por andar (são trinta) pela escada, recolhendo doações e nos entregando. No dia de viajarmos, enchemos o carro por cima com roupas, sapatos, edredons, comida.
Depois, descobrimos que as maiores necessidades não eram apenas de roupas, mas principalmente de colchões... e de água.
Irônico pensar que falte água numa cidade onde o rio subiu quinze metros. Mas aí você lembra que a enchente cortou o fornecimento de água (incluindo água potável) e de energia. Nessas horas pensamos como nossos antepassados se viravam sem essas coisas...
Seguimos para Correntes.
As fotos e o vídeo falam por si. Não vou colocar legendas nelas; como eu já disse, vocês provavelmente já viram isso e muito pior na televisão (porque apesar de Correntes ter sido uma das cidades em que foi decretado estado de calamidade pública, lá as coisas não foram tão ruins quanto em lugares como Palmares ou Cortês).
Quero falar, em vez disso, do que é ver uma pessoa que você conheceu sua vida inteira, que sempre foi cheia de graça e risos – que você sempre teve como uma pessoa forte, valente – chorar enquanto se lembra da cena. Falar do medo e do barulho – o barulho das águas, carregando tudo, derrubando muros, invadindo a casa.
Das olheiras e do semblante triste de antigos companheiros, contando como tudo acontecera. Como eles tinham tentando ajudar outros, achando que a água não ia subir até suas casas. Como tudo aconteceu tão rápido. Como no espaço de algumas horas, viram se desfazer aquilo que tinham levado uma vida para juntar.
Do próprio olhar assombrado de seu pai, do silêncio pesaroso, em pé diante das ruínas de uma ponte, de frente para a velha usina que ele ajudou a construir.
Vou lembrar, sobretudo, dos olhos e da alegria de uma pessoa que perdeu tudo – absolutamente tudo, até a roupa do corpo, que a essa altura era emprestada – ao receber um pouco com que pudesse recomeçar: “agora eu já posso ir trabalhar com uma camisa por dia!”.
Não sei como acreditar nesse tipo de esperança. Não sei se seria capaz de acreditar em qualquer coisa ao ver não apenas um patrimônio – mas minha inteira história – escoando com a correnteza do rio. Espero nunca ter necessidade de me provar dessa maneira.
Independente disso, admiro profundamente essas pessoas, capazes de encontrar alento numa situação tão desesperadora. Capazes de ver até mesmo humor em suas condições. Capazes de reconstruir, tijolo a tijolo, uma vida.
Tenho certeza que nas cidades de vocês – ao menos nas capitais – há locais de coletas de doações. Tenho certeza também que nas suas casas deve haver um mundo de coisas que não usam mais; às vezes, que nem mesmo sabem que ainda vive em seus armários. Sei que tempo anda curto e é quase artigo de luxo... mas reservem um pouco dele para separar essas coisas de que não precisam, que não vão lhes fazer falta e levem para doar.
Vocês provavelmente não terão oportunidade de ver o bem que fazem – não como eu tive, pelo menos, já que estive lá. Mas saibam que a atitude de doar essas coisas aparentemente sem importância (ao menos para alguns) vai bem além do sentido material.
Não estarão doando apenas coisas, objetos tangíveis... estarão também entregando esperança.
Vocês precisam de um incentivo maior do que esse para começarem a se mexer?
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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.
Lulu, eu moro em São Paulo e já vi isso acontecendo aqui perto, na metrópole mesmo. Duas ruas pra baixo da minha tem uma encosta de morro, e quando a chuva veio forte a encosta cedeu, levando as casas com ela. Eu também vi as pessoas perdendo tudo... e não desejo esse desespero nem pro meu pior inimigo.
ResponderExcluirLinkei seu post no meu Twitter, espero que não se importe. E não sei se consigo mobilizar a minha vizinhança a ajudar, mas pelo menos daqui de casa eu garanto uma mãozinha.
=)
Elise, pelo contrário, toda a divulgação é importante. Valeu mesmo pela força.
ResponderExcluirIsso me lembrou quando dormi no carro... A água subindo na rua...
ResponderExcluirAs chuavs podem cair em uma grande cidade ou em uma cidade do interior ou em uma cidade praiana (o medo da casa da minha irmã ter descido na encosta foi enooorme), o sentimento de quem está naquela cidade, naquele momento é único.
Posso não ter tido a sorte de não ter perdido nada na chuva daqui, mas na hora em que eu estava presa no carro não sabia que teria a felicidade poder falar isso depois. E mesmo assim o que eu pensei na hora não é o mesmo que o pessoal do nordeste... Nunca é...